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22 julho, 2008

Educação Fantasma

A crise da educação nos países industrializados ocidentais


Robert Kurz


Fez parte da história do colonialismo que o Ocidente se apresentasse a si mesmo como civilização superior na relação com o resto do mundo, não apenas no sentido técnico e econômico, mas também no cultural. As ideologias ocidentais do século 19 e da primeira metade do 20 falavam do "fardo do homem branco", encarregado de alegrar o mundo com suas bênçãos. Foi só após a Segunda Guerra Mundial que a intelligentsia ocidental deu início a uma crítica do "eurocentrismo". Descobriram-se as realizações culturais autônomas do "outro", depois de suas conquistas terem sido destruídas até a raiz ao longo de vários séculos. Foi um reconhecimento para o museu e a reminiscência culpada.


A descolonização não trouxe naturalmente nenhuma renovação das antigas culturas, há muito tempo naufragadas, ainda que sejam instrumentalizadas até hoje para uma fundação ideológica de identidades. Ao invés disso, os movimentos sociais pós-coloniais e os Estados do hemisfério Sul se orientaram em todos os aspectos pelo protótipo ocidental, começando pela categoria política de "nação" até chegar à forma jurídica burguesa moderna e a racionalidade da economia empresarial. Disso faz parte também a campanha de alfabetização e a instalação de um sistema escolar e educacional segundo os padrões ocidentais.


Justamente no caso da alfabetização e da ofensiva educacional se trata à primeira vista de uma grande conquista emancipadora. Quem iria contestar que a técnica cultural elementar da leitura e da escrita representa um pressuposto irrenunciável para o progresso civilizador? Como a transmissão de saber e a educação poderiam ser interpretadas de outra forma senão positivamente? Todavia são importantes também o conteúdo do saber e a forma da transmissão. E nesse aspecto o surgimento do sistema educacional ocidental não pode de modo algum ser entendido em linha reta no sentido emancipador. A alfabetização européia e a "escolarização" da sociedade não foram um presente civilizador generoso para as pessoas, mas parte do processo designado na literatura crítica pelo conceito de "colonização interna". A submissão externa do mundo por parte do Ocidente vem de par com uma flagelação interna do próprio homem ocidental para se converter em "material" da valorização capitalista. Nisso desempenhavam uma função não apenas as medidas de disciplinamento violento, mas também o adestramento espiritual e o aprendizado de parâmetros comportamentais com a finalidade de ajustar a práxis inteira da vida ao "trabalho abstrato" (Marx) e à concorrência universal. Tanto as formas institucionais da educação "para o povo" como os conteúdos transmitidos serviam em primeiro lugar a esse objetivo da "interiorização" de um perfil capitalista de requisitos.


Só aparentemente o processo era diferente para a formação "superior" da juventude da elite burguesa. A nova geração destinada aos escalões de liderança na economia, na política e na cultura deveria receber um saber o mais universal possível e ser capaz de reflexão filosófica para além das exigências práticas imediatas. Na Alemanha, Wilhelm von Humboldt (1767-1835) chegou a criar um ideal de formação neo-humanista, entendendo o desdobramento universal do espírito como fim em si mesmo, o qual não poderia ser degradado à mera "instrução", reduzida em termos funcionalistas, para fins dados. Mas ideais de formação dessa espécie não estavam dirigidos à crítica, mas antes à autofruição de uma burguesia que não havia delegado completamente sua autoconsciência aos mecanismos funcionais "do sistema", permitindo-se ainda o luxo de uma formação, pesquisa e auto-representação cultural supostamente "sem finalidade". Os Estados pós-coloniais do Sul reproduziram, junto com as instituições capitalistas restantes, as idéias ocidentais de educação, tanto aquela para o "povo", reduzida em termos funcionalistas, como aquela para as elites, mais elevada e "sem finalidade".


Mas, na mesma medida em que o paradigma da "modernização recuperadora" entrou em colapso desde os anos 1980 com o processo da globalização e com a crise mundial provocada pela terceira revolução industrial, a ofensiva educacional das nações do assim chamado Terceiro Mundo chegou a seus limites. Constata-se que um sistema educacional moderno, com escolas, universidades, institutos de pesquisa e instituições culturais, só pode ser financiado se a economia nacional correspondente é capaz de concorrer no mercado mundial. Em regiões cada vez maiores do globo, o sistema escolar e educacional se dissolve junto com a economia. Assim como há "fábricas fantasma" que só existem nominalmente e mal produzem alguma coisa ainda, há também "escolas fantasma" e "universidades fantasma" em que nada mais é realmente ensinado e pesquisado. Não é só no Afeganistão ou na Somália que o índice da alfabetização retrocede.


Esse destino o sistema educacional partilha com a maioria das outras infra-estruturas ou serviços públicos. Subjaz ao problema, que aqui se torna visível, uma determinada lógica econômica. Instituições infra-estruturais, como correio, abastecimento de água, sistema de saúde e, precisamente, a educação, não são, segundo sua essência, empresas de mercado, mas condições estruturais da sociedade inteira para a economia empresarial e de mercado.


Visto em termos econômicos, trata-se de custos gerais, custos indiretos, custos mortos ou "faux frais" (Marx) da reprodução capitalista. As empresas pressupõem determinadas qualificações nas forças de trabalho encontradas no mercado de trabalho; a mais elementar delas é naturalmente a capacidade de ler e escrever. Mas mesmo essa qualificação básica não surge por natureza (embora seja tratada pelas empresas como um recurso natural, sem custos); para tanto são necessárias despesas sociais.


As empresas só podem calcular seus custos econômicos imediatos; segundo sua natureza, elas não têm competência para custos da sociedade como um todo. Por esse motivo o Estado assumiu não só o funcionamento das infra-estruturas e, com isso, do sistema educacional, mas também os custos. Trata-se de um financiamento secundário, derivado: os rendimentos do mercado (lucros, salários, honorários) são taxados pelo Estado, para que possa executar os serviços públicos com esse dinheiro extraído.


Porém, nesse aspecto, o desenvolvimento das forças produtivas engendrou um contexto fatal, pouco refletido até o momento. Pois quanto mais a produção das empresas é cientificizada e, com isso, maior a porção de capital real (tecnologia), tanto mais sobe o grau de socialização e tanto maior se torna a importância da infra-estrutura, principalmente da formação e da instrução. Sob o ponto de vista do cálculo capitalista privado, esse desenvolvimento resulta em que o verdadeiro fim, a produção para o lucro, é de certo modo sufocado pelas condições estruturais da sociedade inteira. Isso significa por sua vez que os custos sociais indiretos ou (do ponto de vista da economia empresarial) os "custos mortos" aumentam desproporcionalmente. Desse modo, surge um problema de financiamento crônico das infra-estruturas, que crescem de maneira objetivamente necessária. Em outras palavras: o grau de socialização produzido pelo próprio capitalismo não é mais representável em termos capitalistas. Esse problema aparece como dimensão especial de um processo crise secular.


Com a terceira revolução industrial da microeletrônica, esse problema se exacerba no curso de uma crise estrutural dos mercados. No plano da economia empresarial, torna-se supérflua uma tamanha massa de força de trabalho, cuja reabsorção não é mais possível por meio de uma ampliação dos mercados. O Estado pode cada vez menos taxar salários e precisa, além disso, financiar o desemprego. Ao mesmo tempo, no processo de globalização, as empresas transnacionais fogem do alcance fiscal do Estado, indo parar nos "oásis" de países que taxam pouco ou não taxam de modo algum os investidores estrangeiros. O endividamento já há muito tempo precário do aparelho do Estado praticamente explode. Desse modo, o financiamento dos serviços públicos e das infra-estruturas é fundamentalmente posto em questão, embora as exigências objetivas a esses domínios continuem a crescer devido à mesma terceira revolução industrial. Ou seja, temos de lidar com uma contradição interna aguda do sistema.


Em um curso quase natural dessa crise, acabam se paralisando tanto as capacidades da produção, por falta de rentabilidade, como os setores públicos, por falta de "financiabilidade". O aparelho do Estado se reduz cada vez mais a uma administração restritiva das pessoas e dos recursos, ao seu papel de aparelho da violência. Os custos para a "segurança" interna e externa aumentam continuamente, ao passo que diminuem os custos para a sustentação infra-estrutural. Com outras palavras: o cerne anti-social, anticivilizador, bárbaro da modernidade vem à luz, enquanto o "excesso civilizador", como a medicina, a assistência médica, a educação, a cultura etc., vai desaparecendo sucessivamente.


Se o Ocidente produz, sob a liderança dos EUA, um novo colonialismo da crise e invoca ideologicamente a "salvação da civilização", ele se desmente a si próprio em suas próprias relações internas por conta do desenvolvimento anticivilizador. Hoje o sistema educacional e as instituições culturais decaem nos países ocidentais, já em completa semelhança com as regiões críticas do Sul. Geralmente os suportes da educação, da instrução e da cultura são os municípios e as Províncias; e justamente para esses níveis mais baixos da administração estatal a crise financeira no Ocidente progrediu tanto quanto para os Estados centrais do Terceiro Mundo.


Analfabetismo secundário


Nas escolas o reboco das paredes cai, os materiais didáticos estão envelhecidos, os subsídios para a instrução são cortados e setores inteiros da produção de nichos culturais são liquidados. Os discursos domingueiros dos políticos sobre a necessidade de uma ofensiva educacional no contexto da "concorrência global" estão em crassa contradição com a realidade. Mesmo de escolas de aperfeiçoamento e universidades saem jovens que não dominam técnicas culturais básicas e são incapazes de refletir para além dos dados imediatos. Nesse aspecto, há muito tempo já se fala de "analfabetos secundários", pessoas que podem ler e escrever em caso de necessidade, mas sem entender e elaborar o conteúdo. E, apesar do ensino obrigatório universal, até mesmo o analfabetismo primário, total, aumenta nos EUA e na Alemanha.


A política e a administração reagem às contradições críticas no sistema educacional de maneira estereotipada, com três medidas paradigmáticas. O primeiro paradigma se chama, como em todos os outros domínios, "privatização". No entanto escolas privadas, universidades privadas e outras instituições educacionais privadas, operadas como empresas de mercado, não são mais, naturalmente, infra-estruturas públicas; antes, elas estão orientadas para uma minoria de clientela solvente. Na mesma direção se vai quando se elevam as taxas nas escolas públicas e nas universidades e o material didático deixa de ser gratuito.


Está intimamente ligado a essa tendência o segundo paradigma, isto é, a propaganda reforçada para uma assim chamada educação de elite. Em termos práticos isso significa que as escolas e as universidades normais são conscientemente negligenciadas para que o fomento estatal se concentre em poucas instituições de elite. Essas condições, habituais nos EUA já faz muito tempo, se difundem agora no mundo ocidental inteiro. Mas, se a formação se torna dependente da solvência, o nível intelectual da sociedade como um todo declina forçosamente. Bolsas privadas não podem compensar a perda de serviços públicos que cobrem áreas inteiras. O reservatório social de talentos intelectuais deixa de ser esgotado.


Vai ainda mais fundo o alcance do terceiro paradigma da superação aparente da crise: a redução funcionalista da educação e da pesquisa à capacidade de valorização econômica imediata. Com força cada vez maior, as escolas e as universidades são atadas diretamente à "economia", guiadas segundo critérios da economia empresarial e, no plano dos conteúdos, dirigidas ao conformismo com o mercado. Por assim dizer, vale a divisa: "Não importa o que você estuda, é sempre economia empresarial!".


Inteligência subversiva


O totalitarismo econômico chegou ao sistema educacional. Mas isso significa que, junto com os últimos restos do ideal de formação de Humboldt, desaparece a autofruição cultural das elites capitalistas; elas mesmas se reduzem aos "idiotas funcionais do sistema". Desse modo se dissolve também a capacidade intelectual de tomar distância, que é, porém, pressuposta para a condução de processos complexos em geral. A nova "elite" se desmente a si mesma.


Mas o que acontece com o potencial intelectual da sociedade, posto de lado e não mais resgatável? Se a educação para a grande massa é desmantelada de maneira tão crassa, desaparece também sua função anterior de disciplinamento. Desse modo, porém, é desencadeado não apenas um "analfabetismo secundário", mas talvez também uma "inteligência subversiva" que não siga mais os princípios do totalitarismo econômico. Pode ser que a administração capitalista da crise educacional ponha a caminho, sem querer, uma nova contracultura intelectual.


Original alemão Sekundäre Analphabeten. Die Krise der Bildung in den westlichen Industrieländern. Deustch


Publicado na Folha de São Paulo, 11 de Abril de 2004, com o título O efeito colateral da educação fantasma


http://blog.controversia.com.br/2006/10/15/analfabetos-secundarios/

20 julho, 2008

Crise na Educação

por Robert Kurz


Mais uma vez correm abundantemente as lágrimas de crocodilo da classe política, dos media e do management. Desta vez o objecto de consternação é o estado de calamidade do ensino, como se ninguém fosse altamente responsável por isso. Mas tal "pensamento duplo", como George Orwell o descreveu na sua utopia negativa, é de qualquer modo necessário para poder suportar e exprimir enfaticamente as autocontradições, lamentando o modo de vida e de produção dominante, sem ter que declarar-se a si mesmo como doido.


Educação e ciência não são excepção. Por um lado a concorrência obriga à contínua inovação no uso dos conhecimentos científicos e das criações culturais; por outro lado, estes domínios constituem apenas "custos mortos", do ponto de vista da economia empresarial. Eles constituem um fundo de cujo conteúdo uma pessoa gostaria de servir-se no interesse da valorização do capital, mas pelo qual gostaria de pagar o mínimo possível. Na crise, quando até os lucros se evaporam, os rendimentos e a cobrança de impostos diminuem em paralelo e agrava-se esta contradição. Do jardim de infância ao instituto de pesquisa teórica, todo o sistema de educação, cultura, formação e ciência se arruina, exactamente como todos os outros domínios não directamente lucrativos. E quando as consequências do colapso se fazem sentir, retroagindo sobre a valorização, fica todo o mundo em ressaca e a exigir "mais esforço da educação".

Há muito que se impôs também na educação e ciência uma determinada lógica de administração da crise. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha foram pioneiros nesta orientação, porque foram os primeiros a executar todas as consequências da crise do capitalismo. Esta lógica integra dois elementos fortemente unidos um ao outro. O primeiro estabelece o postulado de uma "educação de elites". Educação e ciência devem ser alta e massivamente financiados "em cima", no resto pelo contrário devem ficar à míngua. É típico do novo espírito do tempo elogiar as escolas e universidades privadas pelos seus "altos talentos". A reivindicação de propinas pesadas pertence a esta linha, tal como a reivindicação de constituir universidades de elite ou a de voltar atrás na disponibilização do material escolar. À sobrelotação de escolas e universidades públicas corresponde um desempenho menos elevado. E espera-se colocar sob o mesmo chapéu reduções orçamentais drásticas e um ensino concorrencial.

O segundo elemento da administração de crise no âmbito da educação e ciência está na redução funcionalista, de acordo com critérios de possível valorização do capital. Estudos culturais, humanidades, ciências sociais, vistas como especializações em floreados, emagrecem até à invisibilidade; o mesmo acontece com a pesquisa teórica "sem objectivo" em ciências naturais. Pelo contrário, são unilateralmente fomentadas as "disciplinas valorizáveis" ou como tal consideradas: informática, engenharias, estudos de economia empresarial, etc. O ideal é o "cientista empresarial", a escola organizada sob o "ponto de visita da economia" ou o projecto científico administrado como uma empresa lucrativa. Para os estudantes a divisa é: Estudes tu o que estudares, é sempre economia empresarial.


Mas tal como em todos os outros domínios, também na educação nunca a contradição capitalista será bem administrada através da administração de crise restritiva e repressiva. A educação elitista unilateral assemelha-se a um cérebro de alto rendimento a que foi cortada a irrigação sanguínea. O filtro financeiro do acesso eleva aos lugares de comando os burros da classe alta arrivista, enquanto a massa dos talentos da sociedade definha ou se dedica (oxalá!) a objectivos subversivos. Donativos e sponsoring, bolsas de estudo e fundações, não podem substituir o sistema de educação em toda a sua extensão.

Ironicamente, acontece com a educação o mesmo que com a publicidade: só uma parte atinge o alvo, mas não se sabe qual é. Com a sujeição directa a critérios económico-empresariais, a lógica própria não económica da educação, ciência e cultura acaba por sufocar. Professores, biólogos, físicos, historiadores e sociólogos medíocres ou abaixo da média tornam-se hábito nas instituições de educação e ciência: é o melhor caminho para a desqualificação e abandalhamento continuado dos conteúdos. Quando em todo o lado já só restam vendedores em acção, já nada se consegue vender.


O sistemático apoio aos idiotas funcionais de vistas curtas serve da melhor maneira o objectivo de arruinar o capitalismo. Contava-se ironicamente acerca da monarquia K.u.K. (1) que o inimigo teria proibido os seus soldados de atirarem sobre os oficiais K.u.K. Talvez a crítica radical do capitalismo deva saudar com idêntica ironia as ideias elitistas da classe político-económica alemã-federal. Vendo bem, o governo vermelho-verde e até a respectiva oposição representam já o surgimento desta "elite" à Dr. Eisenbart (2).


Notas da tradutora:


(1) Monarquia K.u.K. (de Kaiserin und Kaiser, imperatriz e imperador, a partir da dupla Elisabeth/Sissi e Francisco José), refere-se ao império dos Habsburgos, 1848/1918, aqui como paradigma da decadência. Tal como em português, em alemão também há homofonia com cuco (Kuckuck).


(2) Médico alemão que viveu entre 1663 e 1727, cuja figura é explorada no turismo e no folclore como protótipo da charlatanice. Eisenbart quer dizer literalmente barba de ferro.


Original alemão Notstand für alle bei der Bildung em Neues Deutschland, 09.01.2004


Tradução de Ana Moura


Fonte: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz155.htm

17 abril, 2007

Assassinos em Escolas

A pulsão de morte da concorrência

Assassinos amoque e suicidas como sujeitos da crise

Obs: Síndrome de Amoque é um termo usado para descrever assassinos descontrolados

Robert Kurz

Há alguns anos que se tornou corrente no mundo ocidental a expressão "massacre em escolas". As escolas, outrora locais da educação mais ou menos autoritária, do erotismo púbere e das travessuras juvenis inofensivas, entram cada vez mais no campo de visão da esfera pública como palco de tragédias sangrentas. Certamente, relatos sobre alguns amoques já são conhecidos também do passado. Mas cabe aos excessos sanguinolentos actuais uma qualidade própria e nova. Eles não se deixam encobrir por uma névoa cinza de generalidade antropológica. Pelo contrário, trata-se inequivocamente de produtos específicos de nossa sociedade contemporânea.

A nova qualidade desses actos amoques pode ser constatada em vários aspectos. Por exemplo, não são acontecimentos muito distanciados no tempo, como em épocas anteriores, antes os massacres têm lugar, desde os anos 90, numa sequência cada vez mais compacta. São novos também dois outros aspectos. Uma porcentagem grande e desproporcional dos autores é de jovens, uma parte até mesmo de crianças. Um número muito pequeno desses amoques é mentalmente perturbado no sentido clínico; pelo contrário, a maioria é considerada "normal" e bem ajustada, antes do seu acto. Quando as mídias constatam esse facto, sempre com aparente surpresa, admitem indirecta e involuntariamente que a "normalidade" da sociedade actual traz em si o potencial para actos amoques.

Chama a atenção também o carácter global e universal desse fenómeno. Começou nos EUA. Em 1997, na cidade de West Paducah (Kentucky), um adolescente de 14 anos matou a tiro, após a oração matinal, três colegas de escola, e cinco outros foram feridos. Em 1998, em Jonesboro (Arkansas), um menino de 11 e um de 13 anos abriram fogo contra a sua escola, matando quatro meninas e uma professora. No mesmo ano, em Springfield (Oregon), um jovem de 17 anos matou a tiro numa "high school" dois colegas e feriu 20 outros. Um ano mais tarde, dois jovens de 17 e 18 anos provocaram o célebre banho de sangue de Littleton (Colorado): com armas de fogo e explosivos, eles mataram na sua escola 12 colegas, um professor e, em seguida, a si próprios.

Na Europa, esses massacres em escolas foram de início interpretados, ainda no contexto do tradicional antiamericanismo, como consequência do culto às armas, do darwinismo social e da escassa educação social nos EUA. Mas são justamente os EUA, em todos os aspectos, o modelo para todo o mundo capitalista da globalização, como logo se iria mostrar. Na pequena cidade canadiana de Taber, apenas uma semana após o caso de Littleton, um adolescente de 14 anos disparou ao seu redor, matando um colega de escola. Outros massacres em escolas foram notificados nos anos 90 na Escócia, no Japão e em vários países africanos. Na Alemanha, em Novembro de 1999, um estudante liceal de 15 anos matou a professora, munido de duas facas; em Março de 2000, um garoto de 16 anos matou à bala o director da escola e depois tentou suicidar-se; em fevereiro de 2001, um jovem de 22 anos matou com um revólver o chefe da sua firma e depois o director de sua ex-escola, para finalmente ele mesmo voar pelos ares detonando um tubo de explosivos. O recente acto amoque de um jovem de 19 anos em Erfurt, que, no fim de Abril de 2002, durante o exame de conclusão do secundário, chacinou com uma "pump gun" 16 pessoas (entre elas quase todo o corpo docente da escola) e que em seguida atirou contra a própria cabeça, foi somente o ápice até agora de toda uma série.

Naturalmente o fenómeno dos massacres em escolas não pode ser visto de modo isolado. A bárbara "cultura do acto amoque" tornou-se há tempos, em muitos países, um acontecimento mediático periódico; os atiradores amoques jovens em escolas formam apenas um segmento dessa microexplosão social. Os relatos das agências sobre actos amoques em todos os continentes mal podem ser contados ainda; por causa de sua frequência relativa, só são aceites pelas mídias quando têm um efeito propriamente espectacular. Desse modo, aquele suíço de índole correcta, que no fim de 2001 crivou de balas com uma pistola automática meio parlamento cantonal e depois se matou, chegou à triste celebridade mundial tanto quanto aquele universitário francês, graduado e desempregado, que poucos meses depois abriu fogo com duas pistolas contra a Câmara Municipal da cidade-satélite parisiense de Nanterre, matando oito políticos locais.

Se o acto de amoques armados é mais comum que os massacres especiais em escolas, então ambos os fenómenos estão por sua vez integrados no contexto maior de uma cultura da violência interna à sociedade, que passa a inundar o mundo todo no decurso da globalização. Fazem parte disso as numerosas guerras civis, virtuais e manifestas, a economia da pilhagem em todos os continentes, a criminalidade de massas armadas, reunidas em bandos nos bairros pobres, nos guetos e nas favelas; de modo geral, o universal "prosseguimento da concorrência por outros meios". Por um lado, é uma cultura do roubo e do assassinato, cuja violência se dirige contra os outros; no entanto os autores assumem o "risco" de eles próprios serem mortos. Mas, simultaneamente, aumenta também, por outro lado, a auto-agressão imediata, como comprovam as taxas crescentes de suicídio entre os jovens em muitos países. Pelo menos para a história moderna, é uma novidade que o suicídio não seja praticado apenas por desespero individual, mas também de forma organizada e em massa. Em países e culturas tão distantes entre si quanto os EUA, a Suíça, a Alemanha e o Uganda, as chamadas "seitas suicidas" despertaram a atenção várias vezes nos anos 90, de maneira macabra, por conta dos actos de suicídio colectivo e ritualizado.

Ao que parece, o acto amoque forma na recente cultura global da violência o vínculo lógico de agressão aos outros e auto-agressão, uma espécie de síntese de assassinato e suicídio encenados. A maioria dos amoques não só mata indiscriminadamente como também executa a si própria em seguida. E as distintas formas de violência pós-moderna começam a fundir-se. O autor potencial do latrocínio é também um suicida potencial; e o suicida potencial é também um amoque potencial. Diferentemente dos actos amoques em sociedades pré-modernas (a palavra "amok" provém da língua malaia), não se trata de acessos espontâneos de fúria ensandecida, mas sempre de acções longa e cuidadosamente planejadas. O sujeito burguês está determinado ainda pelo "autocontrole" estratégico e pela disciplina funcional, até mesmo quando decai na loucura homicida. Os amoques são robôs da concorrência capitalista que ficaram fora de controle: sujeitos da crise, eles desvelam o conceito de sujeito moderno, esclarecido, em todas as suas características.

Mesmo um cego em termos de teoria social deve atentar nos paralelos com os terroristas do 11 de Setembro de 2001 e com os terroristas suicidas da Intifada palestina. Muitos ideólogos ocidentais pretenderam atribuir esses actos incondicionalmente, com visível apologia, ao "âmbito cultural alheio" do Islão. Nas mídias, foi dito de bom grado a respeito dos terroristas de Nova York, formados anos a fio na Alemanha e nos EUA, que, apesar da integração exterior, eles "não chegaram ao Ocidente" do ponto de vista psíquico e espiritual. O fenómeno do islamismo terrorista, com seus atentados suicidas, seria devido ao problema histórico de que não houve no Islão nenhuma época de iluminismo. A afinidade interna manifesta entre os jovens amoques ocidentais e os jovens terroristas suicidas islâmicos comprova exactamente o contrário.

Ambos os fenómenos pertencem ao contexto da globalização capitalista; são o resultado "pós-moderno" último do próprio iluminismo burguês. Justamente porque eles "chegaram" ao Ocidente em todos os aspectos, os jovens estudantes árabes se desenvolveram, tornando-se terroristas. Na verdade, no início do século 21, o Ocidente (diga-se: o carácter imediato do mercado mundial e de sua subjectividade totalitária centrada na concorrência) está em toda a parte, ainda que sob condições distintas. Mas a diferença das condições tem a ver mais com a distinta força do capital do que com a diversidade das culturas. A socialização capitalista não é hoje secundária em todos os continentes, mas sim primária; e o que foi hipostasiado como "diferença cultural" pelos ideólogos pós-modernos faz parte antes de uma superfície ténue.

O diário de um dos dois atiradores amoques de Littleton foi guardado a sete chaves pelas autoridades norte-americanas, não sem razão. Por indiscrição de um funcionário, soube-se que o jovem criminoso havia anotado o seguinte, entre outras fantasias de violência: "Por que não roubar em algum momento um avião e fazê-lo cair sobre Nova York?". Que embaraçoso! O que foi apresentado como atrocidade particularmente pérfida da cultura alheia já havia antes tomado forma na cabeça de um rebento inteiramente da lavra da "freedom and democracy". Há muito tempo a esfera pública oficial recalcou também a informação de que, poucas semanas após o 11 de Setembro nos EUA, um adolescente de 15 anos se havia lançado num pequeno avião sobre um edifício. Com toda a seriedade, as mídias norte-americanas afirmaram que o rapaz havia ingerido uma dose excessiva de preparados contra a acne e que, por isso, teve um distúrbio mental momentâneo. Essa "explicação" é um produto digno da filosofia do iluminismo no seu estágio último positivista.

Na realidade, a "sede de morte" representa um fenómeno social mundial pós-moderno que não está ligado a nenhum lugar social ou cultural particular. Esse impulso não pode ser disfarçado, tomando-se como a soma de meros fenómenos isolados e fortuitos. Pois lembram aquele que realmente age (n)os milhões (de pessoas) que circulam com os mesmos padrões intelectuais e emocionais insolúveis e brincam com as mesmas ideias mórbidas. Só em aparência os terroristas islâmicos se diferenciam dos amoques ocidentais individuais ao reivindicar motivos políticos e religiosos organizados. Ambos estão igualmente longe de um "idealismo" clássico que poderia justificar o sacrifício de si mesmos com objectivos sociais reais.

A respeito das novas e numerosas guerras civis e do vandalismo nos centros ocidentais, o escritor alemão Hans Magnus Enzensberger constatou que aí "não se trata de mais nada". Para entender, é preciso inverter a frase: o que é esse nada de que se trata? É o completo vazio do dinheiro elevado a fim em si mesmo, que agora domina definitivamente a existência como deus secularizado da modernidade. Esse deus reificado não tem em si nenhum conteúdo sensível ou social. Todas as coisas e carências não são reconhecidas em sua qualidade própria, mas antes esta lhes é tirada para "economicizá-las", ou seja, para transformá-las em mera "gelatina" (Marx) da valorização e, desse modo, em material indiferente ("gleich-gültig").

É um engano crer que o cerne dessa concorrência universal seria a auto-afirmação dos indivíduos. Bem pelo contrário, é a pulsão de morte da subjectividade capitalista que vem à luz como última consequência. Quanto mais a concorrência abandona os indivíduos ao vácuo metafísico real do capital, tanto mais facilmente a consciência resvala numa situação que aponta para além do mero "risco" ou "interesse": a indiferença para com todos os outros se reverte na indiferença para com o próprio eu. Abordagens sobre essa nova qualidade da frieza social como "frieza em relação a si próprio" já se apresentavam nos grandes surtos de crise da primeira metade do século 20. A filósofa Hannah Arendt falou nesse sentido de uma cultura da "autoperdição", de uma "perda de si mesmo" dos indivíduos desarraigados e de uma "debilitação do instinto de autoconservação" por causa do "sentimento de que não depende de si mesmo que o próprio eu possa ser substituído por um outro a qualquer momento e em qualquer parte".

Aquela cultura da autoperdição e do auto-esquecimento que Hannah Arendt ainda referia exclusivamente aos regimes políticos totalitários da época se reencontra hoje, de forma muito mais pura, no totalitarismo económico do capital globalizado. O que no passado era estado de sítio torna-se estado normal e permanente: o próprio quotidiano "civil", converte-se na autoperdição total dos homens. Esse estado não concerne somente aos pobres e decaídos mas a todos, porque veio a ser o estado predominante da sociedade mundial. Isso vale particularmente para as crianças e adolescentes, que não têm mais nenhum critério de comparação e nenhum critério de crítica possível. É uma perda de si idêntica e uma perda da capacidade de julgar em vista do imperativo económico avassalador que caracteriza os bandos de espancadores, os saqueadores e os violentadores tanto quanto os auto-exploradores da "new economy" ou os trabalhadores de tela do "investment banking".

O que Hannah Arendt disse sobre os pressupostos do totalitarismo político é hoje a principal tarefa oficial da escola, a saber: "Arrancar das mãos o interesse em si próprio", para transformar as crianças em máquinas produtivas abstractas; mais precisamente, "empresários de si mesmos", portanto sem nenhuma garantia. Essas crianças aprendem que elas precisam sacrificar-se sobre o altar da valorização e ter ainda "prazer" nisso. Os alunos do primário já são entupidos com psicofármacos para que possam competir no "vai ou racha". O resultado é uma psique perturbada de pura insociabilidade, para a qual a auto-afirmação e a autodestruição se tornaram idênticas. É o amoque que necessariamente vem à luz atrás do "automanager" da pós modernidade. E a democracia da economia de mercado chora lágrimas de crocodilo pelas suas crianças perdidas, que ela própria educa sistematicamente para serem monstros autistas.

Folha de S. Paulo, 26.05.2002. Tradução de Luiz Repa. Texto adaptado à escrita de Lisboa e formatado de acordo com o original alemão Der Todestrieb der Konkurrenz (www.krisis.org) por http://planeta.clix.pt/obeco/



Fonte: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz100.htm