quarta-feira,
11 de fevereiro de 2015
O
ódio cresceu 550% na América Latina
Por
Antonio Lassance, no site Carta Maior:
O
que há de comum entre Brasil, Argentina, Venezuela, Bolívia e
Equador? Entre as inúmeras coincidências, a primeira é que
eles são governados por partidos de esquerda.
Segunda
coincidência: seus governos têm demonstrado uma inédita
longevidade, a maioria com mais de uma década.
Terceira
coincidência: seus governos são duramente
atacados e constantemente fustigados por oposições
agressivas e tentativas golpistas. Em todas essas situações, a
mídia tradicional releva-se o principal ou um dos principais
partidos golpistas.
Quarta
intrigante coincidência: esses países estão entre os que mais
reduziram a desigualdade na América Latina, diminuindo a
proporção e o contingente de pobres e miseráveis.
Na
década de 1990, a América Latina permaneceu estagnada
política, econômica e socialmente. Naquela década, os governos
neoliberais que sucederam os ditadores, em muitos países do
continente, mantiveram a desigualdade de renda nos níveis
deixados pela década perdida, os anos 1980, período final das
ditaduras, quando a situação social chegou ao fundo do poço.
A
partir da década de 2000, uma leva de governos de esquerda chegou ao
poder como resultado de um longo processo de acumulação de forças,
iniciado primeiro na luta contra as ditaduras e, depois, impulsionado
pelo desgaste de governos neoliberais corruptos, incompetentes e
de péssimos resultados econômicos (baixo crescimento, desemprego
elevado) e sociais (aumento da pobreza).
Os
governos de esquerda que sucederam os neoliberais demonstraram fôlego
razoável por pelo menos uma década.
Hugo
Chávez, que tomou posse em 1999 e governou até 2013, reagiu
e sobreviveu a um golpe ainda em 2002, mas atravessou sua primeira
crise generalizada em 2009.
O
preço do petróleo chegou a menos de US$ 50 e houve problemas sérios
no abastecimento de água e de energia elétrica. A popularidade do
governo despencou, setores do governo o abandonaram, acusações
de corrupção vieram à tona, a oposição fortaleceu-se e
radicalizou-se mais amplamente.
No
Brasil, uma década separou a posse de Lula, em janeiro de
2003, das manifestações de junho de 2013. O presidente foi
ameaçado com a crise política instalada em 2005, a partir das
acusações sobre o financiamento de campanha do chamado mensalão.
Superou a crise, reelegeu-se e fez sua sucessora, Dilma Rousseff.
Mas
a revolta de 2013, embora não dirigida inicialmente de forma
direta contra a presidenta e seu partido, acabou sendo paulatinamente
reorientada, com um grande esforço da mídia, para que seu governo e
seu partido se tornassem o alvo prioritário e passassem a ser
ainda mais estigmatizados do que já tinham sido no passado.
Néstor
Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007 até
hoje) também viveram temporalidades críticas coincidentes ao
período de uma década e um processo de destruição midiática
muito parecido.
Veremos
como Evo Morales (presidente desde 2006) e Rafael Correa
(empossado em 2007) se sairão quando as maldições de uma
década de governo começarem de fato a bater às portas de seus
governos.
Projetos
cristalizados são ameaçados
A
longevidade de uma década, pelo menos, levou a que esses projetos de
esquerda se cristalizassem como uma referência política própria,
muito associada ao modelo de governança de seus presidentes e às
políticas públicas empreendidas.
Com
isso, passou-se a falar em chavismo, lulismo e kirchenismo. Idem para
Evo Morales e Rafael Correa, cujas presidências passaram a ser
vistas, e de fato são, como o início de um novo projeto político e
de gestão de políticas públicas.
O
que parece comum a todos esses governos e que merece uma reflexão
aprofundada é em que medida eles apresentam, além de um novo
padrão, cada qual a seu modo, um comportamento cíclico comum -
ascensão, sobrevida, crise e ameaças constantes de derrota ou mesmo
queda.
Em
torno desses ciclos comuns, pode haver elementos explicativos
importantes de serem apreendidos pela esquerda latinoamericana. Algo
que pode ser relevante a seu aprendizado comum, um elemento decisivo
à sua sobrevivência política e um passo crucial para a sua
reinvenção.
De
comum, esses foram governos de inversão de prioridades, com a
elevação dos gastos em políticas públicas diretamente incidentes
no combate à pobreza e redução da miséria.
A
rápida melhoria nos indicadores de desigualdade mostrou como é
relativamente barato para o Estado reduzir desigualdades sem mexer no
padrão econômico dominante dessas sociedades. No entanto, mais
cedo ou mais tarde, não mexer no padrão econômico dominante dessas
sociedades se torna um grande problema.
De
2003 até a crise de 2008, a América Latina teve um bom período de
crescimento econômico. Mais exuberante, porém, foi a tendência de
diminuição da concentração de renda e, consequentemente, redução
da desigualdade nos países governados pela esquerda.
Segundo
a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o
índice de Gini na região caiu cerca de 5% em relação ao patamar
de 2002. Argentina, Bolívia e Venezuela lideraram uma redução de
10% na desigualdade. Brasil e Equador chegaram a reduzir o Gini em
cerca de 7%.
Depois
dessa importante redução na desigualdade, ocorre agora um
estancamento. Manter as políticas sociais já não garante avanços
tão rápidos e significativos quanto no passado.
Para
seguirem adiante, esses governos deveriam gastar mais e melhor com
políticas sociais, reduzindo a prioridade dada aos setores mais
ricos - que ocorre seja pelo pagamento de juros, seja pelas
desonerações de impostos, seja pela estrutura tributária
regressiva, seja pelas práticas de privilégio econômico, algumas
delas eivadas de corrupção.
Os
gastos sociais puderam até manter uma trajetória crescente, sem
incomodar os ricos, quando os governos de esquerda puderam sustentar
taxas de crescimento elevadas e inflação baixa, lembrando que a
inflação é um dos grandes impostos que pesam contra os mais
pobres.
Porém,
qualquer desarranjo nesses fatores afeta a equação montada e leva
os presidentes ao risco de desgaste, ameaçando inclusive a
continuidade de seus mandatos.
Por
isso, os que enfrentam crises mais agudas são ainda mais
estigmatizados. Dilma, mais do que Lula; Cristina Kirchner, mais do
que seu marido, Néstor; Nicolás Maduro, mais do que Chávez.
Ódio
dos ricos e de parte da classe média cresceu: por quê?
Governos
de esquerda, ao reduzir a desigualdade, mexem com interesses dos
ricos e da classe média. Mesmo que não os ameacem, os incomodam.
No
Brasil, em uma década (2001-2011, sobretudo a partir de 2003),
enquanto a renda per capita dos 10% mais ricos subiu 16,6%, a renda
dos mais pobres elevou-se em 91,2% - conforme dados da PNAD
analisados pelo IPEA http://goo.gl/WXYSkr .
Os
ricos ganham, mas enervam-se com o fato de que os pobres passem a ter
ganhos de renda superiores aos seus devido ao fato de que, com a
renda mais alta e desemprego em baixa, o custo da mão de obra se
eleva.
Se
a renda dessa faixa de pessoas mais pobres cresceu 550% mais
rápido que a dos 10% mais ricos, o ódio dos mais ricos contra
os governos que fizeram isso acontecer também cresceu nessa mesma
proporção. Há 550% mais ódio contra os partidos de esquerda e
seus governantes.
O
ódio cresceu na medida em que esses projetos se cristalizaram,
fomentados politicamente por um conjunto de políticas que conquistou
a adesão justamente dos setores mais pobres.
A
classe média tornou-se o maior contingente de inconformados. Como
os governos de esquerda não mexem ou mexem muito pouco com os ricos,
é principalmente sobre a classe média que recaem os custos maiores
das políticas de benefícios sociais aos mais pobres.
A
classe média foi penalizada com impostos mais altos que bancam uma
grande proporção dos gastos dos governos. Embora os gastos maiores
do Estado seja com os mais ricos, são os programas sociais para
as camadas de mais baixa renda que mais irritam a classe média.
Essa
classe média se sente passada para trás quando recorda que tinha
custos bem mais baixos, por exemplo, com a mão de obra de serviços
domésticos, e uma situação de servilhismo dos pobres em relação
a ela. Mesmo que não fosse rica, a classe média vivia em uma
condição social distinta em que parecia fazer parte do mundo dos
ricos, mesmo que em menor escala.
O
castelo de ilusões da classe média tradicional ruiu. Está ocupado
por uma legião de pessoas que passam a ter bens de consumo e a
frequentar espaços públicos em condições similares - ou quase.
O
mercado de trabalho está habitado cada vez mais por pessoas que
ameaçam a classe média tradicional por estarem brigando, quase que
em pé de igualdade, pelo mesmo ambiente rarefeito.
A
revolta da classe média é que isso tornou-se possível com o
patrocínio de seu dinheiro, usado pelos governos de esquerda em
benefício dos mais pobres. Por isso, a radicalização direitista de
uma parte dessa classe se volta contra esses governos, e não contra
partidos de direita.
Para
esse setor da classe média, a ameaça que sofre não vem dos ricos,
e sim dos pobres. Eles lhes causam asco, indignação e um sentimento
de ódio pela perda da noção de superioridade, na medida em que
os pobres que ascenderam já nem acreditam mais nisso.
Essa
parcela da classe média, ainda minoritária, mas crescente, aprecia
o elitismo radical embalado pelo liberalismo autoritário.
A
corrupção "de esquerda": uma aliança política que
precisa ser rompida
A
corrupção não é apenas comportamento individual. É e sempre
foi parte do processo de competição econômica e política em um
sistema capitalista.
Desde
os barões ladrões da "era dourada" ("Gilded Age"),
nos Estados Unidos, século XIX, ao Brasil das privatizações e das
empreiteiras, a corrupção é parte do jogo de cartelização
capitalista.
Os
interesses do capital necessitam de recursos públicos e, ainda mais
importante, precisam interferir na regulação estatal, mudando ou
mantendo as regras do jogo em seu benefício.
A
maneira como isso afeta governos de esquerda precisa ser analisada do
ponto de vista político.
Alguns
processos corruptivos, seja na América Latina, seja os que
estiveram associados ao domínio do Congresso Nacional Africano (o
CNA de Nelson Mandela, na África do Sul) têm em comum o fato de
representarem uma tática que alguns governos de esquerda usaram para
romper o cerco em relação a setores mais ricos - associando-se
a alguns deles mais intimamente.
Ao
manter relações privilegiadas com esses setores, buscaram não
só torná-los sócios majoritários de um projeto político, mas
também, no longo prazo, fortalecê-los no interior da classe
capitalista.
A
ação é, portanto, ao mesmo tempo pragmática e programática. Os
setores escolhidos são, em geral, centrais para os eixos
tradicionais de desenvolvimento do país. São também grupos
econômicos que eram sócios igualmente tradicionais de partidos de
direita.
Mas
a aproximação de governos de esquerda e tais grupos tende a
reforçar a configuração cartelizada ou mesmo monopolista em muitos
desses setores.
Como
mexer com esse jogo de interesses envolve entrar por meandros nem
sempre abertos e institucionalizados, envereda-se por meio de
práticas à margem ou contra a lei. Em uma palavra: quem se aventura
por esse caminho cai na corrupção.
Além
de patrocinar o superenriquecimento de alguns setores, os
partidos, sejam de esquerda ou direita, buscam reforçar-se política
e financeiramente na disputa de poder.
O
jogo é o mesmo, seja ele feito pela direita ou pela esquerda. A
diferença é que os cartéis midiáticos e os órgãos judiciais dão
tratamento diferenciado aos casos que envolvem governos de esquerda.
O
desvendamento dos casos de corrupção em governos de esquerda
unificam, sob uma mesma bandeira, os que querem derrotar esses
governos e punir exemplarmente todos os que traíram sua classe, pois
aliaram-se àqueles que deveriam ser combatidos sem trégua.
A
corrupção fornece o elã para que ricos e parte da classe média
tradicional disputem os votos dos pobres com um ódio feito sob
medida para estigmatizar, cirurgicamente, apenas os governos
de esquerda e seus aliados de ocasião, e não as práticas
corruptivas em si.
As
denúncias de corrupção feitas pela grande mídia, ela
própria um setor capitalista cartelizado e com interesses claros nas
disputas políticas e econômicas em curso, vêm claramente
desacompanhadas de uma denúncia sobre a permanência da corrupção
ao longo do tempo.
Jamais
se demonstra a conclusão óbvia de que a corrupção é parceira, de
longa data, das práticas capitalistas mais usuais, em sua
relação com a política e com o Estado. Salvo em países onde a
democracia é forte o bastante para torná-la impossível de não
estar exposta.
Os
pobres reagem ceticamente em relação a esses apelos com a percepção
de que, na verdade, são todos iguais, e a diferença está apenas
nos resultados que cada governo oferece. A natureza corrupta do
jogo de interesses no poder os iguala. As políticas e seus
resultados é que os diferenciam.
Aliás,
os mais pobres são os únicos que costumam ter uma posição mais
realista e menos hipócrita, embora conformista, sobre o jogo sujo da
corrupção entre políticos e grandes capitalistas.
O
fato é que os governos de esquerda, quando repetem tais práticas,
desmoralizam-se politicamente. Não apenas pelos escâdalos, mas
quando demonstram que vieram para mudar algumas coisas, mas se
mostram incapazes de alterar o essencial nas relações entre Estado
e capitalismo.
Continuam
com algum crédito e fôlego para se livrar de tentativas golpistas
apenas enquanto suas políticas demonstram capacidade de entregar
resultados palpáveis, efetivos.
Por
sua vez, em momentos de estagnação, elevam-se as chances de
adesão aos apelos do golpismo e aumentam as pressões para que
os judiciários e legislativos promovam golpes de espada e cortem
cabeças.
Conclusão:
um modelo que precisa ser mudado
Os
governos de esquerda produziram inúmeros e importantes avanços, mas
encontram-se fortemente ameaçados.
Depois
de uma década, as acusações de que "o modelo esgotou-se"
tornam-se comuns.
A
pobreza diminuiu significativamente, em grande medida, graças aos
programas de transferência de renda, que hoje cobrem 17% da
população da América Latina e Caribe (dados da Cepal).
Ao
mesmo tempo, os percentuais e os contingentes de pobres ainda são
absurdamente altos - quase 170 milhões de pessoas pobres e mais de
70 milhões na pobreza extrema.
Os
governos de esquerda precisam fazer os países voltarem a crescer,
mas se limitarem a isso seu horizonte estarão afundados na
mediocridade e indiferenciados dos partidos de direita.
Deveriam
concentrar suas escolhas de crescimento não em setores tradicionais
e em poucos grupos econômicos privilegiados, mas em novos setores
econômicos dinâmicos, inovadores, e em arranjos produtivos que
fortaleçam a economia familiar, as pequenas e médias empresas.
Dariam
uma boa sinalização de mudança a uma parcela da classe média que
normalmente detesta a esquerda - e com grande parcela de razão,
quando são esquecidos por ela.
Os
governos de esquerda deveriam dedicar parte importante de seu
trabalho de regulação a descartelizar setores que aboliram a
competição, deixaram pequenas e médias empresas à míngua e
se tornaram grandes demais para falir.
Isso
vale para os grupos de mídia, mas também deveria valer para
empreiteiras, para os fornecedores do serviço público, os grupos de
telefonia, os planos de saúde e tantos outros.
Novos
e significativos avanços demandariam uma expansão das políticas de
bem-estar social e investimentos muito maiores em educação, saúde,
previdência e assistência do que são possíveis diante do atual
modelo da maioria desses países, baseado em gastos altíssimos com o
sistema financeiro, uma intocável concentração das atividades
econômicas e em profunda injustiça tributária.
A
necessária e utópica mudança de modelo passaria por romper os
laços promíscuos com setores econômicos dominantes, raiz das
práticas de corrupção que põem em xeque todo o patrimônio de
lutas sociais que deram origem a muitos dos partidos, dos movimentos
e das pessoas que hoje governam esses países.
Com
a ascenção de setores pobres ao patamar de classe média, uma nova
geração de eleitores desgarrou-se da esquerda e já vota contra
ela, contrariando justamente quem foi responsável por sua ascensão.
Mobilidade
social resulta também em mobilidade política, o que impactará
decisivamente a eleição dos futuros presidentes. Os mais pobres
ainda são muitos, mas cada vez dividem seu peso em eleições com
setores de uma classe média não tradicional.
A
esquerda só terá alguma chance eleitoral se reforçar o sentido
social de seu projeto. Para tanto, precisa cumprir o papel de formar
uma aliança dos setores mais pobres com a classe média em um modelo
em que ambos avaliem que ainda vale a pena estarem juntos e
governados por partidos progressistas.
Do
contrário, a América Latina poderá, dentro em breve, ser
novamente governada por partidos elitistas, excludentes, corruptos e
que só serão novamente derrotados depois de imporem ao continente
toda uma nova década de atraso, com a economia ainda mais
concentrada e a pobreza retrocedendo a patamares alarmantes.
Nessa
hora, porém, as alternativas podem já não ser mais tão
promissoras se a esquerda, linchada, estiver com todas as suas
cabeças cortadas e penduradas em praça pública.
*
Antonio Lassance é cientista
político.http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/02/o-odio-cresceu-550-na-america-latina.html?spref=tw