26 janeiro, 2007

Carta aos Soldados no Iraque


Aferrem-se à Sua Humanidade


Por Stan Goff



Prezados militares americanos no Iraque,


Eu sou um veterano licenciado do exército, e meu próprio filho está entre vocês, um paraquedista como eu fui. As mudanças que estão ocorendo para cada um de vocês - algumas mais radicais do que outras - são mudanças que eu conheço muito bem. Então eu vou dizer algumas coisas para vocês sem firulas, na linguagem com a qual vocês estão acostumados.


Em 1970, eu fui designado para a 173ª Brigada Aerotransportada, então sediada na província nortista de Binh Dinh no que era então a República do Vietnã. Quando eu fui para lá, eu tinha minha cabeça cheia de besteira: besteira da mídia, besteira dos filmes, besteira sobre o que supostamente significava ser um homem, e besteira de um monte dos meus vizinhos sabe-tudo que lhes diriam muita coisa sobre o Vietnã mesmo que eles nunca estivessem lá, ou mesmo numa guerra.


A essência de toda essa merda era que nós tínhamos que "ir em frente no Vietnã", e que nós estávamos em alguma missão para salvar os vietnamitas bonzinhos dos vietnamitas malvados, e impedir que os vietnamitas malvados estabelecessem cabeças de ponte nas cercanias de Oakland. Nós fomos em frente até que 58.000 americanos estivessem mortos e muitos mais aleijados pelo resto da vida, e 3.000.000 de pessoas do sudeste da Ásia estivessem mortas. Ex-militares e mesmo muitos no serviço ativo desempenharam um papel importante para acabar com esse crime.


Quando eu comecei a ouvir falar em armas de destruição em massa que ameaçavam os Estados Unidos desde o Iraque, um país despedaçado que suportou quase uma década de guerra de trincheiras seguida por uma invasão e doze anos de sanções, minha primeira pergunta foi por que diabos alguém pode acreditar que este país sofrido representa uma ameaça aos Estados Unidos? Mas então eu lembrei quantas pessoas acreditavam que o Vietnã ameaçava os Estados Unidos. Inclusive eu.


Quando aquela história besta sobre armas foi feita em pedaços como uma camiseta de dois dólares, os políticos que prepararam essa guerra disseram a todo mundo, inclusive vocês, que vocês seriam saudados como grandes libertadores. Eles nos disseram que nós estávamos no Vietnã para garantir que todo mundo ali pudesse votar.


O que eles não me contaram foi que antes que eu fosse para lá em 1970, as forças armadas americanas tinham incendiado aldeias, matado o gado, envenenado terras aráveis e florestas, matado civis por diversão, bombardeado aldeias inteiras e cometido estupros e massacres, e as pessoas que estavam enlutadas e furiosas com isso não estavam em condições de perceber a diferença entre mim - recém chegado ao país - e as pessoas que fizeram aquelas coisas a eles.


O que eles não contaram a vocês é que mais de um milhão e meio de iraquianos morreram entre 1991 e 2003 de desnutrição, negligência médica e más condições sanitárias. Mais de meio milhão daqueles que morreram eram os mais fracos: as crianças, especialmente as crianças muito novas.


Meu filho que está aí agora tem um bebê. Nós visitamos nosso neto em toda oportunidade que temos. Ele tem onze meses agora. Muitos de vocês têm crianças, então vocês sabem como é fácil amá-los, e amá-los com tanta força que vocês sabem que o mundo inteiro iria desmoronar se alguma coisa acontecesse a eles. Os iraquianos sentem o mesmo a respeito de seus bebês, também. E eles não vão esquecer que o governo dos Estados Unidos foi em grande parte responsável pela morte de meio milhão de crianças.


Então a mentira de que vocês seriam saudados como libertadores não passava disso. Uma mentira. Uma mentira para o povo nos Estados Unidos para fazê-los abrir as bolsas para essa obscenidade, e uma mentira para vocês para atiçá-los para um combate.


E quando você põe isso em perspectiva, você sabe que se você fosse um iraquiano, você provavelmente não ficaria maluco com soldados americanos tomando suas cidades também? Essa é a dura realidade que eu enfrentei no Vietnã. Eu sabia enquanto estava lá que se eu fosse vietnamita, eu teria sido um vietcongue.


Mas nós estávamos lá, mandados para um país de outras pessoas, exercendo o papel de ocupante quando nós não conhecíamos o povo, sua língua, ou sua cultura, com sua cabeça cheia de besteira que os nossos assim chamados líderes nos contaram durante o treinamento e preparação para o deslocamento, e mesmo quando nós chegamos lá. Ali estávamos, enfrentando gente que nós tínhamos ordens de dominar, mas qualquer uma delas poderia estar despejando morteiros em nós ou disparando AKs contra nós naquela noite. A pergunta que começamos a fazer era: quem nos colocou nessa posição?


Em nosso processo de luta para sobreviver, e no processo deles de tentar expulsar um invasor que violava sua dignidade, destruía sua propriedade, e matava seus inocentes, nós fomos confrontados uns contra os outros por gente que toma essas decisões em ternos de 5000 dólares, que ria e dava tapinhas nas costas uns dos outros lá em Washington DC com seus bundões recheados de cordon bleu e caviar.


Eles nos fizeram de idiota. Qualquer um pode ser feito de idiota.


Agora são vocês. A única diferença são menos árvores e menos água.


Nós ainda não encontramos um jeito de barrar os puxa-sacos com rostos pálidos sedentos por petróleo em DC, e parece que vocês todos vão ficar metidos aí por mais um tempo. Então quero lhes contar o resto da história.


Eu mudei lá no Vietnã e também não foram mudanças legais. Eu comecei sendo arrastado para algo - algo que se divertia com a dor alheia. Só para me certificar que não seria visto como um "missionário de merda" ou um possível rato, eu aprendi a me virar naquele grupo que era intocável, gente louca demais para ferrar, gente que desejava a onda da onipotência que vem quando se incendeia a casa de alguém só pela dor que causaria, ou que poderia matar qualquer um, homem, mulher, ou criança, sem pestanejar um segundo. Gente que tinha o poder da vida e da morte - porque eles podiam.


A raiva ajuda. É fácil odiar alguém em quem você não confia por causa de suas circunstâncias, e ficar puto com o que vocês viram, o que aconteceu com vocês, e o que vocês fizeram e não podem voltar atrás.


Era tudo uma encenação para mim, um disfarce para temores mais profundos que eu não podia nomear, e a razão que eu sei é que nós tínhamos que desumanizar nossas vítimas anters que nós fizéssemos as coisas que fazíamos. Nós sabíamos lá no fundo que o que nós estávamos fazendo era errado. Assim eles viraram os "dinks" ou "gooks" (termos pejorativos usados para desingar os vietnamitas), da mesma forma que os iraquianos hoje são transformados em "ragheads" ou "hajjis". As pessoas têm de ser reduzidas a "niggers" antes que possam ser linchadas. Não tem diferença. Nós nos convencemos que nós tínhamos que matá-los para sobreviver, mesmo quando não era verdade, mas algo dentro de nós nos dizia que enquanto eles fossem seres humanos, com os mesmo valores intrínsecos que nós tínhamos como seres humanos, nós não estávamos autorizados a queimar seus lares e celeiros, matar seus animais e às vezes até matá-los. Então nós usávamos essas palavras, esses novos nomes, para reduzi-los, para despojá-los de sua humanidade essencial, e então nós poderíamos fazer coisas do tipo ajustar o fogo de artilharia com base no choro de um bebê.


Até que aquele bebê fosse silenciado, contudo, e aqui está o aspecto importante para entender, aquele bebê nunca abdicava de sua humanidade. Eu abdiquei. Essa é a coisa que você não quer entender até que seja tarde demais. Quando você leva embora a humanidade de outrem, você mata a sua própria humanidade. Você ataca sua própria alma porque ela está no caminho.


Então nós terminamos nosso período de combate, e voltamos para nossas famílias, que podem ver que mesmo que a gente faça as coisas, nós estamos vazios e incapazes de realmente se conectar com as pessoas de novo, e talvez nós passemos meses ou mesmo anos antres de preencher aquela lacuna onde nós abdicamos de nossa humanidade, com anestésicos químicos - drogas, álcool, até que nós percebemos que a lacuna nunca pode ser preenchida e nós nos matamos, ou vagamos pela rua onde nós podemos desaparecer com os destroços à deriva da sociedade, ou nós machucamos alguém, especialmente aqueles que tentam nos amar, e acabamos como outra estatística carcerária ou paciente psiquiátrico.


Você sempre pode escapar dizendo que se tornou um racista porque você deu a desculpa de que você precisava daquilo para sobreviver, que você tomou coisas de gente para as quais você nunca pode devolver, ou que você matou um pedaço de você que você poderá nunca ter de volta.


Alguns de nós conseguem. Nós temos sorte e alguém dá duro o suficiente para nos ressuscitar emocionalmente e nos trazer de volta à vida. Muitos não conseguem.


Eu vivo com raiva cada dia de minha vida, mesmo quando ninguém percebe isso. Você pode ouvir em minhas palavras. Eu odeio ser feito de idiota.


Então, essa é minha mensagem para vocês. Vocês vão fazer o que tiverem para sobreviver, contudo vocês definem o que é sobrevivência, enquanto nós fazemos o que temos de fazer para parar esse negócio. Mas não abram mão de sua humanidade. Não para se adequar. Não para se testar. Não para uma descarga de adrenalina. Não para descarregar quando você está furioso e frustrado. Não para nenhum merda de carreirista militar carimbador de documentos se arrumar. Principalmente o Consórcio Bush & Cheney de Gás e Petróleo.


Os chefões estão tentando obter o controle dos suprimentos mundiais de energia para quebrar as pernas dos futuros competidores econômicos. É isso que está ocorrendo, e vocês têm que entender isso, portanto façam o que precisarem para se aferrarem à sua humanidade. O sistema faz isso; diz que vocês são algum tipo de heróis de filme de ação, mas usa vocês como matadores. Eles fazem vocês de idiotas.


A sua assim chamada liderança civil vê vocês como material descartável. Eles não se importam com os seus pesadelos, com o urânio empobrecido que vocês estão respirando, com a solidão, as dúvidas, a dor, ou como a sua humanidade é arrancada pedaço por pedaço. Eles vão cortar os seus benefícios, negar suas doenças, e esconder seus mortos e feridos do público. Eles já estão.


Eles não se importam. Então vocês têm que se importar. E para preservar sua própria humanidade, vocês têm de reconhecer a humanidade das pessoas cuja nação vocês agora ocupam e saber que tanto vocês como eles são vítimas dos imundos bastardos ricos que estão no comando.


Eles são seus inimigos - os engravatados - e eles são os inimigos da paz, e os inimigos de suas famílias, especialmente se forem famílias negras, ou famílias imigrantes, ou famílias pobres. Eles são ladrões e fanfarrões que tomam e nunca dão, e eles dizem que eles "nunca correrão" no Iraque, mas vocês e eu sabemos que eles nunca vão precisar correr, porque eles não estão lá. Vocês estão.


Eles vão puxar o saco enquanto eles estiverem pegando o que querem de você, e te jogar fora como uma camisinha usada quando acabarem. Pergunte aos veteranos que estão tendo seus benefícios cortados agora. Bushfeld e seus amigos são parasitas, e eles são os únicos beneficiários do caos em que vocês estão aprendendo a viver. Eles vão ficar com o dinheiro. Vocês vão ficar com as próteses, os pesadelos, e as doenças misteriosas.


Então se sua raiva precisa de um alvo, aí estão eles, responsáveis por vocês estarem aí, e responsáveis por mantê-los aí. Eu não posso falar para vocês desobedecerem. Isso provavelmente me meteria numa encrenca com a lei. Essa vai ser uma decisão que vocês terão de tomar quando e se as circustâncias e suas próprias consciências ditarem. Mas é perfeitamente legal que vocês desobedeçam a ordens ilegais, e ordens para atacar ou abusar de civis são ilegais. Mandar que vocês mantenham silêncio sobre esses crimes também é ilegal.


Eu posso lhes dizer, sem medo de conseqüências legais, que vocês não estão obrigados a odiar os iraquianos, e vocês nunca estarão obrigados a se entregarem ao racismo, ao niilismo e à sede de matar por matar, e vocês nunca estarão obrigados a deixar que afastem os últimos vestígios de sua capacidade de ver e dizer a verdade para vocês mesmos e para o mundo. Não fiquem devendo isso a suas almas.


Voltem para casa, salvos, e voltem para casa sãos. As pessoas que amam vocês e que os amaram por todas as suas vidas estão esperando aqui, e nós queremos que vocês voltem e sejam capazes de nos olhar nos olhos. Não deixem suas almas ali na areia como outro cadáver.


Aferrem-se à sua humanidade.


Stan Goff
Exército dos EUA (reserva)


Stan Goff é o autor de "Sonho Medonho: As Memórias de um Soldado da Invasão do Haiti pelos EUA" (Editora Soft Skull, 2000) e do livro inédito "Desordem do Espectro Total" (Soft Skull, 2003). Ele é um integrante do comitê coordenador da BRING THEM HOME NOW (Tragam-nos de volta para casa!), um sargento-mor aposentado das Forças Especiais, e pai de um soldado em combate. O correio eletrônico da BRING THEM HOME NOW é bthn@mfso.org.


Tradução do Círculo Bolivariano de São Paulo



Original em Counterpunch


Fonte: http://www.unidadepopular.org/stangoff.htm


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