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28 maio, 2008

Luta Armada no Brasil - De falácias e má-fé

Por Celso Lungaretti em 27/5/2008



"Em um país sem memória, é muito fácil reescrever a história", afirmou Marco Antonio Villa, que leciona tal matéria na Universidade Federal de São Carlos, em seu artigo "Falácias Sobre a Luta Armada na Ditadura" (Folha de S.Paulo, 19/05/2008).

Confiante nessa facilidade, Villa não se deu sequer ao trabalho de reescrevê-la de com algum apuro, como se constata neste parágrafo, o mais revelador das intenções subjacentes à sua racionália tortuosa:

"Argumentam que não havia outro meio de resistir à ditadura, a não ser pela força. Mais um grave equívoco: muitos dos grupos existiam antes de 1964 e outros foram criados logo depois, quando ainda havia espaço democrático (basta ver a ampla atividade cultural de 1964-1968). Ou seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela participação no sistema político e a simpatia pelo foquismo guevarista antecedem o AI-5 (dezembro de 1968), quando, de fato, houve o fechamento do regime".

Que grupos praticantes da luta armada existiam antes de 1964, quando golpistas armados acabaram com a democracia no Brasil, destituindo o presidente legítimo, subjugando o Congresso, extinguindo partidos e entidades legais, cassando, caçando e torturando?

Conferência da Olas

Refere-se, talvez, às Ligas Camponesas de Francisco Julião, que buscavam timidamente e sem muita eficácia responder à violência desenfreada dos latifundiários. Ou aos "grupos dos 11" brizolistas, constituídos a partir da resistência ao golpe tentado em 1961 e que acabaram servindo apenas como espantalho útil para a propaganda direitista: nem desenvolveram ações características da luta armada, nem conseguiram evitar que a tentativa golpista seguinte fosse vitoriosa.

E quais foram os grupos de luta armada criados "logo depois" de instaurada a ditadura militar? A única ocorrência nessa linha se deu, na verdade, dois anos depois: o início de implantação de focos guerrilheiros por parte de militares expulsos das Forças Armadas, em Caparaó.

Descobertos em abril/1967, foram presos antes mesmo de entrarem em ação. Parafraseando Aparício Torelly, Caparaó foi a guerrilha que não existiu...

A luta armada começou a entrar verdadeiramente na pauta da esquerda brasileira a partir da conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade, em agosto de 1967. Mas, entre a conversão de Carlos Marighella a essa tese e as ações concretas, houve um hiato de vários meses.


Secundária, quase irrelevante

Então, a organização de esquerda que realmente desencadeou a luta armada acabou sendo a VPR, com um assalto a banco que teve toques de comédia de pastelão. No meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), reproduzi assim o relato que ouvi de um dos participantes, o marujo Cláudio de Souza Ribeiro (Matos):

"Nós, os ex-militares, estávamos todos sendo procurados, era difícil arrumar emprego. Chegou um ponto em que não havia mais como conseguir dinheiro para o dia-a-dia. Então, resolvemos expropriar um banco. Naquele momento foi por necessidade mesmo, não como uma opção política. Levamos duas ou três semanas preparando tudo, vigiando a agência, estudando cada detalhe. Adiamos várias vezes, sempre surgia algum imprevisto. Um dia não tínhamos dinheiro mais nem para comer, então decidimos: é hoje! Lá dentro deu tudo certo. Mas o pessoal estava tão afobado que quase foi embora me deixando pra trás. Tive de correr atrás do veículo..."

Segundo o Matos, alguns assaltos depois a VPR decidiu assumir essas expropriações, espalhando panfletos nos locais. E o exemplo foi seguido pelo grupo do Marighella.

O certo é que a luta armada foi secundária, quase irrelevante, ao longo de 1968. Alguns assaltos a bancos e roubo de armamentos, petardos de baixo poder destrutivo colocados na porta do consulado norte-americano e do jornal O Estado de S. Paulo, o carro-bomba lançado contra o QG do II Exército, a morte de um oficial norte-americano que cursava incógnito uma faculdade paulistana. Nem uma centena de militantes envolvidos.

Humilhações, tortura, prisões

Enquanto isso, as passeatas aconteciam no Brasil inteiro e a maior delas, no RJ, conseguiu reunir 100 mil manifestantes, além dos artistas e intelectuais mais ilustres da época. Os movimentos estudantil (principalmente) e operário é que deram a tônica da resistência à ditadura militar nesse ano de notável ascensão do movimento de massas.

Então, pelo menos em relação a 1968, Villa não está muito longe da verdade ao dizer que "a luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, seqüestros, ataques a instalações militares e só". Os militares preferiam minimizá-la e a opinião pública era-lhes indiferente.

Omite, entretanto, que o movimento de massas foi enfrentado com arbitrariedades e violência crescentes por parte da ditadura, começando pelo assassinato do jovem Edson Souto numa inofensiva passeata que tinha lugar num restaurante universitário do Rio de Janeiro.

Seguem-se a ocupação militar do município paulista de Osasco, como se o país estivesse em estado de sítio; a sexta-feira sangrenta no RJ, quando 23 pessoas foram baleadas pela repressão e quatro morreram; espancamentos e humilhações a que eram submetidos manifestantes do país inteiro; a generalização das torturas, cada vez mais brutais; a prisão dos cerca de 1.200 universitários que realizavam o congresso da UNE etc.

O "espaço democrático" entre 64 e 68

Além disso, a ditadura era conivente com a atuação dos grupos paramilitares de direita, que praticaram atentados contra instituições como a OAB e a ABI, seqüestraram a atriz Norma Bengell, espancaram os atores da peça Roda Viva e assassinaram um secundarista na batalha da rua Maria Antônia (quando agentes das polícias civil e militar que cursavam Direito na Universidade Mackenzie, utilizando armamento privativo de suas corporações, travaram luta desigual com estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que só tinham pedras e rojões para se defender).

O próprio AI-5 foi uma resposta ao discurso que o deputado Márcio Moreira Alves pronunciou numa sessão quase deserta da Câmara Federal e à recusa do Congresso em permitir que ele fosse processado (com medo de que esse precedente abrisse caminho para mais cassações).

É indiscutível que, durante todo o ano de 1968, os militares sempre usaram de força desproporcional aos desafios que recebiam, sendo eles os grandes responsáveis pela escalada de radicalização – e não os grupos guerrilheiros, cuja atuação passava quase despercebida.

Quanto à existência de um "espaço democrático" entre 1964 e 1968, é uma afirmação tão risível que faz lembrar a piada sobre meia-virgem – tão inexistente quanto a batalha de Itararé.


O "fechamento do regime"

Depois que se instalaram no poder com toda a truculência (vale lembrar a humilhação e tortura públicas do lendário dirigente comunista Gregório Bezerra, mundialmente repudiadas) e abusaram das arbitrariedades para adequarem o cenário político a seus desígnios, os golpistas sentiram-se seguros para se comportarem como déspotas esclarecidos por uns tempos. Mas, já na repressão bestial às setembradas de 1967 a máscara caiu.

Da mesma forma, as artes e o pensamento só foram poupados do obscurantismo enquanto os Torquemadas ainda não haviam aquilatado sua periculosidade. Quando a ficha lhes caiu, impuseram uma censura tão furibunda quanto ridícula (pelas intervenções desastradas em assuntos muito além de sua capacidade de compreensão).

O "fechamento do regime" – eufemismo para o estabelecimento no Brasil de um totalitarismo comparável ao da Alemanha nazista – criou, sim, uma situação em que "não havia outro meio de resistir à ditadura, a não ser pela força".


Reescrever a história requer talento

Com o Legislativo e o Judiciário de mãos atadas, a suspensão do direito de hábeas corpus e a licença para torturar durante 30 dias (prazo de incomunicabilidade que, aliás, os verdugos ultrapassavam a bel-prazer; no meu caso foram 75 dias), o trabalho de massas se tornou suicida para os que o realizavam de peito aberto; e inócuo, no caso dos cautelosos que recorriam a expedientes como o de deixar panfletos nos banheiros de cinemas, restaurantes e locais de trabalho, sem qualquer resultado concreto).

Então, militantes do movimento de massas que não se deixaram intimidar pelo terrorismo de Estado direcionaram-se maciçamente, a partir da assinatura do AI-5, para a luta armada, com os resultados trágicos que todos conhecemos.

Aquele famigerado 13 de dezembro foi um divisor de águas. Dali em diante, a ditadura passou a ter como derradeira adversária a vanguarda armada e nela concentrou seu poder de fogo imensamente superior até aniquilá-la com torturas e assassinatos (incluindo um sem-número de execuções de resistentes rendidos e indefesos).

A simplificação dessa história equivale à sua desfiguração – e o professor Villa sabe muito bem disso. Acreditou que ninguém percebesse a falácia por ele cometida ao estender aos contingentes que ingressaram na luta armada a partir do AI-5 as acusações que faz aos pioneiros.

E mesmo com estes foi injusto, ao omitir que os de origem militar foram privados de suas carreiras, perseguidos e levados ao desespero pelo arbítrio instaurado no país, não sendo de estranhar, portanto, que acabassem optando por ações desesperadas.

Até para reescrever a história é necessário algum talento. Apenas má-fé não basta.

Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=487MCH002

17 julho, 2007

O Lobby institucionalizado

27 março, 2007

Um assassino Economico

As confissões de um assassino econômico

entrevista de John Perkins [*]


Estamos a falar com John Perkins, um ex-membro respeitado da comunidade de negócios na banca internacional. No livro " Confissões de um Assassino Económico" ( Confessions of an Economic Hit Man ) ele descreve como, enquanto profissional altamente bem pago, ajudou os Estados Unidos a defraudar em triliões de dólares países pobres do globo inteiro, emprestando-lhes mais dinheiro do que aquilo que eles podiam alguma vez pagar para depois se apossar das suas economias. [inclui reprodução sem correcções]

John Perkins descreve-se a si próprio como um ex-assassino económico – um profissional altamente remunerado que defraudou em triliões de dólares países do mundo inteiro. Há 20 anos que Perkins começou a escrever um livro com o título inicial de "Consciência de um Assassino Económico" (Conscience of an Economic Hit Man).


Perkins escreve
“Estava para dedicar este livro aos presidentes de dois países, homens que haviam sido seus clientes, que eu respeitava e considerava serem espíritos idênticos – Jaime Roldós, presidente do Equador, e Omar Torrijos, presidente do Panamá. Ambos morreram há pouco tempo em explosões aéreas. A morte deles não foi acidental. Foram assassinados porque se opuseram àquela fraternidade dos dirigentes das grandes companhias, do governo e da banca, cujo objectivo é o império global. Nós, os Assassinos Económicos não conseguimos persuadir Roldós e Torrijos, e o outro tipo de homens de golpe, os chacais sancionados pela CIA, que estavam sempre por trás de nós, entraram em acção. "


John Perkins continua:
“Eu fui convencido a deixar de escrever este livro. Recomecei-o mais de quatro vezes durante os vinte anos seguintes. Em todas as ocasiões, a minha decisão de voltar a começar foi influenciada pelos acontecimentos mundiais da época; a invasão do Panamá em 1980, a primeira guerra do Golfo, a Somália e a revolta de Osama Bin Laden. No entanto, as ameaças ou os subornos acabaram sempre por me convencer a parar”.


Mas finalmente Perkins publicou agora a sua história. O livro intitula-se Confessions of an Economic Hit Man. John Perkins está connosco aqui nos nossos estúdios de Firehouse. Ele trabalhou de 1971 a 1981 na firma internacional de consultoria de Chas T. Main onde era um “assassino económico”, como se descreve a si próprio. É o autor do recente livro Confessions of an Economic Hit Man.


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AMY GOODMAN: John Perkins está conosco aqui no nosso estúdio Firehouse. Bem-vindos ao programa Democracy Now!

JOHN PERKINS: Obrigado, Amy. É ótimo estar aqui.


AMY GOODMAN: É bom tê-lo aqui conosco. Vamos, explique-nos esta expressão “assassino econômico” (economic hit man), e.h.m., como lhe chama.

JOHN PERKINS: Basicamente aquilo para que somos treinados e aquilo a que o nosso trabalho se destina, é construir o império americano. Provocar... criar situações em que a maior parte possível dos recursos convirjam para este país, para as nossas companhias, e para o nosso governo. E na verdade, temos sido muito bem sucedidos. Construímos o maior império da história do mundo. Isto tem sido feito durante os últimos 50 anos, desde a II Guerra Mundial, de fato com pouco uso de poder militar. Só em ocasiões muito raras, como no Iraque, é que os militares aparecem como último recurso. Este império, ao invés de qualquer outro na história universal, foi construído principalmente através da manipulação econômica, através da burla, da fraude, da atração das pessoas para o nosso modo de vida, dos assassinos econômicos. Eu tomei parte nisso, em grande medida.


AMY GOODMAN: Como é que se tornou um deles? Para quem trabalhou?

JOHN PERKINS: Bem, inicialmente fui contratado quando estava na business school, nos finais dos anos sessenta, pela National Security Agency, a maior mas menos bem conhecida organização de espionagem; mas por fim trabalhei em empresas privadas.

O primeiro verdadeiro assassino econômico surgiu nos princípios dos anos 50, Kermit Roosevelt, neto de Teddy, que derrubou o governo do Irã, um governo democraticamente eleito, o governo de Mossadegh, que tinha sido a pessoa do ano da revista Time. Foi muito bem sucedido em fazer isso sem derramamento de sangue... bem, houve algum derramamento de sangue, mas não houve intervenção militar, apenas se gastaram milhões de dólares e substituiu-se Mossadegh pelo Xá do Irã. Nessa altura, percebemos que esta idéia de assassino económico era muitíssimo boa. Não tínhamos que nos preocupar com a ameaça de guerra com a Rússia se o conseguíssemos fazer desta maneira.

O problema era que desta forma Roosevelt passava a ser um agente da CIA. Ele era um funcionário do governo. Se fosse apanhado, ficaríamos metidos num grande sarilho. Ia ser muito constrangedor. Por isso, nessa altura, a decisão foi utilizar organizações como a CIA e a NSA para recrutar potenciais homens de golpe econômico como eu, e depois colocá-los a trabalhar em companhias privadas de consultoria, empresas de engenharia, companhias de construção... para que, se fôssemos apanhados, não pudesse haver ligação com o governo.



AMY GOODMAN: Bom. Fale-nos da companhia onde trabalhava.


JOHN PERKINS: Bem, a companhia onde trabalhava era uma companhia chamada Chas. T. Main em Boston, Massachusetts. Éramos cerca de 2000 empregados, e eu fui nomeado economista chefe. Acabei por ter cinquenta pessoas a trabalhar para mim.

Mas o meu verdadeiro trabalho era fazer negócios. Ou seja, conceder empréstimos a outros países, empréstimos gigantescos, muito maiores do que aquilo que eles algum dia poderiam pagar.

Uma das condições para conceder o empréstimo - digamos, de um bilhão de dólares para um país como a Indonésia ou o Equador - era que depois esse país tinha que pagar noventa por cento desse empréstimo a uma companhia americana, ou para companhias americanas, para construirem infra-estruturas – uma Halliburton ou uma Bechtel. Estas eram as maiores. Depois essas companhias iam para lá e construíam um sistema de electricidade ou portos ou auto-estradas que basicamente serviam apenas algumas das mais ricas famílias desses países. Em última análise, a gente pobre desses países ficava afogada nesta espantosa dívida que nunca poderia pagar.

Hoje, um país como o Equador deve mais de cinquenta por cento do seu orçamento nacional só para pagar a sua dívida. E claro que não consegue fazê-lo. Por isso, temo-los literalmente em cima dum barril. Assim, quando queremos mais petróleo, vamos ao Equador e dizemos, “Olhem, vocês não conseguem pagar a sua dívida, portanto, dêem às nossas companhias petrolíferas as florestas tropicais do Amazonas, que estão repletas de petróleo.” E hoje chegamos lá e destruímos as florestas tropicais do Amazonas, forçando o Equador a entregá-las porque acumularam toda essa dívida.

Assim, fazemos estes grandes empréstimos, a maior parte deles volta para os Estados Unidos, o país fica com a dívida mais imensos juros e, na prática, tornam-se nossos criados, nossos escravos. É um império. Não há dúvidas quanto a isto. É um império monstruoso. Tem sido extremamente bem sucedido.



AMY GOODMAN: Você diz que, por causa de subornos e por outras razões, deixou de escrever este livro durante muito tempo. O que é que quer dizer com isso? Quem tentou suborná-lo ou quem... que subornos é que aceitou?

JOHN PERKINS: Bem, nos anos noventa aceitei um suborno de meio milhão de dólares para não escrever o livro.


AMY GOODMAN: De quem?

JOHN PERKINS: De uma das maiores companhias de construção civil.


AMY GOODMAN: Qual delas?

JOHN PERKINS: Legalmente falando, não era... a Stoner-Webster. Legalmente falando não foi um suborno, foi... um pagamento por eu ser consultor. Foi tudo muito legal. Mas no fundo eu não fazia nada. Era um entendimento, como expliquei nas Confessions of an Economic Hit Man, que estava... para mim estava... estava implícito, quando aceitei este dinheiro como consultor, que eu não teria muito trabalho, mas não podia escrever quaisquer livros sobre o assunto, pois eles tinham conhecimento que eu estava a escrever este livro, a que nessa altura eu chamava 'Conscience of an Economic Hit Man'. E devo dizer-lhe, Amy, que é uma história extraordinária do ponto de vista de ... É quase à James Bond, na verdade. E eu quero dizer...


AMY GOODMAN: Bem, de facto é como se lê o livro.

JOHN PERKINS: Pois, era mesmo, não era? Quando a National Security Agency me contratou, fizeram-me testes num detector de mentiras durante um dia inteiro. Descobriram todos os meus pontos fracos e seduziram-me imediatamente. Utilizaram as drogas mais fortes da nossa cultura, o sexo, o poder e o dinheiro para me dominarem. Eu venho duma família muito antiga de New England, calvinista, mergulhada em valores morais espantosamente fortes. Sabe, eu acho que de uma forma genérica sou uma boa pessoa e penso que a minha história mostra verdadeiramente como este sistema e estas poderosas drogas do sexo, do dinheiro e do poder podem seduzir as pessoas, porque eu fui mesmo seduzido. E se eu não tivesse vivido esta vida de assassino económico, acho que teria passado um mau bocado só de pensar que havia quem fizesse estas coisas. E foi por isso que escrevi este livro, porque o nosso país precisa mesmo de perceber, se as pessoas desta nação percebessem o que é a nossa política internacional, o que é a ajuda internacional, como trabalham as nossas empresas, para onde vai o dinheiro dos nossos impostos, tenho a certeza de que exigiriam uma mudança.


AMY GOODMAN: No seu livro, fala de como ajudou a implementar um esquema secreto para recambiar para a economia americana milhares de milhões de dólares dos petrodólares da Arábia Saudita, e para posteriormente cimentar a estreita relação entre a Casa de Saud e as sucessivas administrações dos Estados Unidos. Explique isto.

JOHN PERKINS: Sim, foi uma época fascinante. Lembro-me bem, você é que devia ser demasiado jovem para se lembrar, mas eu lembro-me bem de como, no princípio dos anos setenta. a OPEP exercia o poder que tinha e cortou o fornecimento de petróleo. Os nossos carros faziam fila nos postos de gasolina. O país estava com medo de se encontrar noutra crise de colapso-depressão tipo 1929; e isto era inaceitável. Então, eles – o Departamento do Tesouro, contrataram-me a mim e a outros homens de golpe económico. Fomos para a Arábia Saudita. Nós...


AMY GOODMAN: Vocês intitulavam-se mesmo assassinos económicos... e.h.m.'s?

JOHN PERKINS: Sim, era um termo cifrado com que nos tratávamos a nós próprios. Oficialmente, eu era um economista chefe. Tratávamo-nos a nós próprios e.h.m.'s. Era cifrado. Era como se, ninguém ia acreditar em nós se disséssemos isto, não acha?

E então, fomos para a Arábia Saudita no princípio dos anos setenta. Sabíamos que a Arábia Saudita era a chave para eliminar a nossa dependência, ou para controlar a situação. E trabalhamos nesse negócio no qual a Casa Real de Saud concordava em enviar a maior parte dos seus petrodólares para os Estados Unidos e investi-los nas acções do governo dos Estados Unidos. O Departamento do Tesouro utilizava os juros destas acções para contratar companhias americanas para a construção de novas cidades na Arábia Saudita, de novas infra-estruturas... o que cumprimos. E a Casa de Saud concordava em manter o preço do petróleo dentro de limites aceitáveis para nós, o que eles têm feito durante todos estes anos, e nós concordávamos em manter a Casa de Saud no poder enquanto eles cumprissem isso, o que cumprimos, e que é uma das principais razões por que entramos em guerra com o Iraque.

E no Iraque tentámos implementar a mesma política que tinha sido tão bem sucedida na Arábia Saudita, mas Saddam Hussein não foi na conversa. Quando os homens de golpe econômico falham neste cenário, o passo seguinte são os chacais, como lhes chamamos. Os chacais são pessoas sancionadas pela CIA que chegam e tentam fomentar um golpe ou uma revolução. Se isso não resultar, passam aos assassinatos ou tentam fazê-lo.

No caso do Iraque, não conseguiram chegar até Saddam Hussein.
Ele tinha... Os guarda costas eram bons demais. Ele tinha duplos. Não conseguiram chegar até ele. Então, quando os homens de golpe econômico e os chacais falham, a terceira linha de defesa, a linha de defesa seguinte são os nossos rapazes e raparigas que são enviados para morrer e para matar, que é sem dúvida o que estamos a fazer no Iraque.



AMY GOODMAN: Pode explicar como é que Torrijos morreu?

JOHN PERKINS: Omar Torrijos, o presidente do Panamá. Omar Torrijos tinha assinado o Tratado do Canal com o Carter muito... e, sabe, passou no congresso por apenas um voto. Era uma questão altamente polémica.

Mas depois Torrijos seguiu em frente e negociou com o Japão a construção de um canal ao nível do mar. Os japoneses queriam financiar e construir no Panamá um canal ao nível do mar. Torrijos conversou com eles sobre isto, o que muito aborreceu a Corporation Bechtel, cujo presidente era George Schultz e o advogado sénior era Casper Weinberger.

Quando Carter foi corrido (e esta é uma história interessante... como é que isso aconteceu na realidade), quando ele perdeu as eleições, e entrou Reagan e Schultz veio da Bechtel para secretário de Estado, e Weinberger veio da Betchel para secretário da Defesa, estavam todos muito irritados com Torrijos... tentaram convencê-lo a renegociar o Tratado do Canal e a não falar com os japoneses. Ele recusou obstinadamente. Era um homem de princípios. Tinha os seus problemas, mas era um homem de princípios. Era um homem extraordinário, Torrijos.

E então, morreu numa explosão do avião, que foi provocada por um gravador com explosivos lá dentro, que... eu estava lá. Tinha estado a trabalhar com ele. Eu sabia que nós, os assassinos econômicos, havíamos falhado. Eu sabia que os chacais estavam a cercá-lo e, logo a seguir, o avião explodiu com uma bomba dentro de um gravador. Não tenho a menor dúvida que foi com a sanção da CIA e mais... a maior parte dos investigadores da América latina chegaram à mesma conclusão. Claro, nunca se ouviu falar de tal coisa no nosso país.



AMY GOODMAN: Então, onde... quando é que se deu a sua mudança?

JOHN PERKINS: Sempre senti um sentimento de culpa, mas deixei-me seduzir. O poder destas drogas, o sexo, o poder e o dinheiro, era forte demais para mim. E, claro, eu estava a fazer coisas para as quais tinha sido estimulado com pancadinhas nas costas. Eu era economista chefe. Eu estava a fazer coisas de que Robert McNamara gostava e por aí fora.


AMY GOODMAN: Até que ponto era a sua relação de trabalho com o Banco Mundial?

JOHN PERKINS: Muito, muito próxima com o Banco Mundial. O Banco Mundial fornece a maior parte do dinheiro que é utilizado pelos assassinos econômicos, ele e o FMI. Mas, quando houve o atentado de 11 de Setembro, senti um choque. Percebi que tinha que contar a história porque aquilo que aconteceu no 11 de Setembro é o resultado direto do que os assassinos econômicos têm vindo a fazer.

E a única maneira de nos sentirmos outra vez em segurança neste país e de nos sentirmos bem com nós mesmos, é utilizarmos estes sistemas que implementámos para criar uma mudança positiva em todo o mundo. Estou convencido que podemos fazer isso.

Acho que é possível dar a volta ao Banco Mundial e a outras instituições para fazerem aquilo a que originalmente se destinavam, ajudar a reconstruir partes devastadas do mundo.

Ajudar… ajudar verdadeiramente as pessoas pobres. Há vinte e quatro mil pessoas a morrer de fome todos os dias. Nós podemos alterar isso.



AMY GOODMAN: John Perkins, quero agradecer-lhe imenso por ter estado connosco.

O livro de John Perkins intitula-se Confessions of an Economic Hit Man.


[*] Entrevista a John Perkins realizada em 09/Nov/2004 no programa 'Democracy Now'.
Tradução de Margarida Ferreira

Original:
http://www.democracynow.org/article.pl?sid=04/11/09/1526251#transcript

Fonte: http://resistir.info/eua/perkins_hit_man_port.html

23 fevereiro, 2007

Perversão da linguagem

Linguagem Moderna



por Eduardo Galeano


Na era vitoriana, as calças não podiam ser mencionadas na presença de uma senhorita.

Hoje, não fica bem dizer certas coisas na presença da opinião pública. O capitalismo ostenta o nome artístico de economia de mercado, o imperialismo chama-se globalização.

As vítimas do imperialismo chamam-se países em vias de desenvolvimento, o que é como chamar de crianças os anões.

O oportunismo chama-se pragmatismo, a traição chama-se realismo.

Os pobres chamam-se carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos.

A expulsão das crianças pobres do sistema educativo é conhecida sob o nome de deserção escolar.

O direito do patrão a despedir o operário sem indenização nem explicação chama-se flexibilização do mercado laboral.

A linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria.

Ao invés de ditadura militar, diz-se processo.

As torturas chamam-se pressões ilegais, ou também pressões físicas e psicológicas.

Quando os ladrões são de boa família, não são ladrões, e sim cleptômanos.

O saqueio dos fundos públicos pelos políticos corruptos responde pelo nome de enriquecimento ilícito.

Chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos automóveis.

Para dizer cegos, diz-se não visuais, um negro é um homem de cor.

Onde se diz longa e penosa enfermidade, deve-se ler cancro ou Aids.

Doença repentina significa enfarte, nunca se diz morte e sim desaparecimento físico.

Tampouco são mortos os seres humanos aniquilados nas operações militares.

Os mortos em batalha são baixas, e as de civis que a acompanham são danos colaterais.

Em 1995, aquando das explosões nucleares da França no Pacífico Sul, o embaixador francês na Nova Zelândia declarou: "Não me agrada essa palavra bomba, não são bombas. São artefatos que explodem".

Chamam-se "Conviver" alguns dos bandos que assassinam pessoas na Colômbia, à sombra da proteção militar.

Dignidade era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e Liberdade a maior prisão da ditadura uruguaia.

Chama-se Paz e Justiça o grupo paramilitar que, em 1997, metralhou pelas costas quarenta e cinco camponeses, quase todos mulheres e crianças, no momento em que rezavam numa igreja da aldeia de Acteal, em Chiapas.


Fonte (tradução) http://resistir.info/galeano/galeano_medo_global.html

28 dezembro, 2006

Genero na Sociedade atual


Gênero e Valor na sociedade moderna


Publicado em 09/01/00 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.


Segundo o mito de criação bíblico, a mulher nasceu quando Deus retirou uma costela ao homem. Essa imagem patriarcal é dúbia: de um lado, a mulher parece um simples apêndice do homem; de outro, porém, subentende-se que o homem, ao ser "cindido" de sua parte feminina, é ele próprio ferido e sofre uma perda. O problema, claro, não está no plano da anatomia. A "pequena diferença" que as crianças descobrem precocemente em seus corpos não diz nada, em essência, sobre a maneira que as atribuições culturais e sociais são repartidas entre os sexos.


O domínio masculino (patriarcado) não decorre de caracteres biológicos, antes é um aspecto básico da forma social, sendo portanto o resultado de processos históricos. Por isso o patriarcado está longe de ser verificado em todas as culturas. Na história sempre houve sociedades que conheceram uma relação bastante igualitária entre os sexos. E cotejos interculturais mostram que também aquelas "qualidades" sociais ou psíquicas, rotuladas com aparente espontaneidade como "tipicamente femininas" ou "masculinas", podem revelar-se sob formas totalmente contraditórias em épocas diversas, em diversas estruturas sociais e diversos modos de produção.


O universalismo abstrato do moderno sistema produtor de mercadorias sempre despertou a impressão de que fosse relativamente neutro sob o prisma sexual. Mercadoria é mercadoria e dinheiro é dinheiro; onde estaria inscrita aí uma valoração sobre os sexos? A sobrevivência das estruturas patriarcais na família e na sociedade podia parecer assim, numa análise superficial, um mero resquício do passado pré-moderno. Nesse sentido, o feminismo reivindicou desde a Revolução Francesa uma "igualdade de direitos", tal como a prometia a forma universal da economia monetária moderna. Desse ponto de vista, a redução masculina do lema "liberdade, igualdade, fraternidade" era um puro arbítrio da dominação masculina herdada do passado, devendo ser ampliada para abarcar não só uma fraternidade entre "irmãos", mas também entre "irmãs".


Até hoje o feminismo como política não foi além da exigência de participação feminina no universalismo do moderno sistema produtor de mercadorias. O "homem abstrato", o átomo individual da sociedade, pode ser tanto homem quanto mulher. De outro lado, a pesquisa histórica e sociológica feminista descobriu há tempos que a desvantagem e a depreciação da mulher na modernidade não representam nem um "resquício" de relações pré-modernas nem uma simples vindicação masculina do poder, mas radicam profundamente nessas próprias relações modernas. Isso porque o moderno sistema produtor de mercadorias não é tão universal como parece ser. Ele tem de certa forma um reverso, que permanece obscuro na sociologia oficial. Refiro-me a todos os âmbitos e aspectos da vida que não se deixam exprimir em dinheiro. E esse reverso do sistema é tudo menos sexualmente neutro, pois dele basicamente as mulheres foram feitas responsáveis.


Trata-se, por um lado, de certas atividades concretas que se dão no horizonte doméstico, para além da produção de mercadorias: cozinhar, lavar roupa, fazer faxina, cuidar dos filhos etc. Por outro lado, essa tarefa definida como "feminina" transcende a atividade meramente mecânica; a mulher deve ainda criar uma atmosfera agradável e afetuosa, na qual não impere o tom cortante da concorrência como "na vida lá fora", no espaço público capitalista da economia, da política e da ciência. A mulher, portanto, é responsável pela "dedicação afetiva", de uma certa maneira, pelo "trabalho amoroso" dedicado ao homem e aos filhos. Assim, é uma das "virtudes femininas" ter faro para relações pessoais, ser emotiva e "meiga"; em compensação, o homem deve bancar o intelectual, o durão, alguém pronto para a concorrência. Para tanto, não precisa ser bonito, o que por sua vez é o primeiro dever da mulher.


Ao contrário de opiniões correntes, a modernização não atenuou o patriarcado, antes o agravou. Foi primeiro a economia capitalista que cindiu de forma tão extrema homem e mulher, como se fossem seres de planetas diferentes. Nas sociedades pré-modernas ainda não havia uma divisão estrita entre a produção de bens e a gestão doméstica. Por isso as atribuições sexuais eram também menos unívocas; as mulheres tinham o seu próprio lugar na produção agrária e artesanal. A moderna economia de mercado, pelo contrário, transformou a produção de bens numa esfera economicamente autônoma, numa esfera da maximização empresarial abstrata dos lucros, e, com isso, num aspecto central da esfera pública burguesa dominada pelo sexo masculino. Capitalistas e empresários, como bem se sabe, assim como políticos, são sobretudo homens.


Essa nova e agravada repartição funcional entre os sexos na modernidade não podia ser igualitária. As atividades e condutas definidas como "femininas", é verdade, são tão necessárias à sobrevivência da sociedade quanto a produção de bens, que foi deslocada para o campo funcional "masculino" da lógica empresarial. Mas a cota dessas atividades e condutas na produção geral da sociedade não foi creditada às mulheres. Justamente porque foram feitas responsáveis por tudo o que, pela sua natureza, não se deixa exprimir em dinheiro e, portanto, "não tem valor" segundo os critérios capitalistas, a mulher foi considerada, a exemplo de suas esferas de atividade, de suas qualidades e virtudes imputadas, como inferiores e secundárias.


Claro que, na modernidade, mulheres sempre foram encontradas no ambiente burguês, tanto nas atividades remuneradas da esfera econômica quanto na política, na cultura etc. Mas o estigma de sua depreciação sexual perdurou também nesses âmbitos. Uma mulher com profissão ou politicamente ativa não se desvencilha das marcas sociais que lhe são imputadas pela cultura dominante masculina. Ela continua, em princípio, como responsável pela cozinha, pelos filhos e pelo "amor", ou seja, nunca é levada a sério na economia ou na política. E este não é somente um modelo imposto de fora, mas também um aspecto psicologicamente introjetado, cuja origem é a socialização feminina. Como todos sabem, as mulheres são até hoje em menor número que os homens nas atividades profissionais e públicas; muito mais raramente elas alcançam posições de destaque e, em regra, são pior remuneradas.


Aqui vem à tona o dilema do movimento feminista: para realmente superar o patriarcado, ele teria de pôr radicalmente em dúvida todo o modo de produção moderno; não no sentido, claro, de uma idealização retrógrada das relações agrárias, mas como exigência de uma forma de organização fundamentalmente diversa das forças produtivas modernas. Enquanto a racionalidade destrutiva e "masculina" da lógica empresarial não for rompida, serão também perpetuadas as formas de atividade e as pseudoqualidades definidas como inferiores e relegadas à esfera privada. Só para além da cisão estrutural entre uma "lógica do dinheiro", de um lado, e uma "falta de lógica" da vida doméstica, da dedicação pessoal e da emotividade, de outro, poderia florescer uma relação emancipatória entre homens e mulheres.


Um feminismo, ao contrário, que se limite à exigência de "direitos iguais" no interior do modo de produção dominante há necessariamente de sucumbir à forma cindida da vida social. Sempre caíram em ouvidos moucos o apelo de que os homens devessem participar em igual medida das atividades e condutas cindidas no seio da vida pessoal e familiar. Inversamente, a visão feminista estreita-se cada vez mais, e de forma automática, à esfera econômico-política. A emancipação feminina não é medida pela mudança dos homens no âmbito privado, mas pela mudança das mulheres no âmbito público. O modelo pós-moderno não é mais a mulherzinha dengosa e de miolo mole, mas o tipo andrógino da "mulher de carreira". Ao lado da loiraça oxigenada, da vampe e da mãe extremosa, fiel dona de casa, surge a banqueira que faz jogging e surfa na Internet, em cujo caminho de solteira ela passa, feito um homem, por cima de tudo e de todos.


De fato, pelo menos nas metrópoles do mercado financeiro, parece haver uma sinistra convergência entre os sexos e suas atribuições.0 Enquanto a mulher de profissão é obrigada a demonstrar uma boa dose de rigor e "frieza" emocional para subir na vida, a gestão pós-moderna descobriu, por sua vez, a chamada "inteligência emocional" para o cálculo empresarial e o planejamento individual de sucesso na luta da concorrência. Em livros e em seminários é oferecido um programa inovador de treinamento para "empresários sensíveis". "Peritos em emoção" e "estudiosos da emoção" surgem aos montes, tagarelam sem parar. Fala-se tanto de uma "cultura da emoção" quanto de um "empresariado estressado". Trata-se, portanto, de manipular e regular funcionalmente as sensações subjetivas e os sentimentos próprios. A emotividade, circunscrita até hoje à esfera privada e delegada à mulher, deve ser carreada para fins capitalistas e transformada, de certa maneira, numa fórmula de sucesso.


A perversidade desse propósito fica especialmente clara quando a "tecnologia emocional" aparece como gestão empresarial ou política de subalternos. O economista alemão Hans Haumer, por exemplo, fala nesse sentido de um "capital emocional" cuja função é render "suficientes ganhos". A medida para tanto é um "coeficiente emocional de capital", que indicaria a grandeza com que a "tecnologia humana" da dedicação pessoal reverte em benefício do lucro da empresa. Implicado nisso está a exigência, pela "racionalização emocional", da sujeição dos trabalhadores aos reclamos da flexibilidade empresarial, a aceitação de desmandos de toda espécie e o estímulo da produtividade individual. O chefe "emocionalmente inteligente" evita atritos pessoais e passa aos trabalhadores a sensação de que são amados e reconhecidos, mesmo quando ele os trata feito simples material humano. O rendimento do "capital emocional" atingiria o auge de eficiência quando as pessoas, comovidas às lágrimas, agradecessem ao empresário o fato de serem postas no olho da rua.


É nítida, nesse caso, uma reintegração das formas de vida e comportamentos cindidos, mas no sentido errado: o sistema econômico autonomizado começa a tragar as normas, modelos e "qualidades" reservados até agora ao âmbito doméstico e à intimidade, a fim de instrumentalizá-lo no sentido da lógica do dinheiro. Só dentro desses horizontes os homens pós-modernos são mais emocionais que no passado, enquanto a mulher pós-moderna pode agora empregar de modo economicamente funcional suas "virtudes femininas" a-socializadas. O que na mídia é sugerido como distensão na batalha dos sexos sob a forma de futebol feminino, strip-tease masculino ou casamento de homossexuais, na verdade resulta na redução economicamente funcional da esfera doméstica, antes um reduto dos sentimentos. A androginia consiste em que indivíduos de ambos os sexos, em igual medida, mobilizem "ternura e frieza" para a concorrência e aliem a competência técnica à competência emocional, a fim de manter a todo vapor a máquina de fazer dinheiro.


Se no passado a emotividade doméstica da sociedade capitalista era repartida de maneira desigual, agora ela se acha para sempre destruída. Pois justo nesse aspecto vigora ironicamente a lei da escassez. O que é consumido em dedicação e sentimento pessoal na empresa, no propósito de manter lubrificada a máquina econômica, perde-se para o âmbito cindido da vida privada e da intimidade. Se as atividades e condutas "femininas", na qualidade de reverso da produção de mercadorias, não forem superadas juntamente com a economia capitalista, sendo antes tragadas por essa própria economia, então o resultado pode ser apenas uma nova dimensão da crise. Os aspectos necessários da vida social, embora não representáveis em forma monetária, não serão assim repartidos igualmente entre homem e mulher; quando muito, virarão ruínas.


O que hoje dá o tom é o modelo televisivo da "mulher dinâmica", que junta carreira e família sob o mesmo teto e ainda por cima se embeleza diariamente para arrancar suspiros como "objeto do desejo". Mas para a maioria isso é exigir muito, algo de todo inviável. A porcentagem das mulheres que consegue esse malabarismo é infimamente baixa. Só uma reduzida minoria de "mulheres de carreira" pode dar-se ao luxo de uma tal ilusão, delegando o fardo da administração do lar, dos cuidados com os filhos etc. a empregadas domésticas (imigrantes, negras, desprivilegiadas), que, por sua vez, deixam de ter tempo para seus próprios filhos. O grosso das mulheres está absurdamente sobrecarregado com a tarefa de responder, ao mesmo tempo, pelo dinheiro, pelas atividades domésticas e pelo "amor". Na pós-modernidade o patriarcado não some, antes "se embrutece" e se estilhaça em formas múltiplas de barbárie, como escreve a feminista alemã Roswitha Scholz. Este é o mundo que transforma crianças em assassinos e psicopatas.


Robert Kurz


Fonte: http://www.nossacasa.net/dire/texto.asp?texto=70aa


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26 dezembro, 2006

Mercado - Vantagens Comparativas


Buracos de rato para elefantes



Oferta de lugar no capitalismo para gigantes como o Brasil não passa de cinismo.


Por Robert Kurz


Por muito tempo, a esperança social nos países do Terceiro Mundo esteve voltada para o paradigma da "libertação nacional". A dependência às economias imperiais dos antigos Estados industriais devia ser superada em favor de uma industrialização nacional autônoma.


O meio para tanto foi sempre uma maior ou menor impermeabilidade ao mercado mundial, a fim de concentrar-se na própria economia interna. As importações dos países industrialmente avançados deviam ser substituídas na medida do possível pela produção própria. Essa estratégia, que como se sabe gozou por um bom tempo de primazia em suas incontáveis versões, não pôde desenvolver uma alternativa histórica ao capitalismo ocidental, mas seja como for representou em vários Estados a tentativa de conduzir todo o país à "modernização" e distribuir a cada qual os frutos do desenvolvimento.


Em muitos aspectos formais pode-se comparar tal projeto com o mercantilismo, a doutrina do absolutismo europeu nos séculos 17 e 18. Mas na teoria desenvolvimentista do Terceiro Mundo tratava-se apenas de um "mercantilismo pela metade". A exemplo da política econômica dos velhos príncipes absolutistas, a importação de mercadorias devia ser limitada e o Estado ser o responsável pelo planejamento da economia nacional ou mesmo agir ele próprio como empresário. À diferença do mercantilismo histórico, porém, a exportação a todo custo não era o objetivo, mas ao contrário a concentração no próprio desenvolvimento interno.


Essa diferença pode ser também facilmente explicada. A doutrina mercantilista apoiava-se na exportação porque não queria, em primeiro lugar, desenvolver o próprio país como tal, mas antes arrancar aos demais países o máximo de dinheiro possível, a fim de engrossar os fundos de guerra dos príncipes salteadores. O exército e a suntuosidade da corte absolutista eram glutões insaciáveis de moeda. Os regimes desenvolvimentistas do Terceiro Mundo possuíam igualmente certos traços "absolutistas": eram autoritários, não raro também propensos à ruinosa ambição militar e à pompa burocrática irracional. De outro lado, no entanto, eles eram vincados por um momento socialmente emancipatório que se sedimentou na opção do desenvolvimento interno. Talvez eles fossem menos afeitos à exportação porque, como retardatários históricos, não podiam se impor da mesma forma que o absolutismo europeu, que ainda nada tivera a temer com a concorrência superior no mercado mundial.


O modelo político de desenvolvimento do Terceiro Mundo caiu por terra. Já antes de seu flagrante colapso ele padeceu uma longa agonia. Pois logo ficou patente que a impermeabilidade ao mercado mundial era absolutamente impossível, caso não se quisesse deixar de lado o objetivo do próprio desenvolvimento industrial. A substituição das importações impôs-se apenas a produtos relativamente simples e pouco numerosos. Muitos componentes necessários para uma produção industrial abrangente não podiam ser elaborados pelos países do Terceiro Mundo. Se mesmo assim quisessem desenvolver-se industrialmente, eles tinham antes de tudo de importar tais componentes do mundo ocidental. Pouco a pouco, a economia do desenvolvimento viu-se a contragosto obrigada a curvar-se à exportação ou até a um "mercantilismo total", muitas vezes à custa do abastecimento interno de bens de consumo e mantimentos básicos. A pobreza, que se quisera eliminar, batia de novo à porta dos fundos.


Como a disparidade entre os custos de importação e as receitas de exportação aumentasse cada vez mais, os regimes resolveram-se pela contração de dívidas no mercado financeiro mundial. Ora, com isso a perspectiva do desenvolvimento interno viu-se de uma vez por todas denegada. De fato, agora patenteava-se que já a médio prazo os custos para os créditos resultavam mais elevados que as rendas dos investimentos financiados com ajuda desses mesmos créditos.


O saldo foi a crise de endividamento do Terceiro Mundo, que desde então não pára de inchar. Trocando em miúdos, as rendas com a exportação já não podiam sequer ser utilizadas para o desenvolvimento interno da economia, mas quase exclusivamente para cobrir as dívidas nos mercados financeiros globais. Isso em nada mudou até hoje. A maioria dos países do Terceiro Mundo verte sangue. Os velhos regimes desenvolvimentistas transformaram-se em feitores do capital monetário transnacional e desse modo perderam todo momento emancipatório.


Desta necessidade fizeram virtude as instituições internacionais como o Banco Mundial e o FMI, sob a égide da abertura neoliberal ao mercado global. Elas prometem uma nova perspectiva, diametralmente oposta à antiga teoria do desenvolvimento: agora o desenvolvimento não cabe mais à substituição de importações e à vasta industrialização interna, mas antes a uma industrialização voltada às exportações.


Isso significa que já não se aspira mais a um complexo industrial amplo e escalonado, que englobe todos os setores essenciais, desde a indústria de base até a produção de bens de consumo, e garanta a coesão da economia interna. Em vez disso, cada país há de procurar seu "produto de exportação" específico, de acordo com a teoria do livre-cambismo, e concentrar-se naqueles produtos que podem ser manufaturados com custos relativamente baixos e para os quais vigoram portanto "vantagens comparativas".


Infelizmente, essa teoria das "vantagens comparativas" de David Ricardo (1772-1823) não vingou nem mesmo no passado. Quando muito ela podia funcionar quando se tratasse de uma troca entre nações que, em primeiro lugar, promovem o grosso de sua reprodução por meio da economia interna e exportam ou importam relativamente poucos produtos e que, em segundo lugar, possuem quase o mesmo nível de desenvolvimento. Ambas as condições aplicam-se menos do que nunca ao mundo atual. Não há que se falar nem em nível comparável de desenvolvimento nem em economias coligadas.


A globalização do capital já é uma manifestação da crise histórica que alcançou também os países da metrópole capitalista. Eis por que todavia o declínio do desenvolvimento não diminuiu. A crise tem portanto de atingir com tanto mais virulência os antigos "países em desenvolvimento". A rigor, os conceitos "exportação" e "importação" tornaram-se absurdos. Somente no plano formal trata-se ainda de uma troca entre economias nacionais independentes.


Por isso, também a expressão "vantagens comparativas" caiu no absurdo. De modo algum procede que as nações produzam o grosso para si e importem e exportem somente os produtos para os quais vigoram "vantagens comparativas". O novo imediatismo do mercado mundial impõe a manufatura sucessiva e excludente dos produtos capazes de encontrar seu lugar ao sol a preços relativamente mais baixos e largar mão de tudo mais. Mesmo a Ricardo isto seria um descalabro ou uma inconsequência.


A totalidade dos países só pode ocupar uns poucos nichos de exportação, ao passo que o resto é inundado e sufocado pela oferta globalizada. Os países deixam de ser países e tornam-se zonas do mercado mundial com diferentes densidades. E isto equivale a afirmar que a possibilidade de existência abre-se somente a quantos sejam capazes de tomar posse dos nichos do mercado mundial. Isso não toca apenas aos trabalhadores, mas também aos empresários.


A bem da verdade, a chamada industrialização seletiva voltada para as exportações não é um projeto econômico, mas simplesmente empresarial. Os ideólogos do livre-cambismo, a quem já no século 19 coubera a ruína de vários milhões de pessoas, argumentam agora que a situação não é necessariamente essa. Como suposta prova, eles invocam os "pequenos tigres" do Sudeste asiático. Há muitas razões por que também a opção dos "pequenos tigres" não é sustentável a longo prazo. Eles não vivem somente de ciclos globais deficitários, mas também ameaçam a todo instante recair em novas crises de endividamento graças aos custos com infra-estrutura e investimentos na área de racionalização. Afora isso, resta saber se o sucesso relativo e historicamente talvez apenas efêmero dos poucos novatos são extensíveis a todos.


A industrialização seletiva voltada para as exportações significa ocupar nichos no mercado mundial. O termo "nicho" já diz todavia que se trata de um espaço bastante restrito e apertado. Os "tigres" já têm de ser um bocado pequenos, se quiserem como país se encaixar nesse espaço. Ou melhor dizendo: eles têm na verdade de ser ratos, pois apenas ratos cabem num buraco de rato. Daí a validade do preceito: quanto menor um país e quanto menor sua população, mais a estratégia empresarial dos nichos de exportação harmoniza-se com todo o Estado. E vice-versa: quanto maior um país e quanto maior seu número de habitantes, mais absurda torna-se a opção pelos nichos no mercado mundial.


Acerca disso dispõe-se de provas absolutas e relativas. As estrelas do mercado global no Sudeste asiático, Hong Kong e Cingapura, são minúsculas cidades-estados com menos de 3 milhões de habitantes. Isso equivale a mais ou menos 1/6 da população de São Paulo. Estes ratos têm ao menos um posto temporário num buraco de rato do mercado mundial. Já mais delicado é o caso de países como Coréia do Sul, Taiwan ou Tailândia, na Ásia, Argentina e Chile, na América Latina, e Polônia, República Tcheca ou Hungria, no Leste europeu. Estes países, que têm aproximadamente entre 15 e 50 milhões de habitantes, já possuem mais o tamanho de gatos que de ratos. Graças a tanto, eles podem alocar no nicho apenas uma parte de seus homens e têm de suportar as feridas da compressão. Indonésia ou Índia, na Ásia, Brasil, na América Latina, e Rússia, no Leste europeu, todos países com mais de 120 milhões de habitantes, assemelham-se por sua vez a elefantes, aos quais a oferta de um lugar no buraco de rato não passa de derrisão ou cinismo.


Há porém um país no mundo onde a opção pelo nicho de exportação surte por assim dizer um efeito aterradoramente monstruoso e obsceno. Este país é a China. A enorme massa que excede hoje 1,2 bilhão de habitantes nem mais elefante é, mas sim um mamute ou mesmo um dinossauro. O que ocorrerá quando se oferecer a essa montanha humana um confortável lugar num buraco de rato? Os ideólogos neoliberais do livre-cambismo são loucos o bastante para fazerem tal oferta com toda ingenuidade. E, de fato, o governo chinês tentou nos últimos decênios ceder passo à estratégia da industrialização voltada às exportações.


Nas províncias do Sul foram erigidas "zonas econômicas privilegiadas" como Shenzhen, as quais se tornaram atraentes aos investidores estrangeiros em virtude de regalias tributárias, salários baixos e isenção de impostos sociais ou ecológicos. Sob condições pré-capitalistas, lá se fabricam principalmente componentes para empresas globalizadas do Japão, Hong Kong ou países ocidentais. Os trabalhadores são aquartelados e mantidos como presidiários, as jornadas de trabalho são extremamente longas e quase não há precauções com a segurança. Tornou-se rotina o comunicado de graves acidentes e incêndios catastróficos. Em 1995, um sem-número de jovens trabalhadoras de uma empresa têxtil foram carbonizadas porque as portas da fábrica estavam cerradas.


A despeito dessas condições brutais, os setores da industrialização voltada às exportações podem abarcar, numa estimativa otimista, o máximo de 200 milhões de operários. A longo prazo, é impossível que a China dite o ritmo dos mercados mundiais e conduza o grosso de sua reprodução por outros critérios que não os do setor das exportações. Isso vale sobretudo para todo o sistema de crédito e monetário assim como para o câmbio. A industrialização voltada para as exportações só é viável caso a moeda seja conversível. Uma moeda conversível exige por sua vez que a quantidade de moeda permaneça sob controle e os créditos só sejam concedidos pelas regras da rentabilidade.


Isso acarreta graves consequências para a economia interna. Grande parte das mais de 2 milhões de empresas estatais chinesas com 150 milhões de empregados seriam obrigadas a fechar. Inúmeras microempresas do setor de serviços, que dependem do poder de compra dos empregados na indústria estatal, teriam igualmente de entregar os pontos. A própria lavoura de que vive grande parte dos chineses, considerada improdutiva segundo os critérios globais, estaria fadada à ruína. A fim de evitar essas consequências, a administração chinesa adotou uma contabilidade de partidas dobradas. Não somente diversas cotações da moeda, mas também diversas formas de lançamento estatal correm lado a lado.


As elevadas taxas de crescimento que deixaram pasmos todo o mundo constam de elementos absolutamente heterogêneos. Elas contêm não apenas o crescimento real dos setores de exportação, mas também o crescimento puramente fictício de grande parte da economia interna, que depende das injeções estatais da Casa da Moeda. Ao cotejar a estatística chinesa das exportações com as correspondentes estatísticas dos parceiros comerciais, ressalta, além disso, que uma parte dos números consiste de meras "exportações ilusórias" que jamais existiram e só servem para ludibriar a própria burocracia.


Enquanto no Ocidente a China é bajulada como o sustentáculo do grande boom do século 21, a situação real há muito tornou-se crítica. Segundo depoimentos da agência oficial "Xinhua", em 1995 a cifra de desempregados atingiu 230 milhões, mais de 25% da população ativa. Por volta de 150 milhões de pessoas vagam pelo país em busca de salário. A inflação faz com que até mesmo os mantimentos básicos tornem-se exorbitantes para muitos. Mais cedo ou mais tarde a contabilidade de partilha dobrada irá por água abaixo.


Explicará então o governo chinês a 1 bilhão de habitantes que eles são "supérfluos" na economia de mercado? Em muitos lugarejos, camponeses insurrectos respondem à bala aos policiais e ao Exército. As províncias costeiras há muito já não transferem ao governo central os impostos recolhidos. Peritos do Instituto Londrino para Estudos Internacionais temem a eclosão iminente de uma guerra civil na China. A terra do sonho do grande boom poderia tornar-se um modelo catastrófico da industrialização voltada às exportações.


Robert Kurz




Fonte: http://www.nossacasa.net/dire/texto.asp?texto=70av


Publicado em 01/12/96 no caderno Mais! da Folha de São Paulo


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20 dezembro, 2006

Os totalitarismos iluministas


O Iluminismo e os totalitarismos


Publicado em 24/08/97 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.


Em maio de 1944, durante o exílio californiano, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno concluíram, sob o título ''Dialética do iluminismo'' (''Dialektik der Aufklãrung''), um manuscrito redigido em comum, frase a frase, que só seria publicado em 1947, em Amsterdã. Sobre esse texto pode-se dizer, sem hesitar, que introduziu uma mudança de paradigma cheia de consequências para a teoria social.
Pois, até então, o pensamento do iluminismo, da forma como se desenvolvera no século 18, era tomado como o legado positivo comum da modernidade. Liberais e marxistas reportavam-se igualmente às conquistas desse período, uma vez que o marxismo resultara do liberalismo e, este, da filosofia do iluminismo anglo-escocês, francês e alemão.


As ideologias do progresso concorrentes no século 19 e início do século 20 batiam-se em torno da interpretação e evolução do pensamento do iluminismo; o marxismo aparecia, por assim dizer (e também compreendia a si próprio), como a sua ''segunda transição'', que, após a crítica do despotismo absolutista, da religião e da superstição, queria executar a ''missão histórica'' do iluminismo por meio da crítica das relações sociais e econômicas.


Uma crítica contrária aos fundamentos do iluminismo só parecia possível nos horizontes do pensamento reacionário, misantropo e irracional, que preparara e munira ideologicamente o regime fascista e a sua barbárie moderna. Um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial, quando ainda vigorava a coalizão anti-Hitler entre a União Soviética e as potências ocidentais, seria comum representar intelectualmente, num maniqueísmo filosófico, as frentes de guerra , identificando a coalizão antifascista ao lado bom, na tradição do iluminismo, e, o fascismo ao lado mau, na tradição romântica e reacionária do contra-iluminismo.
Essa interpretação, no âmbito de um liberalismo banal e um não menos trivial marxismo democrático que vegetaria até os anos 80 (e de bom grado teria insistido para sempre na constelação que há muito se tornara histórica da coalizão anti-Hitler), foi, todavia, fundamentalmente recusada pela ''Dialética do iluminismo''.


Mas Horkheimer e Adorno tampouco forneciam nessa obra teórica uma filosofia para o conflito entre Ocidente e Oriente, que dominaria metade do século seguinte - filosofia esta que se interessava simplesmente pelos pressupostos ideológicos do mercado e se antecipava ao espírito do tempo como ''trendsetter''.


A mera excomunhão do marxismo dos limites da ''boa'' modernidade e a glorificação da democracia ocidental supostamente ''pluralista'' como a única herdeira legítima do iluminismo, em oposição às ditaduras fascistas e stalinistas, qualificadas igualmente como ''totalitárias'', remonta a uma literatura acadêmica barata, que, com exagerada condescendência, servia ideologicamente ao próprio sistema de dominação durante o período da ''Guerra Fria''.


A ''Dialética do iluminismo'', ao contrário, buscava raízes muito mais profundas: pela primeira vez, de uma perspectiva crítica e emancipatória, a tradição do iluminismo como tal foi posta em juízo.


O fascismo, diz a revelação chocante de Horkheimer e Adorno, não foi um monstro alheio, que irrompeu de forma atávica do subterrâneo pré-civilizatório da história, mas um legítimo descendente do próprio iluminismo. ''O iluminismo é totalitário'' - essa frase cortante delineia o programa de uma crítica nova e diferente crítica social, que até hoje aguarda o seu cumprimento. O conceito de ''totalitarismo'' caracterizava, desse prisma, não somente o fascismo e tampouco o fascismo e o stalinismo tomados em conjunto, mas, em última instância, a própria democracia ocidental. De certo modo, era a perspectiva de um futuro antecipado, a partir do qual as ideologias modernas mutuamente antagônicas, os movimentos políticos e os sistemas sociais eram, de forma inopinada, percebidos num sistema de coordenadas comum, para o qual elas próprias eram cegas, mas cujo reconhecimento crítico relativizava, de um ponto de vista superior, seus antagonismos. Por isso, ambos os autores desse livro admirável não se deixavam embair pela situação histórica concreta do ano de 1944. Era indispensável, na prática, derrubar o fascismo, que corporificava as possibilidades e consequências mais fatídicas do iluminismo e da modernização. Mas isto não significava subordinar a Teoria Crítica a tal objetivo imediato. O conhecimento teórico, para além da política antifascista do dia-a-dia e das necessidades de guerra, não podia calar e reprimir que o próprio fascismo era farinha do mesmo saco do iluminismo e que a lógica da desumanização espreitava os próprios pilares da democracia ocidental.


Mas no que consistia esse momento totalitário comum da modernidade iluminada, que o fascismo representava numa forma extremamente irracional e equívoca, o stalinismo numa forma historicamente extemporânea (tardia) e a democracia ocidental numa forma , em vários aspectos, madura (pelo menos nos Estados Unidos), já quase pós-moderna? Horkheimer e Adorno tiveram sérias dificuldades para formular, em 1944, o problema que farejavam. O salto por sobre a própria época os tinha conduzido aos limites do pensamento moderno em geral, ou seja, ao terreno para o qual ainda não havia nome nem conceito. A fim de poder designar o totalitarismo da modernidade, eles lançaram mão do conceito de ''dominação da natureza'', que se transforma, em sociedade, na ''dominação sobre os homens''.


Na medida em que se rebaixa a natureza a ''uma mera objetividade'', e o objeto isolado a um mero ''exemplar'' de uma espécie (e, portanto, a uma abstração), o sujeito onipotente, por sua vez, torna-se ''mero possuir, mera identidade abstrata'', que só enfrenta o mundo, a fazer cálculos, com a pretensão de submetê-lo e dominá-lo.
A fim de possibilitar o distanciamento necessário em face da natureza, tem de surgir na sociedade humana uma classe dominante, que intercala entre si e a natureza ''os trabalhadores'' enquanto dominados sociais: ''A distância entre sujeito e objeto, pressuposto da abstração, radica na distância com relação à matéria, que o senhor ganha por meio dos dominados''.


A dominação da natureza por intermédio dos homens-senhores pressupõe que o homem degrade o próprio homem a mero objeto da natureza: ''O despertar do sujeito é comprado com o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações''. Ora, isso, sem dúvida, descreve uma correlação negativa bem anterior à sociedade burguesa moderna.


Disso têm plena consciência Horkheimer e Adorno:
''De fato, o racionalismo linear, a liberalidade e burguesismo são muito mais antigos do que supõe a noção histórica, que data o conceito de burguês somente a partir do fim do feudalismo da Idade Média''.


Os mais antigos esboços de desejo (ainda impotente) de dominação sobre a natureza remontam à pré-história - no próprio ''pré-animismo'' já se acha ''a separação entre sujeito e objeto''. Mas se o homem pré-histórico ainda se enchia de um implacável medo diante da natureza predominante , e buscava afastar sua impotência com assimilações mágicas de objetos naturais (mimese), o mito, por sua vez, dá início à objetivação: ''O mito já é iluminismo'', e ''iluminismo é a angústia mítica tornada radical''.
Essa angústia deve ser extinta no mito pelo fato de se objetivar a natureza e, na medida do possível, ''não existir mais nada desconhecido''. Nesse aspecto, as figuras mitológicas aparecem como os arquétipos do sujeito burguês, abstrato e objetivante.


Horkheimer e Adorno tentam mostrá-lo no exemplo do mito de Ulisses - e, isso, lastreados inconfundivelmente na teoria da cultura de Sigmund Freud. O herói homérico das aventuras tem de reprimir os seus próprios impulsos, a fim de se tornar o sujeito da dominação. A sedução dos impulsos naturais, representados mitologicamente pelo canto envolvente das sereias, é emudecido para os servos pelo fato de lhes tamparem os ouvidos com cera; Ulisses, como dominante, permite-se, no entanto, ouvir o canto, previamente atado com cordas ao mastro da nau, para que não sucumba ao chamariz. Tal arquétipo mostra como a própria subjetividade, em última instância, tem de se tornar objeto, a fim de poder objetivar a natureza e os outros homens por meio da dominação. Já o mito, portanto, ''pôs em cena o processo infinito do iluminismo''. Nesse processo, são progressivamente destruídas, junto com os deuses, as qualidades do mundo, pois o ''programa de desencantamento do mundo'', que repousa na dominação, decompõe, com o seu ''pensamento ordenador'', tudo o que é próprio e o que, nos homens e nas coisas, não se resolve na investida objetivante: ''O que não se quer adaptar à medida da calculabilidade e da utilidade é tomado como suspeito pelo iluminismo''. Ele é por princípio totalitário, na medida que submete a natureza e a sociedade despidas de qualidade ao cálculo da mera quantificação, à matemática da dominação: ''A lógica formal foi a grande escola da uniformização. Ela forneceu aos iluminados o esquema da calculabilidade do mundo (...), o número tornou-se o cânon do iluminismo''.


A modernidade iluminada, como herdeira da história ocidental, é caracterizada segundo Horkheimer e Adorno, por uma contradição insanável. De um lado, ela prometeu liberdade por intermédio da desmitologização, ou seja, a superação da própria dominação, que seria substituída, em nome dos direitos humanos universais, pela razão discursiva do mercado. De outro, todavia, ela não só conservou o programa da dominação objetivante da natureza como também o agravou. Por meio do mercado, justamente, a dominação pessoal foi substituída por uma ''dominação da reificação'', ou seja, não se superou a ''injustiça social'', que foi apenas objetivada pela mediação universal da concorrência a um grau de abstração mais elevado do que antes. Com a equivalência abstrata da troca mercantil, que o capitalismo totalizou e dinamizou, consumou-se a redução do mundo a grandezas abstratas.


Desse modo, o iluminismo moderno foi condenado à autodestruição. Com efeito, ao ampliar a desmitologização com base na dominação reificada e despersonalizada, ele obrigou-se a destruir o seu próprio conceito teórico - o conceito universal em geral -como pretenso conceito mitológico: ''Com suas próprias idéias de direito humano não se passa algo diverso do que com os antigos universais''. Porém, quando a metafísica é consumida até a última gota, ''o pensamento se coisifica num processo automático, de curso independente, que imita a máquina'' e perde, assim, a capacidade de reflexão crítica. O que resta é uma ciência rebaixada a ''mero expediente do aparato econômico'': o positivismo, como ''mito daquilo que é o caso''.


O iluminismo, assim, transforma-se novamente em mito - um mito tanto banal quanto nocivo a todos. A promessa de liberdade converte-se em ''total empulhação das massas''. Se o liberalismo, ligado à dominação da reificação econômica, degradou o iluminismo a um sistema de concorrência e, assim, a uma cega ''empresa de autoconservação'', o fascismo, por sua vez, deduziu a última e a mais terrível consequência: a mitologização racista e anti-semita da concorrência converteu-se na ''apreensão total do homem''. E, com ''o fim da livre-troca'', o capitalismo foi falsamente superado nos moldes autoritários e bárbaros.


Lido meio século depois de sua primeira edição, a ''Dialética do iluminismo'' provoca uma sensação contraditória. A sua idéia básica de que o próprio iluminismo transforma-se em barbárie é mais atual do que nunca. O totalitarismo, que se manifestara em primeiro plano nas ditaduras fascistas e stalinistas, mergulhou no fundamento da democracia liberal do Ocidente e mostra-se hoje em sua forma mais pura e desenvolvida: como totalitarismo do mercado global e onipresente, que faz dos homens marionetes de seu princípio econômico, executado pelas coações da concorrência total.


Só agora se torna claro quão justo e, por assim dizer, profético foi o fato de a ''Dialética do iluminismo'' ter incluído as sociedades ocidentais em sua teoria da fatalidade histórica. Se, há mais de 50 anos, a democracia liberal subjugou militarmente seu irmão inimigo, o fascismo, e, na década passada, bateu pela concorrência econômica seu outro irmão antagônico, o stalinismo, no fim do século 20, por sua vez, ela mostra, como única sobrevivente da família do iluminismo e da modernização, a carranca da barbárie. Todas as monstruosidades da história, que deviam ser banidas pelo princípio iluminado dos direitos humanos, retornam sob a máscara das ''coerções'' liberais.
Por maiores que sejam os acertos da ''Dialética do iluminismo'', hoje ela tem eficácia limitada. Horkheimer e Adorno não cruzaram a porta por eles franqueada. Sua recorrência quase supra-histórica ao problema da dominação da natureza põe em curto-circuito dois planos diversos - o condicionamento de toda história da humanidade pela dominação socialmente inconsciente, e o fetichismo especificamente econômico da modernidade. A ''Dialética do iluminismo'' ganha, com isso, algo de inevitável e supratemporal, ao passo que, simultaneamente, concede à falsa promessa da liberdade burguesa um resto de dignidade. Horkheimer e Adorno incorrem na contradição de reconhecer na troca mercantil a redução a quantidades abstratas e irracionais e, ao mesmo tempo, desejar preservar, na liberdade dessa troca, a razão discursiva da circulação de mercadorias. Eles permanecem, nesse sentido, a despeito de sua mudança de paradigma, filhos do iluminismo.


Hoje, caberia levar a termo a crítica da razão iluminista por meio da crítica da economia moderna. Mas ninguém ousa cruzar a porta aberta. Parece ser privilégio da filosofia dos anos 90 rastejar no pó diante das divindades do mercado.


Robert Kurz


Fonte: http://www.nossacasa.net/dire/texto.asp?texto=70am


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10 julho, 2006

Japao - Historia e Sociedade

O fictício milagre japonês

ROBERT KURZ


O presente continua a operar milagres: assim imaginam os célebres otimistas de plantão da economia de mercado, que em geral são mais bem pagos do que os analistas rigorosos. De tempos em tempos, tais animadores do bom humor econômico atribuem a esse ou àquele país que aparenta estar em franca ascensão o papel de criança prodígio da economia um exemplo pelo qual deveria se pautar o restante do mundo capitalista. Com quase a mesma constância, essa vocação termina de forma ruinosa ou dramática, a exemplo do México tempos atrás.

Por ora, não se ousa mais dizer palavra sobre o Japão. Ainda nos anos 80, hordas de empresários- filósofos peregrinavam rumo àquele país para espreitar as sutilezas administrativas da "produção enxuta" da terra prometida. Na Alemanha, o diretor da Volkswagen, um afamado ditador da redução de custos, conclamou seus trabalhadores, em tom nitidamente racista, contra o "perigo amarelo" da concorrência japonesa que aos poucos inundava o mercado europeu. Alguns teóricos do desenvolvimento enalteceram o Japão como modelo para uma política de recuperação bem-sucedida a ser emulada pelo Terceiro Mundo. Tais mensagens eram tão simplistas como anúncios comerciais e, como toda simplificação, não correspondiam à verdade.

No caso do Japão, não se pode falar de uma bem-sucedida política de recuperação de um país subdesenvolvido. Quem discordar, que volte ao século 19. Já nessa época o Japão era o único país oriental a integrar a segunda onda de modernização capitalista, de forma praticamente concomitante à Alemanha. Não por acaso as histórias da modernização japonesa e alemã demonstram um constante paralelismo.

A chamada Revolução Meiji, de 1867, conduziu o Japão a uma rápida industrialização, análoga à do Estado militar germânico-prussiano, com a indústria armamentista à frente. A base industrial japonesa, como a alemã, foi portanto lançada à custa dos últimos anos do século 19; esse surto de modernização não é de modo algum comparável ao atual problema do Terceiro Mundo, que, nas condições impostas pelo final do século 20, se vê na contingência de pagar um preço muito mais elevado para promover sua industrialização do que a maioria dos países é capaz de custear.

Após o término da Segunda Guerra, o Japão concentrou esforços na ofensiva civil das exportações. De início, não se cogitou da famosa "família empresarial" ou de qualquer filosofia econômica milagrosa. Pelo contrário, à época que se seguiu ao boom ocidental na década de 50, o Japão foi palco das mais renhidas lutas trabalhistas e distúrbios sociais do mundo industrializado. A "pacificação" social impôs- se apenas gradualmente, por meio de um estratagema de distribuição social mais pérfido do que milagroso: de um lado, na extremidade da cadeia produtiva do valor, as empresas de exportação organizaram-se em prol de um pessoal reduzido, calcado em "famílias empresariais" com princípios paternalistas, como a garantia de cargo vitalício e o escalonamento salarial e hierárquico conforme o tempo de serviço. De outro lado, porém, milhões de empregos "de segunda classe" foram deslocados para microempresas fornecedoras com importe de capital antediluviano, nas quais se disseminaram relações próximas à escravidão, graças a salários extremamente baixos e a condições de trabalho pré-capitalistas.

Entretanto, também os operários privilegiados tiveram de pagar caro pelas gratificações da "família empresarial" pseudoconfuciana. Até hoje, as incontáveis horas extras não remuneradas, as infindáveis horas gastas no trajeto casa-trabalho e a famigerada "morte súbita" por esgotamento no desempenho das funções não são incomuns. Vários operários e funcionários públicos só retornam ao lar nos finais de semana e vêem-se obrigados a pernoitar, nos dias de trabalho, em verdadeiros "guarda-volumes para homens".

De maneira igualmente inconsiderada, a logística sofreu um novo remanejamento. Granjeou fama internacional o sistema denominado "just in time", uma espécie de armazém sobre rodas que, de resto, em breve conduzirá ao caos devido ao total engarrafamento do próprio trânsito. A bem da verdade, os projetos de uma simples exploração da infra-estrutura e das relações sociais não bastaram para operar o "milagre". Em fins da década de 70, o Japão ainda não ascendera aos primeiros postos do mercado mundial e amargava o cargo de "guarnição secundária" entre as potências econômicas.

Enquanto os administradores ocidentais começavam a festejar a brutalização japonesa da economia empresarial, a fim de superá-las o quanto possível em seus países, o verdadeiro "milagre" da economia nipônica nos anos 80 produziu-se de forma inteiramente diversa, ao soprar-se a maior bolha de sabão da história financeira. O Japão tomou a dianteira do capitalismo-cassino global que florescia nessa época graças à saturação estrutural do crescimento industrial em todo o planeta.

As próprias relações informais e paternalistas no interior das elites e as estruturas muitas vezes obscuras dos clãs na economia contribuíram para que o boom especulativo no Japão surtisse efeitos particularmente fortes. A alta no preço de ações e imóveis não se cansava de bater novos recordes.

A diferença do capital especulativo do Ocidente, que em grande parte adejava nos céus financeiros, sem ser efetivamente investido na economia, as indústrias japonesas sangraram a fonte monetária aparentemente inesgotável, no intuito de se aprovisionarem para a disputa mundial das exportações.

A alta fictícia e puramente especulativa dos títulos de propriedade serviu de alavanca para financiar os vultosos investimentos nos setores de alta tecnologia; os custos, portanto, foram praticamente nulos, pois bastava aguardar o surto seguinte no preço das ações e dos imóveis para "ficar rico" e vender ou empenhar os títulos para financiar investimentos de porte.

Embora a infra-estrutura em muitos aspectos permanecesse subdesenvolvida _até hoje, bairros inteiros de Tóquio ainda não possuem canalização_, floresceu assim no Japão uma automatização eletrônica da linha de montagem com a qual os demais países industrializados foram incapazes de competir.

Da mesma maneira, os bancos refinanciavam a si próprios aparentemente sem custos. Eis por que eles puderam conceder créditos a taxas módicas aos especuladores e se contentaram com hipotecas de imóveis avaliados muito acima de seu preço real como garantia. Em muitos casos, a máfia japonesa (Yakuza) estava mancomunada. Apenas com os fogos de artifício dessa expansão financeira sem real substância econômica o Japão sagrou-se em tempo recorde o suposto campeão da concorrência global e converteu-se no credor do mundo nos anos 80.

Com efeito, o desenvolvimento nipônico foi somente um caso particularmente clamoroso em meio à autonomização generalizada dos mercados financeiros, a qual não deve ser compreendida a partir da psique dos especuladores, mas sim da baixa rentabilidade da própria produção industrial do globo.

Na quebra da Bolsa em 1987, quando pela primeira vez estourou a bolha financeira global e por toda parte despencaram os valores imobiliários, o capital especulativo no Ocidente não tardou a tomar o pulso da situação, uma vez que se tratava em boa parte somente de perdas de caixa, logo compensadas com novos aumentos do volume negociado.

Caso diverso foi o enfrentado pelo Japão em 1990, quando o país foi testemunha da queda no curso das ações e dos preços imobiliários. No espaço entre janeiro de 1990 e agosto de 1992, a Bolsa de Tóquio viu suas ações perderem quase 2/3 do valor de face, o que representou uma perda de patrimônio de mais de US$ 3 trilhões. Tanto piores foram os prejuízos acarretados pela queda de preços dos imóveis. Com a mesma rapidez feérica que o Japão "tornara-se rico", sua riqueza fictícia voltou a dissipar-se no ar.

Esta aniquilação virulenta do capital monetário, à diferença dos mercados especulativos do Ocidente, não pôde mais ser compensada com novas bolhas de sabão. No país do Sol Nascente, a brincadeira chegara ao fim.

Uma parcela considerável da alta precedente nos valores fictícios fora de fato consumida pela economia, e pelo menos outro tanto fora concedido, a título de aventura, como empréstimo a estouvados apostadores da grande loteria. Eis por que o Japão foi rondado por uma iminente catástrofe financeira. De súbito, quantias enormes de crédito aparentemente seguro tornaram-se podres.

Estima-se que o capital monetário, já desvalorizado com base na taxa de juros, monte à impensável soma de US$ 2 trilhões; isso significaria, se as estimativas estão corretas, mais de 30% do produto interno bruto japonês. Como os empresários não possuem meios com que amortizar suas dívidas, o endividamento total da economia privada, até meados de 1995, subiu a 218% do PIB.

Em qualquer outro país, tal ônus com dívidas desvalorizadas há muito teria conduzido ao colapso do sistema financeiro. Os japoneses foram capazes de evitar tal resultado sobretudo porque o "Japão S/A", sob a direção do Banco Central e do Ministério das Finanças, logrou a todo custo colocar panos quentes na crise do endividamento, valendo-se para tanto da rede de subordinação informal e das estruturas de fidelidade.

Foram constituídas assim várias sociedades de fachada, nas quais os bancos podiam "despejar" seus créditos podres. Apesar dos protestos da opinião pública, o governo subsidiou com a renda de impostos, tanto direta quanto indiretamente, as instituições que andavam mal de saúde.

Em 1995 e no início de 1996, prejuízos bilionários oriundos da falência de bancos-cooperativas como o Cosmo Shinyo Kumiai e o Osaka Shinyo Kumiai tiveram de ser acobertados. Todo o setor das cooperativas de construção converteu-se nesse meio tempo num saco sem fundo.

Alguns bancos redimensionaram os chamados créditos "instáveis" a uma taxa de juros praticamente nula, no fito de torná-los invisíveis. A cada balanço trimestral, os grandes institutos monetários japoneses anunciavam novos descontos de créditos em apuros, que no entanto até agora serviram apenas para maquiar a contabilidade ("window dressing"). Todas estas práticas levianas, produtos do desespero, são capazes apenas de postergar, mas não de impedir o colapso financeiro.

Hoje o Japão se vê na contingência de alcançar por todos os meios o superávit na balança comercial, a fim de manter o equilíbrio instável da enorme massa de crédito podre. A elevada taxa de câmbio do iene, sobretudo em relação ao dólar, e uma legítima reação dos mercados de divisas face ao contínuo déficit norte-americano no comércio com o Japão (cerca de US$ 50 bilhões por ano) já deixaram contudo uma fumegante marca de freada nas exportações nipônicas.

O iene forte é ao mesmo tempo o responsável pelo atrofiamento do mercado interno japonês, já que um número cada vez maior de empresas, por motivos de custo, transfere seus investimentos para o exterior (sobretudo para os países vizinhos do Sudeste asiático, onde o nível salarial é baixo) e lá passa também a negociar com fornecedores. Na esteira da globalização, hoje o mercado japonês já é abastecido com produtos de firmas japonesas sediadas no exterior. Várias das pequenas empresas de fornecimento nipônicas estão ameaçadas pela concorrência.

Encurralado pela crise do endividamento e pela globalização, o "Japão S/A" é compelido a lançar por terra seus lastros sociais. Pouco a pouco, a "família empresarial" é dissolvida por ordem superior. Os chamados "empregos ociosos" de funcionários improdutivos que todavia não podem ser demitidos (mais de 6% da população ativa) têm de desaparecer.

Trabalhadores e funcionários públicos, por meio de uma tática psicológica de desgaste, são instigados a pedir a própria demissão "por livre e espontânea vontade". Ao mesmo tempo, milhões de empregos "de segunda classe" e nas empresas de fornecimento são suprimidos. Progressivamente, impõe-se também no Japão o mesmo desemprego estrutural de outras nações industrializadas. Isso significa, por sua vez, que o mercado interno nipônico é preterido pela própria queda no poder de compra da população.

No entanto, a recessão tem de ser evitada a todo custo, senão vai pelos ares a bomba financeira. Desesperado, o governo japonês implementou, desde o início dos anos 90, cinco planos conjunturais (obviamente financiados a crédito) com volumes unitários de mais de US$ 100 bilhões.

Mas, apesar dos auspiciosos investimentos estatais, da redução dos impostos e de uma taxa de juros quase negativa (0,5%), a conjuntura padeceu seriamente até o fim de 1995. Os juros reais permaneceram sensivelmente mais altos que os nominais, e os bancos são incapazes de emprestar moeda nova a taxas vantajosas, pois eles próprios têm a corda no pescoço.

Espera-se porém que os programas governamentais surtam algum efeito, uma vez que no primeiro trimestre de 1996 foi comemorado um crescimento de 3% (12% ao ano, numa estimativa otimista), o maior em 25 anos. Ora, esse fogo de palha somente foi aceso após o Estado aspergir-lhe combustível. Os investimentos do governo nesse trimestre, só para dar um exemplo, foram três vezes maior do que as despesas privadas.

A fatura de tais gastos não tardará a chegar e não será menor do que a fatura das antigas manipulações. À crise de endividamento privado soma-se a crise pública. O Estado japonês é forçado a despender 30% de sua receita no pagamento de juros, quase o dobro dos endividadíssimos EUA. Assim como nos EUA (e de resto também na Alemanha), os fundos de seguridade social são pilhados.

O "milagre" japonês, à primeira vista tão simples, está desmistificado. Mais cedo ou mais tarde, explodirá a bomba financeira. O fato de os mesmos milagreiros, que ainda há pouco buscavam o Graal na filosofia administrativa japonesa, falarem hoje em tom de escárnio da "Itália asiática" é prova de que sua miopia permanece intocada. De fato, com o Japão ameaça desmoronar uma pilastra do sistema financeiro global e de todas as relações comerciais do planeta.

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, publicou no Brasil, entre outros, "O Colapso da Modernização" e "A Volta do Potenkim" (Paz e Terra) e é co-editor da revista "Krisis". Ele escreve mensalmente na seção "Autores" da Folha. 04/08/96

Tradução de José Marcos Macedo

Original: http://planeta.clix.pt/obeco/rkurz26.htm