20 dezembro, 2006

Os totalitarismos iluministas


O Iluminismo e os totalitarismos


Publicado em 24/08/97 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.


Em maio de 1944, durante o exílio californiano, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno concluíram, sob o título ''Dialética do iluminismo'' (''Dialektik der Aufklãrung''), um manuscrito redigido em comum, frase a frase, que só seria publicado em 1947, em Amsterdã. Sobre esse texto pode-se dizer, sem hesitar, que introduziu uma mudança de paradigma cheia de consequências para a teoria social.
Pois, até então, o pensamento do iluminismo, da forma como se desenvolvera no século 18, era tomado como o legado positivo comum da modernidade. Liberais e marxistas reportavam-se igualmente às conquistas desse período, uma vez que o marxismo resultara do liberalismo e, este, da filosofia do iluminismo anglo-escocês, francês e alemão.


As ideologias do progresso concorrentes no século 19 e início do século 20 batiam-se em torno da interpretação e evolução do pensamento do iluminismo; o marxismo aparecia, por assim dizer (e também compreendia a si próprio), como a sua ''segunda transição'', que, após a crítica do despotismo absolutista, da religião e da superstição, queria executar a ''missão histórica'' do iluminismo por meio da crítica das relações sociais e econômicas.


Uma crítica contrária aos fundamentos do iluminismo só parecia possível nos horizontes do pensamento reacionário, misantropo e irracional, que preparara e munira ideologicamente o regime fascista e a sua barbárie moderna. Um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial, quando ainda vigorava a coalizão anti-Hitler entre a União Soviética e as potências ocidentais, seria comum representar intelectualmente, num maniqueísmo filosófico, as frentes de guerra , identificando a coalizão antifascista ao lado bom, na tradição do iluminismo, e, o fascismo ao lado mau, na tradição romântica e reacionária do contra-iluminismo.
Essa interpretação, no âmbito de um liberalismo banal e um não menos trivial marxismo democrático que vegetaria até os anos 80 (e de bom grado teria insistido para sempre na constelação que há muito se tornara histórica da coalizão anti-Hitler), foi, todavia, fundamentalmente recusada pela ''Dialética do iluminismo''.


Mas Horkheimer e Adorno tampouco forneciam nessa obra teórica uma filosofia para o conflito entre Ocidente e Oriente, que dominaria metade do século seguinte - filosofia esta que se interessava simplesmente pelos pressupostos ideológicos do mercado e se antecipava ao espírito do tempo como ''trendsetter''.


A mera excomunhão do marxismo dos limites da ''boa'' modernidade e a glorificação da democracia ocidental supostamente ''pluralista'' como a única herdeira legítima do iluminismo, em oposição às ditaduras fascistas e stalinistas, qualificadas igualmente como ''totalitárias'', remonta a uma literatura acadêmica barata, que, com exagerada condescendência, servia ideologicamente ao próprio sistema de dominação durante o período da ''Guerra Fria''.


A ''Dialética do iluminismo'', ao contrário, buscava raízes muito mais profundas: pela primeira vez, de uma perspectiva crítica e emancipatória, a tradição do iluminismo como tal foi posta em juízo.


O fascismo, diz a revelação chocante de Horkheimer e Adorno, não foi um monstro alheio, que irrompeu de forma atávica do subterrâneo pré-civilizatório da história, mas um legítimo descendente do próprio iluminismo. ''O iluminismo é totalitário'' - essa frase cortante delineia o programa de uma crítica nova e diferente crítica social, que até hoje aguarda o seu cumprimento. O conceito de ''totalitarismo'' caracterizava, desse prisma, não somente o fascismo e tampouco o fascismo e o stalinismo tomados em conjunto, mas, em última instância, a própria democracia ocidental. De certo modo, era a perspectiva de um futuro antecipado, a partir do qual as ideologias modernas mutuamente antagônicas, os movimentos políticos e os sistemas sociais eram, de forma inopinada, percebidos num sistema de coordenadas comum, para o qual elas próprias eram cegas, mas cujo reconhecimento crítico relativizava, de um ponto de vista superior, seus antagonismos. Por isso, ambos os autores desse livro admirável não se deixavam embair pela situação histórica concreta do ano de 1944. Era indispensável, na prática, derrubar o fascismo, que corporificava as possibilidades e consequências mais fatídicas do iluminismo e da modernização. Mas isto não significava subordinar a Teoria Crítica a tal objetivo imediato. O conhecimento teórico, para além da política antifascista do dia-a-dia e das necessidades de guerra, não podia calar e reprimir que o próprio fascismo era farinha do mesmo saco do iluminismo e que a lógica da desumanização espreitava os próprios pilares da democracia ocidental.


Mas no que consistia esse momento totalitário comum da modernidade iluminada, que o fascismo representava numa forma extremamente irracional e equívoca, o stalinismo numa forma historicamente extemporânea (tardia) e a democracia ocidental numa forma , em vários aspectos, madura (pelo menos nos Estados Unidos), já quase pós-moderna? Horkheimer e Adorno tiveram sérias dificuldades para formular, em 1944, o problema que farejavam. O salto por sobre a própria época os tinha conduzido aos limites do pensamento moderno em geral, ou seja, ao terreno para o qual ainda não havia nome nem conceito. A fim de poder designar o totalitarismo da modernidade, eles lançaram mão do conceito de ''dominação da natureza'', que se transforma, em sociedade, na ''dominação sobre os homens''.


Na medida em que se rebaixa a natureza a ''uma mera objetividade'', e o objeto isolado a um mero ''exemplar'' de uma espécie (e, portanto, a uma abstração), o sujeito onipotente, por sua vez, torna-se ''mero possuir, mera identidade abstrata'', que só enfrenta o mundo, a fazer cálculos, com a pretensão de submetê-lo e dominá-lo.
A fim de possibilitar o distanciamento necessário em face da natureza, tem de surgir na sociedade humana uma classe dominante, que intercala entre si e a natureza ''os trabalhadores'' enquanto dominados sociais: ''A distância entre sujeito e objeto, pressuposto da abstração, radica na distância com relação à matéria, que o senhor ganha por meio dos dominados''.


A dominação da natureza por intermédio dos homens-senhores pressupõe que o homem degrade o próprio homem a mero objeto da natureza: ''O despertar do sujeito é comprado com o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações''. Ora, isso, sem dúvida, descreve uma correlação negativa bem anterior à sociedade burguesa moderna.


Disso têm plena consciência Horkheimer e Adorno:
''De fato, o racionalismo linear, a liberalidade e burguesismo são muito mais antigos do que supõe a noção histórica, que data o conceito de burguês somente a partir do fim do feudalismo da Idade Média''.


Os mais antigos esboços de desejo (ainda impotente) de dominação sobre a natureza remontam à pré-história - no próprio ''pré-animismo'' já se acha ''a separação entre sujeito e objeto''. Mas se o homem pré-histórico ainda se enchia de um implacável medo diante da natureza predominante , e buscava afastar sua impotência com assimilações mágicas de objetos naturais (mimese), o mito, por sua vez, dá início à objetivação: ''O mito já é iluminismo'', e ''iluminismo é a angústia mítica tornada radical''.
Essa angústia deve ser extinta no mito pelo fato de se objetivar a natureza e, na medida do possível, ''não existir mais nada desconhecido''. Nesse aspecto, as figuras mitológicas aparecem como os arquétipos do sujeito burguês, abstrato e objetivante.


Horkheimer e Adorno tentam mostrá-lo no exemplo do mito de Ulisses - e, isso, lastreados inconfundivelmente na teoria da cultura de Sigmund Freud. O herói homérico das aventuras tem de reprimir os seus próprios impulsos, a fim de se tornar o sujeito da dominação. A sedução dos impulsos naturais, representados mitologicamente pelo canto envolvente das sereias, é emudecido para os servos pelo fato de lhes tamparem os ouvidos com cera; Ulisses, como dominante, permite-se, no entanto, ouvir o canto, previamente atado com cordas ao mastro da nau, para que não sucumba ao chamariz. Tal arquétipo mostra como a própria subjetividade, em última instância, tem de se tornar objeto, a fim de poder objetivar a natureza e os outros homens por meio da dominação. Já o mito, portanto, ''pôs em cena o processo infinito do iluminismo''. Nesse processo, são progressivamente destruídas, junto com os deuses, as qualidades do mundo, pois o ''programa de desencantamento do mundo'', que repousa na dominação, decompõe, com o seu ''pensamento ordenador'', tudo o que é próprio e o que, nos homens e nas coisas, não se resolve na investida objetivante: ''O que não se quer adaptar à medida da calculabilidade e da utilidade é tomado como suspeito pelo iluminismo''. Ele é por princípio totalitário, na medida que submete a natureza e a sociedade despidas de qualidade ao cálculo da mera quantificação, à matemática da dominação: ''A lógica formal foi a grande escola da uniformização. Ela forneceu aos iluminados o esquema da calculabilidade do mundo (...), o número tornou-se o cânon do iluminismo''.


A modernidade iluminada, como herdeira da história ocidental, é caracterizada segundo Horkheimer e Adorno, por uma contradição insanável. De um lado, ela prometeu liberdade por intermédio da desmitologização, ou seja, a superação da própria dominação, que seria substituída, em nome dos direitos humanos universais, pela razão discursiva do mercado. De outro, todavia, ela não só conservou o programa da dominação objetivante da natureza como também o agravou. Por meio do mercado, justamente, a dominação pessoal foi substituída por uma ''dominação da reificação'', ou seja, não se superou a ''injustiça social'', que foi apenas objetivada pela mediação universal da concorrência a um grau de abstração mais elevado do que antes. Com a equivalência abstrata da troca mercantil, que o capitalismo totalizou e dinamizou, consumou-se a redução do mundo a grandezas abstratas.


Desse modo, o iluminismo moderno foi condenado à autodestruição. Com efeito, ao ampliar a desmitologização com base na dominação reificada e despersonalizada, ele obrigou-se a destruir o seu próprio conceito teórico - o conceito universal em geral -como pretenso conceito mitológico: ''Com suas próprias idéias de direito humano não se passa algo diverso do que com os antigos universais''. Porém, quando a metafísica é consumida até a última gota, ''o pensamento se coisifica num processo automático, de curso independente, que imita a máquina'' e perde, assim, a capacidade de reflexão crítica. O que resta é uma ciência rebaixada a ''mero expediente do aparato econômico'': o positivismo, como ''mito daquilo que é o caso''.


O iluminismo, assim, transforma-se novamente em mito - um mito tanto banal quanto nocivo a todos. A promessa de liberdade converte-se em ''total empulhação das massas''. Se o liberalismo, ligado à dominação da reificação econômica, degradou o iluminismo a um sistema de concorrência e, assim, a uma cega ''empresa de autoconservação'', o fascismo, por sua vez, deduziu a última e a mais terrível consequência: a mitologização racista e anti-semita da concorrência converteu-se na ''apreensão total do homem''. E, com ''o fim da livre-troca'', o capitalismo foi falsamente superado nos moldes autoritários e bárbaros.


Lido meio século depois de sua primeira edição, a ''Dialética do iluminismo'' provoca uma sensação contraditória. A sua idéia básica de que o próprio iluminismo transforma-se em barbárie é mais atual do que nunca. O totalitarismo, que se manifestara em primeiro plano nas ditaduras fascistas e stalinistas, mergulhou no fundamento da democracia liberal do Ocidente e mostra-se hoje em sua forma mais pura e desenvolvida: como totalitarismo do mercado global e onipresente, que faz dos homens marionetes de seu princípio econômico, executado pelas coações da concorrência total.


Só agora se torna claro quão justo e, por assim dizer, profético foi o fato de a ''Dialética do iluminismo'' ter incluído as sociedades ocidentais em sua teoria da fatalidade histórica. Se, há mais de 50 anos, a democracia liberal subjugou militarmente seu irmão inimigo, o fascismo, e, na década passada, bateu pela concorrência econômica seu outro irmão antagônico, o stalinismo, no fim do século 20, por sua vez, ela mostra, como única sobrevivente da família do iluminismo e da modernização, a carranca da barbárie. Todas as monstruosidades da história, que deviam ser banidas pelo princípio iluminado dos direitos humanos, retornam sob a máscara das ''coerções'' liberais.
Por maiores que sejam os acertos da ''Dialética do iluminismo'', hoje ela tem eficácia limitada. Horkheimer e Adorno não cruzaram a porta por eles franqueada. Sua recorrência quase supra-histórica ao problema da dominação da natureza põe em curto-circuito dois planos diversos - o condicionamento de toda história da humanidade pela dominação socialmente inconsciente, e o fetichismo especificamente econômico da modernidade. A ''Dialética do iluminismo'' ganha, com isso, algo de inevitável e supratemporal, ao passo que, simultaneamente, concede à falsa promessa da liberdade burguesa um resto de dignidade. Horkheimer e Adorno incorrem na contradição de reconhecer na troca mercantil a redução a quantidades abstratas e irracionais e, ao mesmo tempo, desejar preservar, na liberdade dessa troca, a razão discursiva da circulação de mercadorias. Eles permanecem, nesse sentido, a despeito de sua mudança de paradigma, filhos do iluminismo.


Hoje, caberia levar a termo a crítica da razão iluminista por meio da crítica da economia moderna. Mas ninguém ousa cruzar a porta aberta. Parece ser privilégio da filosofia dos anos 90 rastejar no pó diante das divindades do mercado.


Robert Kurz


Fonte: http://www.nossacasa.net/dire/texto.asp?texto=70am


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