26 dezembro, 2006

Doutrinamento Militar


O modelo de Huntington
por Stan Goff [*]


Eu perambulava numa livraria da Barnes & Noble na semana passada quando deparei com um livro escrito pelo meu velho líder de equipe do 1º Destacamento Operacional das Forças Especiais (1st Special Forces Operational Detachment - Delta Force) . O livro, por incrível que pareça, chamava-se "Inside Delta Force". O autor, meu antigo líder de equipe, é Eric Haney.


Ao folhear o livro encontrei uma fotografia da nossa equipe que fez o trabalho arriscado no helicóptero "Chalk 4" numa operação antes da hora H da Operação Urgent Fury, a invasão de Granada - uma invasão que deveria afundar-se nos anais das invasões não só pelo seu cinismo como também pelo absoluto fracasso do seu planeamento e execução. Na fotografia, fomos colocados sabe-se lá por quem num grupo, aparentemente preparando a nossa partida da ilha. A sujeira e o medo da operação ainda estavam em nós, e estávamos visivelmente fatigados e com a adrenalina gasta.


Fui até à página 300, onde Eric descreveu todo o fracasso em pormenores dramáticos. Ele mudou uns poucos nomes por qualquer razão, e o meu foi mudados para Stan Johnson. Talvez tenha pensado que ainda estou na activa, alhures.


Isto tudo fez-me sentir estranhamente nostálgico, não de dar tiros, mas de me ter tornado muito mais velho, das viagens longínquas que fiz então, quase 20 anos atrás.


Mais tarde, naquele mesmo dia, parei para um café numa livraria melhor, The Regulator, em Durham, onde quase me escapou um volume na secção de História Militar chamado "American Soldier: Stories of Special Forces from Iraq to Afghanistan", editado pela Nate Hardcastle and Clint Willis. Num impulso relutante, retirei-o da prateleira e ali na capa desta antologia estava o meu nome. O meu editor de "Sonho odioso" (Hideous Dream) havia dado permissão para incluir uma parte substancial do meu livro, e o de Eric. Ali se conta tudo desde o Vietname, escrito principalmente pelos participantes reais.


O que me chocou nesta coincidência de livros foi que a maior parte deles foi escrito por antigos alistados - sargentos como eu.


As memórias começam a formigar, e algumas velhas cicatrizes conectam-se como pontos dentro da minha cabeça.


Em 1986 comecei a ter problemas no Delta. Comecei a brigar e a afastar-me do círculo interno maçónico um ano antes, quando os "embaracei" num exercício no Panamá em que - desempenhando o papel de inimigo - derrotei o meu próprio esquadrão. Naquele mesmo ano, a unidade ficou embrulhada num escândalo de uma fraude que implicava virtualmente toda a gente, e as investigações principiaram uma orgia de dedo-durismo e traição que arruinaram a moral da tropa e desencadearam um expurgo.


No Dia de Acção de Graças de 1986 fui chamado ao gabinete do Sargento Maior Mel Wick e sumariamente libertado da função de "operador", meu certificado de segurança (security clearance) foi suspenso, e disseram-me para começar a procurar um emprego. O rumor que serviu de base para a minha libertação da tropa foi que havia, quando em El Salvador no fim de 1985, levado uma mulher que era uma antiga guerrilheira da FMLN ao quarto do embaixador Edwin Corr na sua residência palaciana em Colonia San Benito quando ele estava em viagem e partilhado prazeres carnais com ela sobre os lençóis presidenciais do embaixador. Numa palavra: Gostaria de poder reivindicar o rumor - nem que fosse pelo seu aspecto iconoclástico - mas, ai de mim, não é verdade. Mas pouco importa. Fui expurgado.


Pendente da devolução do meu certificado de segurança, eu tinha de procurar uma missão em que um Airborne Ranger Infantry Sergeant First Class pudesse trabalhar sem ter acesso a material classificado. Foi assim que aconteceu ser designado, como instrutor de Ciência Militar, no Departamento de Instrução Militar da Academia Militar de West Point, Nova York.


Em West Point, durante o primeiro semestre dos calouros em Ciência Militar, recrutas apavorados com cara de bebé entravam na sala de aula à espera de serem instruídos sobre as formas de se tornarem guerreiros.


Mas, ao invés disso, eles são sujeitos a uma versão altamente seleccionada da história militar dos EUA que rasteia o desenvolvimento do corpo de oficiais do Exército dos EUA através das lentes loucas de algo que se chama Modelo de Profissionalismo Militar de Huntington (Huntington's Model of Military Professionalism) .


Primeiramente, tendo revisto o material do meu curso a fundo para garantir que os meus cadetes poderiam sobreviver aos exames, pensei que este semestre era apenas uma outra extensão sádica do "sistema da quarta classe", aquela estúpida tradição da privação do sono, da submissão generalizada e da humilhação que os calouros de West Point devem aguentar nos seus primeiros noves meses.


Eu estava errado.


Todos os que vão ser oficiais militares dos EUA são doutrinados no Modelo de Huntington.


Samuel P. Huntington, o grande racista cultural e intelectual da Guerra Fria, desenvolveu uma teoria louca (crackpot theory) do "profissionalismo militar" e do "relacionamento civil-militar" que foi adoptada décadas atrás como a "teoria" oficial para o corpo de oficiais da Forças Armadas dos EUA.


Em West Point, esta doutrinação é quase como um Skull-and-Bones , uma lavagem cerebral semi-hipnótica, porque é infligida sobre cadetes que entram na sala de aula num estado de sonambulismo pós-traumático. Ao contrário dos rapazes de Bush, contudo, nenhum cadete é forçado a permanecer num caixão, recitando sua história sexual para os seus companheiros.


O Modelo de Huntington, que eu prometo não atacar muito aqui (por compaixão para com o leitor), descreve o oficial militar ideal como uma espécie de versão prussianizada de médicos, advogados e administradores de empresas - profissionalismo definido mecanicamente por três atributos: conhecimento técnico especializado, um "sentido corporativo", e uma vasta educação liberal.


Esta última significa uma licenciatura numa faculdade.


Huntington também faz a afirmação claramente absurda - na sua definição de relacionamento civil-militar - de que os militares podem ser apolíticos, uma asserção bizarra da parte de um homem que afirma ter sido influenciado pelo grande teórico militar prussiano Carl von Clausewitz . (Clausewitz começa a sua teoria da guerra com a premissa de que "a guerra é a política continuada por outros meios").


O Modelo de Huntington fornece uma justificação teórica para a reprodução de um sistema de classe entre os militares, um sistema e uma justificação ajustada unicamente para os militares americanos pós-2ª guerra mundial.


Examinando o seu critério de um "profissional", verifica-se imediatamente que as pessoas alistadas e experientes entre os militares preenchem dois daqueles critérios. Eles têm perspicácia técnica tal como a maior parte dos oficiais, e eles participam plenamente da cultura militar (sentido corporativo). A distinção, então, está num grau universitário formal, uma credencial descrita por Huntington como uma "vasta educação liberal".


Há algumas razões muito práticas, baseadas na pura lógica militar, para a hierarquia nas forças armadas. A mais óbvia é que a actividade definidora das forças armas inclui matar, morrer, mutilar, ser mutilado e destruir propriedade. Estes são, para dizer as coisas suavemente, comportamentos contra-intuitivos, muitas vezes cometidos tendo em vista um objectivo político que é pouco mais do que uma abstracção para os que são obrigados a cometer todos estes males. Quanto mais afastado da experiência do soldado está aquele objectivo, mais difícil é convence-lo dos seus méritos pois ele (e ocasionalmente ela) tem de ser confrontado com um inimigo crível que se comporte como ele/a espera. Assim, juntamente com uma ideologia de militarismo tudo isso estimula terrores sexuais profundamente irracionais, é preciso estabelecer um sistema de disciplina draconiana a fim de assegurar que a maioria das tropas combaterá, ao invés de fugir ou atirar nos seus oficiais, quando a merda é despejada sobre a proverbial ventoinha.


Mas Sam Huntington estava a trabalhar no seu modelo de militar profissional na década de 1950, e nessa época a disciplina para os militares já era axiomática há séculos. A "contribuição" de Huntington foi, de facto, desenvolver uma teoria adequada especificamente às necessidades da primeira força militar imperial após a 2ª Guerra, plenamente emplumada e hirta.


Por que ficou ele tão entusiasmado com a sua definição de profissionalização para as forças armadas?


Ele exprimia admiração aberta pelos prussianos, mas os costumes feudais dos mesmos (os quais, a propósito, infectam todas as grandes organizações militares do mundo hoje em dia) foram adaptados e modificados para reforçar um sentido de tradição que mantivesse uma espécie de continuidade cultural através das muitas mudanças tecnológicas, doutrinais e estruturais na condução da guerra. Estas mudanças são reflexos da sociedade em que estas organizações militares estão inseridas. Somente o etos militar é prussiano.


Este etos não deveria ser confundido com as necessidades práticas de uma vasta, moderna, mecanizada (e agora computorizada) força militar, concebida para projectar-se internacionalmente, através de um espectro de conflitos potencial que vão desde acções menores de polícia para tranquilizar uns poucos banqueiros com cara de pastelão até a algo chamado Guerra Total, em que o objectivo é a destruição de toda uma sociedade.


A pista para desvendar o mistério é que o Modelo de Huntington denomina o oficial militar de "um administrador de violência". Ênfase em administrador.


Uma organização militar permanente consistente por centenas de milhares de pessoas e por centenas de milhares de milhões de dólares de equipamentos e abastecimentos, empregando tecnologias no estado-da-arte, e espalhando-se através dos cinco continentes... tem muitas das características de... digamos... uma corporação multinacional. Esta magnitude de dimensão e complexidade implica uma complexa e altamente especializada divisão do trabalho, a qual por sua vez exige um vasto aparelho administrativo para manter tudo sincronizado.


Isto é pelo menos parte da definição de burocracia.


Burocratas não precisam de líderes, no sentido homérico do herói guerreiro. Eles precisam de administradores. Sociedades burocratizadas como a nossa reproduzem-se a si próprias, isto é, mantém as suas próprias estruturas e relações. Um importante mecanismo para esta reprodução social, nos sectores civis e militares, é o credenciamento.


Uma vez que aqueles calouros de West Point acabem de passar as dificuldades dos seu Ano de Ralé, eles passam os três anos seguintes a serem doutrinados sobre como manter controle sobre inconfiáveis, falsos, manhosos e traiçoeiros porcos alistados - tudo isto agora codificado na linguagem apropriada da extrema-direita politicamente correcta. Incluídos entre os manhosos e traiçoeiros estão aquelas pessoas alistados sobre as quais elas dependerão totalmente para o seu êxito, os NCOs.


O pequeno punhado de alistados com quem eu conversava em West Point consistiu uma espécie de excursão atrevida e experimental a fim de expor os cadetes aos "bons" NCOs. Na maior parte dos casos, penso, os perversos cadetes preferiam-nos aos oficiais, e assim aquela experiência foi logo concluída.


Isto, penso, aponta-nos para uma importante arena da luta de classe.


Após este passeio através do Delta e de West Point, preciso reorientar o leitor de volta ao livro de Eric Haney. Dentro da Delta Force há um canto de glória às operações especiais e ao militarismo, encobrindo o racismo-machismo da unidade. Mas em certos trechos Eric também levanta questões inconfortáveis acerca da política externa dos EUA, e descreve - tal como o meu próprio livro - a experiência real das pessoas por trás da desgraçada mística das Special Ops. No nosso caso, estas são experiências de pessoas alistadas que de muitas maneiras transgridem a fronteira invisível entre pessoas alistadas e os "administradores de violência" credenciados.


E está bem escrito.


Nós ambos, no nosso tempo de serviço activo, tornámo-nos pessoas com as quais os oficiais contavam, mas achavam difícil controlar.


A questão real que quero enfatizar é que Eric Haney e eu escrevemos livros para todos. E que eles foram publicados.


Nada contribui tanto para a reprodução de classe na nossa sociedade, além das relações de propriedade, como a divisão intelectual do trabalho imposta institucionalmente. Isto secciona o conhecimento em guetos académicos, e tenta congelar as pessoas da classe trabalhadora separadamente da intelligentsia. Credenciais!


O capitalismo precisa dos seus mandarins credenciados, e os mandarins muitas vezes definem até quem são os críticos "legitimados" do capitalismo. Especialização e credenciamento são as chaves para esta legitimação, e as chaves para a exclusão dos pretensos transgressores.


Aqueles de nós que não têm credenciais devem ser excluídos da intelligentsia, pois a inclusão das nossas vozes, a legitimação das nossas vozes, põe em causa a legitimidade de todo o sistema de poder.


Sinto isto pessoalmente, tanto como antigo alistado como como homem de esquerda. Como homem de esquerda, tenho por vezes me deparado com pressões poderosas para circunscrever o meu próprio papel, e limitar os meus próprios discursos públicos, à crítica da política militar dos EUA... para servir a revolução só como uma testemunha.


Deixe a teoria para os peritos. Actue só como militar.


Os camaradas da www.freedomroad.org Freedom Road não aceitam essa treta. Eles incluem muitos intelectuais da classe trabalhadora.


As pessoas da classe trabalhadora podem e devem tornar-se intelectuais. Podemos e devemos estudar diligentemente, debate, auto-criticar, reestudar, e afiar continuamente nossa capacidade para actuar intelectualmente.


Não podemos ser preguiçosos acerca disto. É sempre mais fácil pretender que se sabe alguma coisa do que aprender acerca dela. É sempre mais fácil ser engraçado do que ser rigoroso. É mais fácil conversar fiado do que praticar a humildade do estudante sério. Temos de trabalhar, mais duramente do que a burguesia, porque estamos em guerra.


Mas nunca nos poderemos permitir sermos intimidados por graus avançados - assim como não devemos tornar-nos anti-intelectuais. Nunca poderemos nos permitir ficar contidos dentro de especializações pré-determinadas. A experiência dos intelectuais da classe trabalhadora. enriquecerá a teoria. Nossas estórias manterão as coisas reais. Nossa prática definirá o futuro.


E nós merecemos ser ouvidos.


O original deste artigo encontra-se em http://www.freedomroad.org/milmatters_9_huntington.html .


[*] Ex-sargento do Exército dos EUA.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info



13/Fev/03


http://resistir.info/eua/huntington_model.html


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