14 novembro, 2010

Slavoj Zizek (2/2/2009)
O filósofo esloveno critica o capitalismo liberal e afirma que a idéia de "fim da história" contaminou até mesmo a esquerda. Ao contrário, seria preciso continuar a se pensar em transformações radicais







Alexandre Machado: Boa noite. Para que serve a filosofia? Ele diz que serve para prevenir catástrofes e para fazer ver as coisas de outra maneira. É de uma maneira diferente que ele se destaca no debate da cultura contemporânea e na análise crítica dos desafios políticos do mundo. Diz que o capitalismo é indestrutível e provoca: "Com essa esquerda que está aí, quem precisa de direita?". O Roda Viva entrevista hoje o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, professor da Universidade de Liubliana, da Eslovênia, e diretor internacional do Instituto de Humanidades, da Universidade de Londres. A entrevista começa num instante.

[intervalo]

Alexandre Machado: O filósofo Slavoj Zizek tem uma maneira singular de fazer ligações entre história da filosofia, crítica cultural e política. Especialista em Jacques Lacan, o principal seguidor de Freud, Slavoj Zizek também se tornou conhecido entre os cinéfilos. Ele é um especialista Hitchcock [(1899–1980) diretor inglês considerado o mestre dos filmes de suspense, revolucionou a história do cinema com os planos dramáticos dos protagonistas e é um dos cineastas mais conhecidos e populares de todos os tempos]. Como filósofo e crítico da cultura, ele escreve para várias publicações de prestígio no mundo, inclusive no Brasil, onde retornou recentemente para lançar o seu último livro: A visão em paralaxe.

[Inserção de vídeo. Imagens de Slavoj Zizek, de seu último livro, da cidade de Liubliana, do atentado terrorista de 11 de setembro. Narração de Valéria Grillo]

A visão em paralaxe. Na orelha do livro, a explicação de paralaxe: medida da mudança de posição aparente de um objeto em relação a um segundo plano mais distante, quando esse objeto é visto a partir de ângulos diferentes. Um fenômeno óptico onde os objetos parecem sair do lugar quando mudamos a posição de observação. Zizek aborda atualidade a partir de uma paralaxe, de uma divisão dos pontos de vista como fato necessário para defesa de uma posição, de uma idéia. Navega pelos mais variados cenários intelectuais: da teoria social para a crítica da cultura, da teoria do cinema para o marxismo, a psicanálise e a política. Slavoj Zizek nasceu na cidade Liubliana, na Eslovênia, em 1949, é filosofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Viveu na juventude e na vida universitária o ambiente político criado pela formação da República Socialista Federal Iugoslava. A Eslovênia, vizinha da Áustria, era uma das seis Repúblicas da antiga Iugoslávia, se tornou independente em 1991, quando Zizek, aos 42 anos de idade, já ganhava evidência no cenário intelectual da União Européia. Nome presente no debate sobre a desintegração dos Estados socialistas, ele também levou suas teses e críticas ao universo do cinema, do feminismo, da religião e da política. Ligado a um movimento de minorias organizadas em Liubliana, uma das mais bonitas capitais européias e de vida natural intensa, Zizek chegou a ser candidato à Presidência da República pelo Partido Liberal Democrático Esloveno, perdeu a eleição e se dedicou integralmente à carreira acadêmica, se tornando também um especialista em Jacques Lacan, o principal seguidor de Freud. Slavoj Zizek dá aulas na Universidade de Liubliana, também é professor visitante em várias universidades norte-americanas - Columbia, Michigan, Princeton - e tem vários livros publicados. Em Bem-vindo ao deserto do real, pergunta: “Com essa esquerda, quem precisa de direita?”, uma crítica ao pensamento de esquerda criado a partir dos ataques de 11 setembro de 2001 nos Estados Unidos. Às portas da revolução é uma reunião de textos de Lênin [(1870-1924), líder revolucionário russo que se tornou dirigente da União Soviética, adaptou as teorias marxistas para a realidade russa, um país atrasado, agrícola, com vestígios de um sistema feudal e sem nenhuma consciência revolucionária], uma nova leitura da Revolução Bolchevique e de seu líder teórico. O livro mais recente, A visão em paralaxe, é uma combinação de alta cultura com drama cotidiano, um conjunto de análises e críticas muitas vezes apresentadas com humor e ironia. É considerado o mais importante trabalho teórico de Slavoj Zizek.

[Fim do vídeo]

Alexandre Machado: Para entrevistar o filósofo Slavoj Zizek, convidamos Emir Sader, sociólogo; Maria Rita Khel, psicanalista e escritora; Laura Greenhalgh, editora executiva do jornal Estado de S.Paulo e coordenadora dos cadernos Aliás e Cultura do jornal; Vladimir Safatle, professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo e Luiza Moraes, repórter da TV Cultura, que fará as perguntas enviadas antecipadamente por telespectadores. No site www.tvcultura.com.br/rodaviva você pode se informar sobre os próximos programas e enviar por e-mail perguntas, críticas e sugestões. Está aqui também com a gente, como sempre, o cartunista Paulo Caruso, para registrar os momentos, os flagrantes deste programa. Boa noite, tudo bem?

Slavoj Zizek: Good evening to you ["Boa noite para você", em inglês]

Alexandre Machado: Zizek, nós convencionamos aqui que, apesar de todos os seus títulos, vamos tratá-lo por você, pode ser? [Zizek assente com a cabeça] A primeira pergunta que eu queria trazer é sobre a situação mundial. O senhor... você tem escrito a respeito do capitalismo, sobre a capacidade do capitalismo de atravessar as crises. E hoje vivemos uma enorme crise do capitalismo. Como é que você vê este momento?

Slavoj Zizek: Em primeiro lugar, obrigado por me receberem aqui. E gosto de ser chamado de você, porque me sinto um proletário. Quando me chama de outra forma, sempre olho para trás, imaginando que estão falando com outra pessoa. Você foi direto ao ponto: onde estamos hoje? Estamos no final de uma utopia. Em geral, as pessoas consideram 1990 como o fim da utopia, a queda do Muro de Berlim. O fim da utopia comunista, da utopia do Estado de bem-estar social. Mas a verdadeira utopia foram os anos 1990, os felizes anos de Clinton [foi presidente dos Estados Unidos entre 1993 e 2001, anos de grande desenvolvimento econômico da nação. Deixou o cargo com as mais altas taxas de aprovação para um presidente na história moderna dos Estados Unidos], os anos da utopia Fukuyama [Francis Fukuyama (1952-), filósofo e economista político que defendia a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética como a interrupção da evolução ideológica da humanidade e a democracia liberal ocidental como única alternativa ao mundo. Assita à entrevista com Fukuyama no Roda Viva]. Achávamos ter descoberto a fórmula: capitalismo democrático liberal. Todos fazem piada com Fukuyama: “Aquele idiota que achou que a história tinha acabado.”. Mas, será que ainda hoje, não somos quase todos... “fukuyamistas”? Até mesmo a esquerda de hoje. Eles não pensam: “O capitalismo está aqui para ficar?”, “Temos um sistema melhor do que a democracia parlamentarista?”. Silenciosamente, nós aceitamos isso. Apenas queremos o sistema mais justo, mais eficaz. Talvez vocês aqui, que são velhos o bastante, se lembrem de como sonhávamos, quando jovens, com o socialismo com face humana. Creio que a maioria da esquerda, hoje, sonha com o capitalismo global com uma face humana. E, para mim, essa é a única verdadeira questão. Será que ainda podemos pensar em alternativas globais radicais? Ou devemos aceitar que capitalismo e democracia liberal são, se não o melhor, o menos ruim do que existe? Devemos simplesmente permanecer no jogo e dele participar? Nesse sentido exato, eu, de certa forma, continuo um marxista [adepto das proposições de Karl Marx]. Hoje conseguimos aos poucos identificar uma série de – para usar um termo antigo – antagonismos: ecologia, a ascensão dos que vivem nas favelas, apartheid [regime de governo adotado em 1948, na África do Sul, que determinou que a minoria étnica branca detinha o poder sobre a maioria negra, separou os grupos étnicos por bairros e retirou os direitos civis dos negros. O termo continua sendo utilizado para designar situações em que haja distinção nítida, em termos de cidadania, entre etnias ou classes sociais], problemas de propriedade intelectual, de biogenética. A lógica democrática liberal e, ao mesmo tempo, a lógica capitalista orientada para o mercado não é o suficiente para confrontar esses problemas. Sei que a era do socialismo de Estado acabou. Não temos de voltar ao comunismo de Estado ou coisa do tipo. Com o partido controlando tudo. Mas, teremos de inventar novas formas de ações coletivas. Ou receio que nos aproximemos de um mundo muito triste, onde a natureza será destruída, onde teremos novas comunidades confinadas, apartheid, e a humanidade estará cada vez mais dividida entre aqueles que estão dentro e os que estão fora. Já reparou nesse paradoxo? Quando dizemos: “Anos 1990, o mundo está unido, cai o Muro de Berlim.”. Hoje, novos muros são construídos no mundo todo. Cisjordânia e Israel, Estados Unidos e México. O muro, agora simbólico, entre a Europa Ocidental e tudo o mais. Não podemos apenas ficar parados esperando. Devemos nos engajar em lutas, cientes de que, em muitas dimensões, confrontamos uma situação crítica. Do ponto de vista ecológico, social... Meu marxismo significa que não devemos nos esquecer disso. Ainda não temos a resposta.

Maria Rita Khel: Boa noite. No A visão em paralaxe, você se refere a um sujeito pós-traumático. Sei que você é psicanalista, profundo conhecedor de Lacan e Freud. Eu lhe pergunto se esse sujeito pós-traumático seria um sujeito pós-neurótico. Não é exatamente o que a gente vê na clínica, em psicanálise mas, talvez, em termos de uma nova subjetividade emergente, [pergunto] se esse sujeito das identidades fluidas, se ele já não seria mais o neurótico freudiano, se há um sujeito, uma nova clínica surgindo aí.

Slavoj Zizek: Em primeiro lugar, deixe-me esclarecer um coisa. Sou psicanalista, mas apenas teoricamente. Não tenho paciência ou habilidade para tratar pessoas. Olhe para mim, sou todo nervoso [Slavoj gesticula]. Faça a si mesma uma pergunta simples: se você tivesse problemas psíquicos graves, você se imaginaria me procurando como analista?

[Risos]

Maria Rita Khel: Lacan também era esquisito.

Slavoj Zizek: Provavelmente não. Mas você tocou em ponto crucial. No século XX uma nova formula de subjetividade surgiu, à qual – e não gosto desse nome – se aplica a denominação pós-traumática. E a primeira figura teria sido os mulçumanos em campos de concentração. Em terminologia vampiresca poderíamos falar em mortos-vivos. Aqueles que estavam tão destruídos psiquicamente, que estavam desprovidos da libido do seu ser. Pessoas que não eram mais capazes de estabelecer empatia, não têm mais ligação com o mundo. Estavam apenas vegetando. Usando um termo não poético e nada preciso: ao olhar nos olhos deles, não se vê o brilho de vida, o desejo de viver. E acho essa categoria crucial. Está se tornando um símbolo, ou caso exemplar... e sou até mesmo tentado a dizer, fazendo uma breve relação entre a psicanálise e a teoria social, a nova figura do proletário. Lembrem-se de que, para Marx [Karl Marx], o proletário não é tão somente o trabalhador que é explorado mas, para Marx, em termos bastante precisos e hegelianos [referentes a Hegel], é uma forma pura de sujeito destituído de todo conteúdo substancial. Apenas uma forma. E todo o conteúdo foi tirado de você. E não seria essa forma de subjetividade pós-traumática, um morto-vivo, em termos vampirescos? Aquele que ainda está vivo enquanto sujeito – você trabalha, você conversa -, mas é como se fosse um morto-vivo sem libido, sem envolvimento. E há outras formas: vítimas de desastres naturais, vítimas de guerra, de tortura, até mesmo de processos biológicos, como Alzheimer [mal neurodegenerativo comum entre os idosos, que se manifesta por uma perda progressiva de habilidades cognitivas e motoras], degeneração cerebral. Há também uma dimensão política nisso. Embora, em geral, eu discorde de Antonio Negri [(1933-), filósofo político marxista, tradutor de escritos de Filosofia do Direito de Hegel, escreveu os livros Império e Multidão, textos de temática anti-globalização, em co-autoria com seu ex-aluno Michael Hardt] e Michael Hardt [(1960-), teórico literário, filósofo político e professor na Duke University, nos EUA], concordo com eles quando dizem que o que está acontecendo hoje é o que chamam, usando o antigo termo, da modernidade precoce, a privatização dos bens comuns. Não no sentido de privatização da propriedade, mas da substância de nosso ser, que pertence a todos como herança coletiva. E os processos que testemunhamos hoje são novas formas disso. Ecologia, até mesmo a base de nosso ser, é tirada de nós. Propriedade intelectual. Nossa herança simbólica nos é tirada. Assim, esse sujeito vazio, o morto-vivo, é para mim – mas esse é um tópico mais filosófico –, é mais uma forma de subjetividade de Descartes [(1596-1650), filósofo, físico e matemático, um dos pensadores mais importantes e influentes da história do pensamento ocidental, a quem se atribui o início do racionalismo da Idade Moderna]. Nesse sentido, para não nos perdermos falando demais, acho que hoje deveríamos redefinir a posição do proletariado. Não [me refiro] apenas [aos] trabalhadores explorados, mas [a] todas as outras formas de proletarização. Como um trabalhador intelectual, que faz programação de computador, mas o que ele faz não lhe pertence. Ele faz para a Microsoft ou quem quer que seja. Todo o resultado do seu trabalho é privatizado ou pertence a outro. Ou pessoas que vivam em ambientes destruídos, em meio a catástrofes naturais. Não seriam essas as novas figuras do proletariado? Creio que devemos nos ater à palavra “proletário” e também - e aí é difícil - ao seu oposto do marxismo, o comunismo. O comunismo terá de se reinventado. Claro que não se trata do antigo comunismo de Estado, de se nacionalizar todas as indústrias... O problema é como se reapropriar desses bens comuns que nos foram tirados. A substância coletiva de nossa vida. Aqui é possível ver – para concluir – o quanto é crucial hoje não pensar em domínios separados, mas perceber que, mesmo uma categoria que parece ser puramente filosófica – como Cogito [Argumento de Cogito, importante conceito filosófico utilizado por Descartes, pois mostra que o sujeito é uma necessidade do conhecimento, mudando totalmente o pensamento da Filosofia Moderna], Descartes, o sujeito puro – tem um conteúdo psicanalítico preciso... O chamado sujeito pós-traumático é o Cogito de Descartes, que encontramos na realidade, mas também um conteúdo político muito preciso. E só para acrescentar outra coisa: e por que não gosto do termo "sujeito pós-traumático"? E espero que vocês concordem comigo. É um termo que se enquadra bem nas sociedades ocidentais desenvolvidas. Ali, quando se tem um trauma, em geral, é algo que acontece rapidamente e então você está em uma situação pós-traumática, pensando em como lidar com aquilo. Você é estuprada, há um ataque terrorista, um terremoto. Você sobrevive... E aí, como lida com isso? Mas em países menos desenvolvidos não há situação pós-traumática, o trauma apenas persiste. No ocidente você é estuprada e então, se sobrevive, você fica traumatizada, pensando como vai lidar com aquilo. No terceiro mundo você é estuprada e depois é novamente. É uma situação muito mais desesperadora. É uma ironia falar para uma mulher comum no Congo, por exemplo, - a República do Congo talvez seja o local da maior das catástrofes – que ela vive em um pós-trauma. Não. Ela vive em um trauma permanente. Assim, há muito o que fazer aqui. E mais do que nunca precisamos não apenas de análise social, mas ligada a psicanálise e, como pano de fundo, a filosofia. Só mais uma coisa e já vou parar. Por que filosofia? Está bem, você é o cara mau. Meu superego [conceito psicanalítico que abrange a instância das normas sociais]. Tudo bem. [risos] se você tivesse um botão, você o apertaria agora para me fazer parar. Só gostaria de dizer que a coisas estão mudando rapidamente hoje, que temos de pensar filosoficamente até mesmo no que significa ser um ser humano hoje. Nós nem ao menos sabemos. Isso foi um aplauso ou um “Finalmente você terminou.”?

Alexandre Machado: Foi um aplauso. [Alexandre aplaude e sorri] Safatle.

Vladimir Safatle: Eu tenho uma questão... eu queria... se você pudesse desenvolver um pouco mais essa sua idéia da necessidade de recuperação do comunismo como categoria política, porque na sua primeira resposta você havia dito da necessidade de novas formas de ação coletiva enquanto uma tarefa política fundamental, hoje em dia. Você acredita que essas novas formas de ação política podem ser desenvolvidas no interior das estruturas institucionais da democracia liberal e parlamentar?

Slavoj Zizek: Sim e não. Estou bastante ciente do perigo de confiar demais no que chamamos de Porto Alegre [refência à cidade-sede do Fórum Social Mundial nos anos de 2001, 2002, 2003 e 2005]. Toda essa idéia de comunidades locais auto-organizadas, há um limite para isso. Nunca devemos nos esquecer, como os esquerdistas radicais sabem, de que para todos esses movimentos locais funcionarem em geral é preciso um mecanismo do Estado que garanta isso. Sem dúvida, não devemos apenas ficar parados e dizer que esses movimentos locais são irrelevantes, como alguns esquerdistas pessimistas alegam. Que esses movimentos, ao tratarem alguns dos piores sintomas do capitalismo, ajudam o sistema a sobreviver ainda mais. Então, a idéia é sentar e esperar pela grande crise. Não concordo com isso. Isso é uma catástrofe. Se você espera pela grande crise você, basicamente, é pego por essa economia obsessiva. Porque vocês sabem como funciona a mente obsessiva. Espera-se o tempo todo pelo grande acontecimento, mas o grande prazer é o fato de esse grande evento ser adiado. Hoje, muitos esquerdistas radicais no meio acadêmico ocidental esperam pela revolução e, enquanto isso, desfrutam o conforto de sua vida. Mas, não devemos ser maus utopistas, pensando em comunidades locais aqui, zapatistas [referência ao Exército Zapatista de Liberação Nacional, movimento revolucionário e indigenista mexicano de inclinação à esquerda. Caracteriza-se pelo combate ao latifúndio, ao imperialismo e por defender práticas de democracia direta] ali, já tivemos isso. O problema é mais complexo. E é por isso que, embora eu sempre critique isso, um fenômeno político como Hugo Chávez [presidente da Venezuela eleito pelo voto popular em dezembro de 1998 e reeleito em em 2000 e em 2006, fez grandes reformas administrativas e políticas e teve apoio popular. Seu governo passou por várias crises. Para saber mais sobre Hugo Chávez, ver entrevistas no Roda Viva], na Venezuela, e ainda mais interessante, Morales [Evo Morales (1959-), líder do Movimento para o Socialismo, foi o primeiro presidente da Bolívia de origem indígena. Assumiu o cargo em janeiro de 2006], na Bolívia, e talvez meu verdadeiro herói, brutalmente deposto, Jean-Bertrand Aristide [(1953-), ex-padre salesiano (expulso em 1988), foi presidente do Haiti em 1991, entre 1994 e 1996, e entre 2001 e 2004. Foi afastado do governo em 1991, por um golpe militar, e em 2004, que afirma ter sido influenciado por militares estadunidenses], do movimento Lavalas, no Haiti... Em uma situação que parece sem esperança, de total hegemonia do capitalismo... O que eles fizeram não foi apenas confiar nessas comunidades locais auto-organizadas, mas tentaram reinventar, com toda a improvisação, uma nova forma de Estado, apoiada não apenas na representação política padrão mas com um diálogo direto com esses novos movimentos. Acho que o que podemos fazer é isso, mas, acima de tudo, minha mensagem seria: “confie na teoria.”. Ou seja, creio que nem sabemos onde estamos. Temos muitas descrições. Primeiro temos os antigos marxistas ou liberais que alegam que esse é só um novo estado de imperialismo/capitalismo. Claro que não. Alguma coisa nova está surgindo. Mas o quê? Temos todas essa pós-teorias. Vivemos em uma sociedade pós-industrial, sociedade da informação... Essas são frases jornalísticas. Ainda não temos o que o Frederick Jameson [(1934-), crítico literário e político marxista que se dedicou ao tema da cultura contemporânea e pós-modernidade] chama de...

Alexandre Machado: Professor,...

Slavoj Zizek: Sim. Já vou parar... Mapeamento cognitivo. Para concluir, você vai gostar disso... Eu ignoro você e me volto para o chefe. E a 11ª tese sobre o Feuerbach [referência ao conjunto de 11 notas curtas escritas por Marx caracterizadas pela crítica ao idealismo hegeliano. Ludwig Andreas Feuerbach (1804-1872) foi um filósofo alemão que abandonou os estudos de Teologia para tornar-se aluno de Hegel] diz: “Filósofos só podem interpretar o mundo. Temos também de mudar o mundo.”. A primeira coisa a fazer para os verdadeiros esquerdistas hoje é exatamente o oposto. Talvez no século XX tenhamos tentado mudar demais o mundo. A tarefa hoje é nos afastarmos e o interpretarmos [o mundo] um pouco mais.

Alexandre Machado: Ok. Eu tentei interrompê-lo porque a Luiza me fez um sinal de que teria uma pergunta ligada ao assunto que você estava tratando.

Luiza Moraes: Na verdade, é uma pergunta do Natanael Araújo da Silva, de Cachoeira do Itapemirim, do Espírito Santo, que lhe pergunta justamente... a gente está falando isso agora, citando essa questão da crise...

Slavoj Zizek: [Interrompendo] É o nome de uma cidade? Não é o Espírito Santo? Certo.

[Risos]

Luiza Moraes: Como a filosofia pode ajudar a entender os períodos de crise, como o da crise financeira pela qual o mundo passa? Ela pode ser útil?

Slavoj Zizek: É uma pergunta direta e gosto disso. Como John McCain [(1936-), político norte-americano do Partido Republicano, senador pelo estado do Arizona (desde 1987)], de quem eu não gosto, diz: “Nada de besteira.”. É uma boa pergunta, porque a filosofia para mim tem limites claros. E é interessante como mesmo as pessoas que nos criticam de alguma forma esperam de nós – e você como filósofo [dirige-se a Vladimir Safatle] deve ter sentido isso –, esperam que tenhamos uma resposta para tudo. A guerra do Iraque [invasão liderada pelos Estados Unidos, que justificaram a operação por suspeitarem que o país estaria desenvolvendo armas de destruição em massa]. O que você acha, como filósofo? O tsunami na Indonésia [em 26 de dezembro de 2004, um maremoto no oceano Índico disparou uma sequência de ondas gigantes que atingiram zonas costeiras e fizeram vítimas fatais estimadas em mais de 285 mil], o que você acha? Eu não sei! Mas posso fazer uma coisa, que acho também muito importante hoje. Como filósofo, eu não posso responder às perguntas. O que posso fazer é corrigir a própria pergunta. O verdadeiro problema hoje não é somente não termos respostas, mas, em geral, a maneira de percebermos um problema, a maneira como formulamos o problema, a maneira como formulamos uma pergunta já é parte do problema. É uma mistificação. Vejamos o exemplo que eu usei ontem em minha palestra o tempo todo. Tolerância. Claro que todos são a favor da tolerância. Eu não sou. Pois hoje a tolerância é uma categoria mistificadora. E por quê? Já repararam que hoje, quando se combate o racismo, isso é automaticamente traduzido como problema de tolerância? Mas para mim não é. Vejam Martin Luther King. Ele nunca falou em tolerância. Para ele, o racismo contra os negros era um problema de exploração econômica, leis racistas etc. Hoje a questão é: você é negro, eu sou branco. Como nós toleramos etc, isso é ridículo. Ainda mais no feminismo. Seria humilhante para uma feminista dizer: “Quero mais tolerância por parte dos homens.”. É ridículo! O que posso fazer como filósofo é perguntar por que percebemos o racismo como problema de tolerância? Eis a análise: em nossa assim chamada - e digo “assim chamada” porque o termo é errado - sociedade pós-ideológica, pós-política, economia e política são cada vez mais uma questão de administração, de negociação racional. Os conflitos são traduzidos em problemas de conflitos culturais. Então “culturalizamos” os problemas. Quando ouço analistas americanos esquerdistas radicais nos Estados Unidos é como se o racismo contra mexicanos nos Estados Unidos fosse uma questão de intolerância cultural. Eles não gostam de falar sobre exploração econômica. Falam sobre intolerância cultural, que eles são diferentes. E vêm com toda essa coisa pseudopsicanalítica: “Não os toleramos pois projetamos neles nosso próprio outro.”. E, então, de uma forma freudiana vulgar, para combater a intolerância, devemos todos fazer uma psicanálise coletiva... E eu poderia continuar, mas vou parar. Você é meu superego aqui [dirigindo-se a Alexandre Machado e sua função de moderador]. É o que podemos fazer como filósofos: combater a intolerância. Combater o sexismo é um problema. Mas vamos ao menos formular o problema de forma adequada. Essa seria minha resposta – não tenho mais tempo - em relação a esse fiasco chamado “degelo”. Não sei o que fazer, mas como filósofo percebo algumas coisas. Nós, da esquerda, podemos ao menos aprender duas coisas disso. Primeira: a extensão do capital como o absoluto em nossa vida. Tudo gira em torno do capital. O capital, referindo-me ao título do meu livro sobre cristianismo, é um frágil bastante absoluto. Até que ponto as pessoas pensam no capital como algo violento, "Nada de besteiras, nada de sonho.", mas sim capital, dinheiro? Como ele se relaciona não apena com crenças, mas crenças em crenças e em mais crenças. Qual é o problema hoje, quando se diz que temos de restabelecer a confiança, a crença? Não é apenas que eu deva acreditar que o sistema funciona. Devo acreditar que a maioria das pessoas irá acreditar... Essa é uma lição. Até que ponto o sistema de hoje é teológico? Marx já tinha consciência dessa estranha dimensão teológica descrita no âmago do capitalismo. E Walter Benjamin diz que o capitalismo é uma religião em si mesmo. A segunda coisa que aprendi é que a grande lição dessa crise é a economia política. Se você não for um total idiota verá a lição dessa crise. Não existe mercado que já não seja sustentado por decisões políticas do Estado. Temos de estar cientes de que toda economia é economia política. Não é verdade o que John McCain diz que este é um momento de união patriótica. Não. Este é o momento da política. A economia hoje precisa ser politizada. Não soluciona os problemas do sistema, mas pelo menos espero que altere um pouco a perspectiva.

Alexandre Machado: Ok. Bom, precisamos fazer um intervalo, lembrando que, por se tratar de um programa gravado, as perguntas dos telespectadores apresentadas aqui chegaram antecipadamente e pela internet, no site www.tvcultura.com.br/rodaviva. Você pode se informar sobre os próximos programas e pode enviar por e-mail as suas perguntas, críticas e sugestões. Vamos voltar num instante e, no segundo bloco, com as perguntas da Laura e do Emir, que ainda não entraram no programa. Já, já, estaremos de volta.

[intervalo]

Alexandre Machado: Voltamos com o Roda Viva, que hoje entrevista o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek. Ele é professor da Universidade de Liubliana, na Eslovênia, e diretor internacional do Instituto de Humanidades da Universidade de Londres e uma figura presente no debate atual sobre cultura e política no mundo. Laura, com você agora.

Laura Greenhalgh: Então está bom. Zizek, eu vou fazer duas perguntas pra você que estão relacionadas com as suas respostas no primeiro bloco do programa. Eu tenho pensado muito, nos últimos dias, na história enquanto espetáculo, porque a gente tem ouvido e acompanha as críticas e as defesas do modelo da ordem econômica global. Então isso está se passando nos últimos anos com apoiadores e detratores, enfim, com um debate em torno disso, mas o que se viu nos últimos dias foi um processo muito rápido, começando por Wall Street [rua de Nova York - em Manhatan - onde se encontram a bolsa de valores, bolsas de mercadorias e as sedes dos principais bancos, seguradoras e outras instituições financeiras estadunidenses], depois se espalhando por outros lugares do mundo em que símbolos de solidez, supostamente de solidez - e o caso mais emblemático é o [The] Lehman Brothers [banco norte-americano que pediu concordata em 2008, devido à crise financeira iniciada no ano anterior nos Estados Unidos] - da noite para o dia viram símbolo de vulnerabilidade. Então me parece que isso é muito impactante, há um sistema financeiro em xeque que pode desordenar o sistema econômico, mas evidentemente eles estão procurando os próprios antídotos no meio dessa confusão toda. Então a primeira pergunta é: diante desse espetáculo que a história está nos proporcionando, você acha que há um momento de reavaliação da lógica capitalista ou isso vai ser um episódio efêmero e o capitalismo vai continuar o seu curso? Segunda questão: eu acho muito interessante quando você traz a discussão sobre tolerância, ou seja, o conceito de tolerância embutindo uma mistificação, e aí eu pergunto para você o seguinte: isso tem a ver com a falha das políticas ecumênicas no campo religioso, ou seja, também um ecumenismo, discurso do ecumenismo também é mistificador? São as duas perguntas.

Slavoj Zizek: Ótimas perguntas. A primeira: Certamente, devemos usar essa crise como algo que nos permita questionar as bases do capitalismo. O jogo não pode continuar indefinidamente. Também nesse aspecto continuo um marxista. Teremos de achar formas de não meramente abolir o capitalismo mas, de alguma forma, superá-lo. Não tratá-lo como nosso último horizonte. O que sempre me fascinou é essa plasticidade incrível do capitalismo. O problema com o capitalismo é que ele está em crise desde o início. Antes mesmo da Revolução Francesa havia crises, havia profetas da destruição dizendo que esse era o fim. Desde o final do século XVIII havia profetas que diziam que o capitalismo estava chegando ao fim. Marx achou que a Comuna francesa [Comuna de Paris] era o fim. Lênin achou que era o fim. Mao [Mao Tsé Tung (1893-1976), fundador da República Popular da China, em 1949, e criador do marxismo-leninismo-maoismo, com idéias sobre revolução e guerrilha que influenciaram marxistas no mundo inteiro] achou que era o fim. Mas o problema é que, quanto mais o capitalismo se desintegra, mais ele ressurge como a Fênix [pássaro muito forte da mitologia grega que, ao morrer, entrava em auto-combustão e, passado algum tempo, renascia das próprias cinzas]. Não estou dizendo que ele seja indestrutível, que estejamos fadados a isso. Mas devemos estar cientes dessa plasticidade. Alguns esquerdistas colocam suas esperanças, masoquisticamente, em uma grande catástrofe ecológica. Como se no caso de alguma coisa realmente terrível acontecer – aquecimento global, grandes terremotos – tivéssemos de impor uma lógica mais coletiva. Não necessariamente. Posso imaginar o aquecimento global e o capitalismo se reinventando rapidamente, e isso já acontece. Eu soube que, com essa perspectiva do degelo no Ártico, em um ou dois anos será possível ter uma passagem direta da China, através do Polo Norte, para os Estados Unidos. Já estão comprando terras no Ártico e na Groenlândia. Não será meramente por causa de uma crise externa que entraremos em colapso. Continuo aqui um marxista. O que é muito perturbador em termos de ameaça ao capitalismo é o fato, já previsto por Marx, que o núcleo da produtividade, inventividade, esteja indo em direção ao que ele chamou de propriedade intelectual. E aqui o capitalismo está encontrando o seu limite. Está ficando cada vez mais difícil forçar, imobilizar a produtividade intelectual, programas de computador, toda essa produção imaterial em uma forma de propriedade privada. Lembrem-se de que a crise atual foi, originalmente, uma crise da propriedade intelectual. Lembrem-se de que em 2001 ou 2002 houve primeiro essa crise digital, a crise de tudo isso, e para impedir uma crise econômica global o governo americano tentou artificialmente redirecionar investimentos dali para bens imobiliários, moradias. Por isso a propriedade intelectual, um problema totalmente inerente, e não uma ameaça externa ao capitalismo, é um fenômeno muito mais ameaçador. Pensemos em Bill Gates [Willian Henry Gates III, nascido nos Estados Unidos em 1955, é fundador da empresa de tecnologia informática Microsoft, um dos homens mais ricos do mundo]. O fato de uma pessoa que trinta anos atrás não era ninguém, brincando na garagem, ter se tornado o homem mais rico do mundo, isso não é prova de que não se pode nem fingir que o valor de mercado reflita uma verdadeira produtividade e conquistas? O funcionamento do mercado é totalmente patológico. Até mesmo um economista conservador americano, com quem eu conversava, usou uma ótima metáfora. Ele me dizia que o movimento padrão do mercado, com seu sobe e desce, é como um eletrocardiograma. Que o mercado e a propriedade intelectual são como um ataque cardíaco grave. Tudo isso aponta para uma crise bastante séria. Assim, é cada vez mais claro que não se trata apenas de mercado e regulamentação do Estado. Esses debates pseudo-liberais sobre até que ponto o Estado deve intervir no mercado. O mercado não pode sobreviver sem intervenção do Estado. O paradoxo é que... Vocês se lembram de que anos atrás os EUA processou a Microsoft por monopólio? Esse é um paradoxo maravilhoso. Significa que o Estado tem de intervir para que o mercado sobreviva. O mercado, espontaneamente, teria, há muito tempo, abolido a si próprio. Vejo aqui ameaças imanentes ao capitalismo. Por isso devemos ter em mente essa lógica... o fim do capitalismo, mas não de forma ingênua: “Oh, essa será a última crise.”. Devemos... [Alexandre Machado pede para que Slavoj responda à segunda questão] Certo. A segunda pergunta. Você falou em tolerância e...?

Laura Greenhalgh: Ecumenismo.

Slavoj Zizek: Ecumenismo. Concordo plenamente com você e vou ainda mais adiante. A espiritualidade dominante hoje – e é por isso que gosto de defender em meu trabalho o legado cristão... para evitar quaisquer mal entendidos, sou 100% ateu. Não estou pregando nenhuma volta de um pensamento pós-secular de Deus. O que me interessa no cristianismo é a forma social de organização que ele implica. O cristianismo é a primeira religião totalmente ateísta, para mim. A idéia é de que Deus está morto e tudo depende de nós - nós, o Espírito Santo, ou seja, o Partido Comunista, a coletividade. Sem nenhuma garantia em Deus. Para mim, a mensagem de Cristo morto não é “Eu vou salvá-lo”, como muitos teólogos inteligentes disseram. A mensagem não é que Deus irá nos salvar ou que podemos confiar em Deus. Deus é impotente sem nós. Ou seja, tudo depende de nós. É essa lógica de ação coletiva. Acho que, em termos abstratos, a espiritualidade que se enquadra ao capitalismo global de hoje é uma espécie de pseudo-espiritualidade de Dalai Lama [os dalai lamas, líderes temporais e espirituais do povo tibetano, são reconhecidos, segundo a tradição, como a reencarnação do príncipe Chenrezig, o Avalokitesvara, o portador do lótus branco, que representa a compaixão, ou seria uma das reencarnações de Buda. Tenzin Gyatzo é o 14º Dalai Lama, reconhecido como tal em 1937]. E, estabelecendo uma ligação entre suas perguntas, você sabia que uma espécie de budismo vago é extremamente popular entre aqueles capitalistas especuladores? Pois para eles isso trata exatamente do fenômeno que você mencionou em sua primeira pergunta, essa total fragilidade. De que hoje tudo pode desmoronar. Há toda uma escola de capitalistas zen, como se auto-intitulam, que dizem que o capitalismo é a prova máxima de que nossa descrição da realidade, de que toda realidade é frágil, a pseudo-realidade... Que as coisas, na verdade, não existem, são apenas fenômenos. Isso trata muito bem a experiência ontológica do capitalismo. Não há realidade substancial... Em termos religiosos, a luta seria entre cristãos materialistas e espiritualistas da nova era. O espiritualismo da nova era, mesmo sendo descrito como verde, tolerante, ecumênico, esse é o inimigo hoje. Essa é a voz da sabedoria, despolitização... A voz do quê? No passado, as pessoas falavam de marxismo ocidental. Gosto de falar de budismo ocidental. Como esse orientalismo espontâneo. Ou seja, a economia é apenas um jogo, não leve isso a sério. Afaste-se. Observe o mundo como um jogo. Mas essa é a única maneira de sobreviver. O capitalismo é tão dinâmico que você precisa desse distanciamento cínico, ou irônico, para sobreviver. E você percebeu outra coisa? Mesmo os novos materialistas – e esse é um fenômeno interessante hoje -, pela primeira vez nos Estados Unidos, que me lembre, autores do materialismo brutal como Richard Dawkins [biólogo britânico que se tornou um dos maiores defensores do princípio darwininano e da teoria neodarwinista e um dos maiores críticos públicos da idéia de Deus e da espiritualidade], Dennett [filósofo ateu norte-americano, para quem os estados interiores da consciência não existem] e outros tornaram-se aceitos como tendência principal. Mas, se você analisar o trabalho deles de perto, eles sempre fazem uma exceção. Eles dizem: “Mas a meditação budista é diferente. Essa é apenas uma espiritualidade que não envolve nenhuma afirmação epistemológica errônea, é pura experiência pessoal.”... Esse é, para mim, o inimigo, hoje. É por isso que devemos salvar não o cristianismo como religião, mas como fórum de engajamento social que foi formulado pela primeira vez nessa comunidade de crentes. Nessa... coletividade lutadora. Há algo singular que vale ser salvo no legado cristão. Como você disse, esse pobre ecumenismo.

Alexandre Machado: Professor, ok.

Slavoj Zizek: Quem é o professor? Eu ou ele [dirige-se a Emir Sader]?

[Risos]

Emir Sader: Você tem uma obra muito diversa, com uma abordagem com disciplinas que você integra...

Slavoj Zizek: Isso é o mesmo que dizer que escrevo demais. Aceito isso.

[Risos]

Emir Sader: Este livro que sai agora no Brasil, aparece como um livro finalmente conceitual, metodológico. Parece que você vai revelar finalmente a sua metodologia, qual é a sua novidade radical, do seu método, que, para nós marxistas, é sempre um ter privilegiado. Queira que você resumisse, se conseguir, para os espectadores, o que é paralaxe. Por que introduzir um novo conceito? Você até chega a especificar no final do livro que ele vale até para economia política. “A principal paralaxe da economia política, a lacuna entre a realidade da vida social material cotidiana e o real da dança especulativa do capital”, quer dizer, não só um conceito abstrato serviria até para dar conta de fenômenos como esse. Segundo: estou de acordo com todas as suas análises a respeito da obra do Negri, Michael Hardt, Holloway [(1947-), advogado, filósofo e economista irlandês de linha marxista. Seus principais trabalhos são associados ao movimento zapatista]. Se você fosse...

Slavoj Zizek: [Interrompendo] Mas...

Emir Sader: Se você fosse ao próximo Fórum Social Mundial [evento internacional realizado desde 2001, organizado por movimentos sociais de diversos países, visando uma transformação social global] - vai ser dar em Belém, no fim de janeiro - qual a principal mensagem de proposta que você levaria a partir dessas posições e do mundo atual? Duas questões.

Alexandre Machado: Professor, eu pedira só para o senhor aguardar, porque nós precisamos fazer mais um intervalo e o senhor dará as respostas ao Emir logo após essa interrupção. Ok? Vamos fazer um intervalo, lembrando que a memória do Roda Viva está disponível no nosso site www.tvcultura.com.br/rodavida, onde você pode pesquisar o conteúdo do nosso arquivo e também mandar os seus e-mails com críticas e sugestões. A gente volta num instante.

[intervalo]

Alexandre Machado: Você acompanha hoje no Roda Viva a entrevista com o filósofo Slavoj Zizek. Ele é professor da Universidade de Liubliana, na Eslovênia, diretor internacional do Instituto de Humanidades da Universidade de Londres e é um nome de destaque no debate da política e da cultura contemporânea. O Emir havia feito duas perguntas [antes do intervalo]. Eu gostaria que você sintetizasse de novo para que o professor pudesse responder, Emir.

Emir Sader: A primeira é só um resumo da novidade de conceito de "paralaxe". [A] Segunda é uma mensagem que você levaria ao Fórum Social Mundial a partir do que é o mundo e a partir das análises que você deu nesse livro.

Slavoj Zizek: Gostei muito da pergunta. O único problema é que para respondê-la adequadamente precisaríamos de duas ou três horas. É uma resposta para uma pergunta muito precisa. Como reanimar, como atualizar o que outrora chamávamos de dialética materialista? A dialética deveria estar livre de todo esse evolucionismo, progressismo ingênuo. E por isso privilegio o termo “paralaxe”. Ou seja, essa aparente mudança no objeto, que reflete uma mudança em sua posição. Mas eu diria que, embora os dois sejam mediados, há uma paralaxe, ou seja, uma lacuna radical, no sentido de uma divisão de perspectiva, em que não há uma unidade mais elevada. Os dois estão inscritos na própria realidade. Há uma lacuna e uma inconsistência na própria realidade. Como as lutas de classe na sociedade, que não são apenas um antagonismo dentro da sociedade, mas algo que divide a sociedade, vindo de seu interior. Um exemplo simples: esquerda e direita, se é que isso ainda existe, politicamente. Não se pode ter uma visão objetiva da sociedade e dizer isso é esquerda, politicamente, e isso é direita. Jacques Lacan diria que não existe metalinguagem. Toda definição de esquerda ou direita vem da esquerda ou da direita. Portanto, não há uma unidade global dentro da qual há os opostos. Não há como escapar dessa divisão radical. Mas meu grande problema filosófico é, novamente, a dialética de Hegel. Se você me perguntasse isso com uma arma apontada para minha cabeça e dissesse: “Uma frase – ou eu atiro. Qual sua posição?”. Sou hegeliano. Meu amor absoluto é Hegel. E todas as outras coisas estão subordinadas a ele. Leio Marx... e o que me interessa é como não é possível entender Marx sem Hegel. E por isso fiquei muito feliz ao ouvir de meus amigos que vocês têm no Brasil uma grande escola de marxistas hegelianos que estudam em detalhes que não se pode entender o capital sem referências à lógica de Hegel. O projeto é bastante radical em termos filosóficos. Acho que contra todo esse pós-moderno, essa pluralidade e multitude, Hegel continua sendo nosso horizonte possível em termos de pensamento. Ainda não compreendemos o que Hegel tem a dizer. A parte do livro – e isso pode interessar alguns leitores – de que eu gosto mais é a parte que ninguém lê. É a segunda parte, sobre cognitivismo. Tento confrontar a psicanálise com o cognitivismo. E tento mostrar como, mesmo ali, até mesmo os mais brilhantes cognitivistas redescobrem a lógica hegeliana da pressuposição, desse loop dialético [faz gesto circular], desse círculo retroativo. Quanto a qual teria sido minha mensagem, ela teria sido a de um otimismo catastrófico consistente. Estar ciente de que uma crise, como esta crise financeira hoje, que não sabemos se será profunda... É uma oportunidade para a esquerda, mas também para direita. É sempre um momento perigoso. A crise é um momento aberto. A crise é também sempre do discurso. Uma luta por hegemonia. O exemplo mais claro seria a Alemanha na época de Hitler. Como foi que Hitler venceu? Não apenas politicamente. Primeiro ele venceu a luta ideológica. A situação na Alemanha era crítica. Hitler ofereceu uma explicação: “Isso é resultado da humilhação da Alemanha”... O perigo hoje é quem vencerá essa luta, referente a essa crise. Posso imaginar um certo tipo de autoritarismo de direita dizendo, de uma forma um tanto anti-semita, de falso capitalismo, que esse é o resultado da especulação judaica de Wall Street, que precisamos de um capitalismo mais organizado. Talvez até revivam algum tipo de militarismo. Com John McCain – e essa é sempre a solução imperialista – evocando a guerra, o estado de emergência para sair... O que estou dizendo é que a crise é um momento perigoso. Ela lhe dá uma chance, mas você também pode perder de forma muito mais radical. Minha mensagem teria sido... – e, novamente, como filósofo, você nunca consegue uma resposta concreta -, mas, não percam a paciência. Arthur Rimbaud [Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891) influente poeta francês, considerado um mestre do simbolismo e precursor do surrealismo.], o grande poeta, usa uma frase maravilhosa: "Science avec patience.", “Ciência com paciência” [em francês]. Isso é o que precisamos hoje. Infelizmente, discordo radicalmente. Fora isso, concordo com você. Noam Chomsky [(1928-) renomado lingüista, filósofo e ativista político estadunidense, descreve-se como socialista libertário] disse recentemente a um amigo meu que hoje as coisas estão claras, não precisamos de teoria, temos apenas de descrever em profundidade o que está havendo. Não. Hoje, mais do que nunca, precisamos de teoria.

Alexandre Machado: Maria Rita.

Slavoj Zizek: O círculo volta a você.

Maria Rita Khel: Acho que será breve. Você se refere várias vezes em sua obra, em suas conferências, sobre a moral do gozo que, na contemporaneidade, talvez seja a forma mais eficiente de agenciamento, de poder etc. Mas você também diz que ela é tirânica e que ela produz uma espécie de culpa generalizada por não se conseguir gozar o suficiente em relação ao que é ofertado. Eu lhe perguntaria se você vê então alguma relação de determinação entre essa moral do gozo e o crescimento quase epidêmico das depressões no século XXI.

Slavoj Zizek: Uma pergunta muito boa e concordo com você, clinicamente, até onde eu entendo a respeito de clínica. De uma forma simples – e improvisei sobre isso também em minha palestra -, como a ideologia funciona hoje? Não creio que a forma predominante de ideologia hoje se reporte a você com uma grande causa ideológica. “Sacrifique-se pelo seu país, pela sua liberdade.”. Trata-se de uma espécie de hedonismo espiritual vago. Hoje se espera que você seja verdadeiramente você, que desfrute de uma vida agradável. E o paradoxo é que o prazer em si se transforma em um dever. Não sei qual é sua experiência aqui. Mas muito de meus amigos psicanalistas me dizem que hoje um paciente típico sente uma profunda ansiedade, não porque ele tenha prazeres ou desejos proibidos, que violam as proibições da sociedade. E então você vai ao analista, o analista permite que você se livre das proibições opressivas – e você pode desfrutá-las. Não. Eles se sentem culpados por não conseguirem ter prazer. Eles procuram o analista como alguém que lhes permitirá isso. Aqui vemos como Lacan estava certo ao dizer que o significado máximo do superego é ter prazer. A maior das injunções do superego é ter prazer. Prazer como dever. Por isso, acho que a tarefa do psicanalista hoje não é lhe ensinar como ter prazer, mas algo muito preciso. Permitir que você se livre da ordem do superego de ter prazer. A mensagem deveria ser muito precisa. Não é que você não deva ter prazer. Mas lhe é permitido não ter prazer. Prazer não é uma obrigação. Hoje, aparentemente, todas as proibições acabaram. Vejamos um exemplo de Freud ao falar de “delegar”. Um paciente lhe diz... quando Freud lhe pergunta sobre uma mulher em seus sonhos, o paciente diz: “Não sei quem é essa mulher em meus sonhos, mas não tenho certeza de que não é minha mãe.”. Claro que para Freud isso é a prova de que a mulher é a mãe. Mas muitos amigos me disseram que os pacientes de hoje diriam: “Não sei quem é essa mulher, mas tenho certeza de que deve ter alguma coisa a ver com a minha mãe.”. Ou seja, ele aceitam isso. A proibição não está aqui. Mas alguma coisa está errada, porque nesse espaço, sem proibições, o resultado não é podermos finalmente ter prazer, mas, como você disse, não só a culpa, mas a depressão melancólica é hoje maior do que nunca. Por isso, acho que o paradoxo do superego é crucial hoje. E está relacionado ao capitalismo de hoje – em que a injunção do superego é totalmente crucial. Motivo pelo qual, como desenvolvi em um de meus livros anteriores, a Coca-Cola é o objeto máximo de desejo. E por quê? Porque é uma bebida estranha que, basicamente, não mata sua sede, mas o deixa com mais sede ainda. Quanto mais você bebe, mais você tem de beber. É uma bela reprodução do paradoxo fundamental do superego. Freud já sabia que, quanto mais você tenta obedecer o comando do superego, mais culpado você se sente. E esse também é um exemplo maravilhoso de que aqueles que alegam: “É o fim da psicanálise, vivemos em uma sociedade permissiva, não precisamos mais disso.”, estão errados. Somente hoje estamos vivenciando o paradoxo central que incomodava Freud. O paradoxo de Freud não é: “Sou impotente devido à proibição paterna.”. Não. O paradoxo de Freud é que, quando você tem um pai que proíbe que você faça sexo, isso não é um problema. Você se rebela contra o pai, você se sai ainda melhor. O problema é quando seu pai lhe pergunta: “Que homem você é? Já seduziu algumas garotas?”. Essa é a maneira mais segura de deixá-lo impotente. Portanto, mais do que nunca, precisamos da psicanálise hoje. Surpresa! Eu parei.

[Risos]

Alexandre Machado: Safatle.

Vladimir Safatle: Ok. Zizek, na verdade eu gostaria de fazer uma pergunta mais vinculada à sua concepção de ação política, porque você é um dos poucos teóricos da esquerda atual que admitem a relação entre violência e política. Mesmo que no seu caso não se trate necessariamente de uma apologia da violência física ou alguma coisa dessa natureza, mas o caráter necessariamente violento de toda ação política. Tanto é assim que você escreveu uma grande introdução à coletânea de textos, por exemplo, do Robespierre [um dos personagens mais radicais da Revolução Francesa, tido como o "incorruptível", que condenou à morte na guilhotina milhares de opositores enquanto foi chefe do Comitê de Salvação Pública, em 1793-1794, no que ficou conhecido como "Regime do Terror"], que inclusive saiu aqui no Brasil. Eu tenho, na verdade, duas perguntas, porque, lendo os seus textos sobre isso, eu tive um pouco a impressão de que há uma certa sobreposição entre a violência estatal, mesmo que seja de um estado revolucionário, e a violência revolucionária, quer dizer, a minha primeira pergunta é: você vê esses dois tipos de violência como a mesma? Quer dizer, a violência do povo contra o Estado e do Estado, mesmo revolucionário, contra o povo? E eu coloco essa pergunta porque... Aí eu gostaria de fazer uma segunda, que diz respeito, por exemplo, a algumas coisas que você desenvolveu no seu livro sobre Lênin. Num determinado momento você afirma que "Bem, não se trata de ser stalinista, mas o momento Stalin foi um momento que tem uma certa necessidade.". E a minha impressão é um pouco [de] que você utiliza um esquema hegeliano que consiste em dizer: “Bem, é necessário um poder que quebre o interesse particular dos indivíduos e esse poder que quebra esses interesses particulares impõe então uma possibilidade de uma espécie de universal.”, quer dizer, essa violência, ela foi necessária, não é mais necessária, mas você chega mesmo a falar, por exemplo, desse momento onde o Brecht [(1898-1956) nascido na Bavária (Alemanha) e formado em medicina, Bertold Brecht envolveu-se com o teatro moderno em Berlim, depois da Primeira Guerra Mundial. Era adepto do socialismo, apesar de não concordar com Stalin] faz um poema dizendo que ele se sentiu realmente comunista no momento em que ele viu os tanques entrando em Berlim Oriental, porque era a idéia, em última instância, de quebrar os interesses individuais dos particulares. Mas, para que esse esquema funcione, é necessário que esse poder tenha um interesse universal muito claro. Você ainda vê isso, por exemplo, nesses exemplos que você levantou, no caso do Stalin e companhia?

Slavoj Zizek: Esse é um tópico muito complexo. Sim, de certa forma, é preciso desfetichizar a violência. Esse horror à violência hoje é parte dessa ideologia liberal da tolerância. Você começa a criticar a violência e no final você advoga a tortura. Acho que Guantánamo [baía cubana onde se localiza a base militar norte-americana que, após a Guerra do Iraque (2003), recebeu prisioneiros de guerra e suspeitos de terrorismo. No ano seguinte, militares americanos flagrados em atos de maus tratos e abusos aos prisioneiros de guerra. Cuba já tentou reaver o local, alugado por pouco mais de 4 mil dólares anuais, mas os EUA se negam a desocupá-lo] e tudo o mais são uma consequência necessária desse aparente liberalismo antiviolência. Minha visão básica sobre a violência – e digo isso o tempo todo – é que em geral identificamos a violência como algo que... Como medimos a violência? A violência é algo que abala o ritmo natural das coisas. Quando alguma coisa interrompe o fluxo normal das coisas, oh, meu Deus, é violência. Outro exemplo de paralaxe: acho que devemos mudar a perspectiva e ver a violência invisível que precisa estar presente o tempo todo, para que as coisas aconteçam como normais. Esse é o tipo de violência que me interessa. Pode ser econômica, por parte da polícia... O aspecto da violência política que me interessa não é tanto a violência física, matar as pessoas etc. Se você realmente deseja mudar o funcionamento básico da ordem existente, isso é, por definição, percebido como violência. Aqui tento reabilitar – mas, sem dúvida, de forma totalmente não teológica – o que Walter Benjamin chama de violência divina. Não se trata de Al-Qaeda. Não é a violência como instrumento de Deus. Mas algo totalmente diferente. Walter Benjamin e muitos outros chamaram a atenção para o necessário excesso da violência do Estado. No sentido de que, mesmo na sociedade mais democrática, em que o poder totalmente legitimado, para que o poder do Estado funcione deve haver algum tipo de ameaça ao superego. No sentido de: “Vivemos em uma democracia, mas podemos fazer o que bem entendemos.”. Não existe poder sem esse excesso. E, para mim, o que Benjamin chama de violência divina é um tipo de contra-violência a esse excesso. E, nesse sentido, vou ser muito claro. Sou a favor da violência, mas, para mim, Gandhi foi mais violento do que Hitler. A violência de Hitler, matando milhões, foi – usando o termo de Nietzsche – uma violência reativa. Ele tinha medo de que alguma coisa, de fato, mudasse. O fascismo foi uma tentativa desesperada de salvar o capitalismo. O que Gandhi fez – embora ele fosse contra a violência - foi greve, boicote, interrupção de todo o funcionamento da economia da colônia e do aparato do Estado na Índia. Sou a favor dessa violência. Interessa-me também outro aspecto da violência. E por isso gosto de um filme que horroriza meus amigos liberais - [filme] com Brad Pitt [William Bradley Pitt (1963-), ator norte-americano] e Ed Norton [Edward Harrison Norton (1969-), ator norte-americano] - e espero que tenham visto: Clube da luta [filme norte-americano de 1999, dirigido por David Fincher, baseado em romance homônimo de Chuck Palahniuk (publicado em 1996) ]. Se vocês não sabem se um amigo de vocês é liberal ou um verdadeiro esquerdista pergunte-lhe sobre o filme. Se disser que é um filme pós-fascismo, ele é um liberal. Afaste-se dele. Vocês se lembram daquela cena maravilhosa, quando o sujeito fecha o pulso e começa a bater nele próprio? A liberação machuca. A liberação tem um preço. Esse é o meu primeiro ponto. Perdão, qual era a segunda pergunta?

Alexandre Machado: Zizek, a segunda pergunta vai ficar para depois. Eu preciso fazer mais um intervalo. Lamento, porque eu também tenho um alterego [aponta para o ponto no ouvido, referindo-se a ter de obedecer às regras do programa]. Vamos fazer mais um intervalo e voltamos com o último bloco do nosso Roda Viva de hoje. Até já.

[intervalo]

Alexandre Machado: Voltamos com o último bloco da entrevista com o filósofo Slavoj Zizek. Eu queria contar para o telespectador que nós estamos agora no último bloco, nós estávamos no intervalo negociando com o professor para ele responder um pouquinho mais rápido, para a gente tentar trazer algumas questões a mais. A primeira prioridade é a segunda questão do Safatle, que está com o professor.

Slavoj Zizek: Não tenho simpatia alguma pelo stalinismo. A dificuldade para mim, ao pensar sobre o stalinismo, é: como evitar duas armadilhas? Uma dela é a de Trotsky. A idéia de que “Ah, se Lênin tivesse vivido um pouco mais e fizesse um pacto com Trotsky, tudo estaria bem.”. O stalinismo como mera contingência. E então, os de direita, ou liberais que dizem: “Tudo em Marx, em Robespierre, em Platão [filósofo que viveu na Grécia entre os anos 428 e 347 antes de Cristo e se ocupou de vários temas, entre os quais ética, política, metafísica e teoria do conhecimento] era necessário.”. O difícil é ler a tragédia da Revolução de Outubro [Revolução Bolchevique]. Como foi que começou com um potencial emancipatório gigantesco e acabou com a catástrofe stalinista? A segunda coisa que gosto de enfatizar é como a ordem stalinista é totalmente diferente do fascismo. Eu resisto em colocá-los juntos em uma mesma categoria de totalitarismo. Apenas uma história, de que talvez vocês gostem, e então eu paro. Vocês sabiam que, mesmo no pior dos Gulag [campo de concentração e de trabalho forçado na antiga União Soviética, para onde eram enviados os opositores e dissidentes do regime liderado pelo ditador Josef Stalin], todos os anos, no aniversário de Stalin, os prisioneiros eram reunidos e tinham de assinar um telegrama a Stalin desejando-lhe felicidades pelo aniversário? Não se consegue imaginar isso na Alemanha nazista. A reunião de todos os judeus em Auschwitz [maior complexo dos campos de concentração estabelecidos pelo regime nazista] para assinar um telegrama para Hitler, o que significa que toda a lógica... Outro exemplo: “aqueles julgamentos monstruosos”. Nunca houve um julgamento contra os judeus, na Alemanha. Toda a lógica é radicalmente diferente. Ainda não somos capazes de pensar as diferenças. Não somos capazes de perceber qual foi o verdadeiro horror, a verdadeira tragédia do stalinismo. Mesmo os grandes marxistas, como os da Escola de Frankfurt, são obcecados pelo fascismo, mas ignoram quase completamente o stalinismo. Há um pequeno livro, de Marcuse [Herbert Marcuse, influente sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano], mas não é, de fato, uma teoria. Acho que os direitistas não conseguirão fazer isso. Cabe a nós, da esquerda, pensar no stalinismo. Somos os únicos que podemos fazer isso. Viu? Fui relativamente breve.

Alexandre Machado: Zizek. Você fala sobre questões que são de nosso interesse, mas muitas delas são distantes do Brasil e eu sei que você já esteve outras vezes no Brasil, eu queria que você falasse um pouco do que representa pra você esse país.

Slavoj Zizek: Vou lhe dar uma resposta bastante estranha. Não é a primeira associação que você esperaria de mim. Eu vou dizer uma coisa terrível, e talvez quando eu sair daqui as pessoas vão bater em mim, mas eu odeio o carnaval. Sou stalinista. Odeio a idéia do carnaval. As pessoas dançando livremente. Não, deve haver ordem, disciplina. As pessoas devem marchar em ordem! Minha idéia seria um carnaval organizado, em que você dá ordens: “Ande assim, assado.”. Mas a melhor associação que faço com o Brasil é Canudos. Lembram-se daquela comunidade maluca? O que me agrada é que, em geral, esses tipos de comunidades utópicas se autodestroem. Mas isso não aconteceu. O Estado interveio três vezes, brutalmente, matando todos. Esse é um belo exemplo. Canudos é minha idéia disso. A segunda coisa de que gosto aqui é que, embora vocês tenham favelas, o que eu gosto é que, pelo menos, elas não estão escondidas. Não sei como é aqui. Mas, quando estive em Salvador e no Rio, você está em uma rua de classe média alta e a dois quarteirões dali há uma favela. Ao menos vocês não as escondem. Em outras grandes cidades, como Buenos Aires, o centro é todo limpo e os pobres estão fora dali. Aqui é diferente. Mas isso pode também ser usado ideologicamente. Vocês podem dizer: “Estamos todos juntos, ricos e pobres, em um grande carnaval.”. Sei a respeito do racismo que há aqui. Todos os liberais aqui gostam dos negros. Eles falam da vitalidade negra, da dança, poesia, mas acho que vocês não têm muitos negros em altos cargos, executivos. Vocês têm 50% de negros? Essa é uma coisa. A outra coisa de que eu gosto – e não é apenas uma cultura comercial - também pode ser usada de forma progressista: são suas telenovelas. Quando eu era jovem, em meu país, elas eram extremamente populares. Vocês não tinham uma chamada... Escrava... Isaura [novela exibida pela Rede Globo em 1976/77, adaptação do romance de Bernardo Guimarães, um dos maiores sucessos do gênero na televisão]. Ela era mais popular do que todas as séries americanas no meu país. Quando a atriz [Lucélia Santos (1957-)] visitou Liubliana disseram que haveria umas cinqüenta pessoas para pedir autógrafos. E vinte, trinta mil pessoas ocuparam o centro da cidade. E não é apenas questão de ideologia, mas também pode ser usado... Alguém me disse – não sei se foi na Colômbia ou na Venezuela – que isso foi usado como forma de expressão política. É um fenômeno global. Uma prova viva de que o imaginário americano não nos domina completamente. Esse é o lado bom da globalização: que outras culturas tenham a oportunidade de aparecer globalmente. As novelas da América Latina são um fenômeno global. E por que não? Gosto delas e as assisto com meu filho. E há também os filmes chineses, como O clã das adagas voadoras etc. São espetáculos melhores do que os americanos. E eu brincava com meus amigos, no Colorado, dizendo que, da maneira como as coisas estão agora, a China está fazendo melhores filmes comerciais do que os Estados Unidos. Talvez daqui a vinte anos nós intelectuais vamos assinar uma petição à prefeitura local: “chega de filmes comerciais chineses, vamos organizar cinema de arte para bons filmes de arte americanos.". Esse é o lado bom da globalização e é o que eu vejo aqui, sem idealizar o Brasil. Vocês não reclamam dessa maneira vulgar antiamericana: “Oh, globalização, americanos...”. Com ela podemos aprender o jogo e vencer o adversário. A globalização é também um oportunidade para os outros de transformar os Estados Unidos em uma grande nação, mas uma entre outras. Vocês nos dão esperança de que estamos a caminho de uma comunidade mais multicentrada, um mundo multicentrado, que terá seus próprios problemas, mas é importante que isso seja feito. Sem ser hipócrita, isso pode ser até bom para os Estados Unidos. O que Bush [George Walker Bush, sucessor de Bill Clinton na presidência dos Estados Unidos. Político do Partido Republicano e filho do ex-presidente norte-americano George H.W.Bush, viu sua popularidade cair em 2003, depois da ocupação americana do Iraque e de problemas econômicos] tentou fazer nos últimos oito anos, promovendo os Estados Unidos como a polícia do mundo... Se você é uma cínico antiamericano, você deveria ter um orgasmo permanente – para falarmos um pouco de sexualidade – [risos] observando Bush. Até mesmo no interesse a longo prazo da classe dominante americana Bush foi uma catástrofe. Então todos estariam melhores e teria havido mais países como vocês [o Brasil]. E não idealizo vocês. Não compro essa história de um carnaval todo feliz. Nem mesmo gosto da palavra carnaval. Para mim o Holocausto [após a Segunda Guerra Mundial, o termo, que originalmente remetia a sacrifícios religiosos, passou a ser utilizado para se referir à chacina de milhões de pessoas, principalmente judeus, nos campos de concentração e extermínio, promovida por Adolf Hitler], ou o Gulag, foi também um grande carnaval. O stalinismo foi um carnaval. O que é carnaval? A ordem é invertida. Hoje você é rei, amanha é um pedinte. Como no stalinismo. Hoje você está no comitê central, amanhã é um espião inglês. Não gosto de carnaval. Gosto de ordem!

Alexandre Machado: Ok. O Roda Viva está chegando ao seu fim e nós queremos agradecer muito à presença do filósofo Slavoj Zizek e à bancada de entrevistadores. Agradecemos também a sua atenção e colaboração, lembrando que as perguntas de telespectadores que não foram apresentadas durante o programa serão encaminhadas ao nosso convidado. O Roda Viva volta na próxima segunda-feira às 10h10 da noite. Uma ótima semana a todos e boa noite.

Fonte: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia_busca/722/chomsky/entrevistados/slavoj_zizek_2009.htm

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