28 dezembro, 2006

Genero na Sociedade atual


Gênero e Valor na sociedade moderna


Publicado em 09/01/00 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.


Segundo o mito de criação bíblico, a mulher nasceu quando Deus retirou uma costela ao homem. Essa imagem patriarcal é dúbia: de um lado, a mulher parece um simples apêndice do homem; de outro, porém, subentende-se que o homem, ao ser "cindido" de sua parte feminina, é ele próprio ferido e sofre uma perda. O problema, claro, não está no plano da anatomia. A "pequena diferença" que as crianças descobrem precocemente em seus corpos não diz nada, em essência, sobre a maneira que as atribuições culturais e sociais são repartidas entre os sexos.


O domínio masculino (patriarcado) não decorre de caracteres biológicos, antes é um aspecto básico da forma social, sendo portanto o resultado de processos históricos. Por isso o patriarcado está longe de ser verificado em todas as culturas. Na história sempre houve sociedades que conheceram uma relação bastante igualitária entre os sexos. E cotejos interculturais mostram que também aquelas "qualidades" sociais ou psíquicas, rotuladas com aparente espontaneidade como "tipicamente femininas" ou "masculinas", podem revelar-se sob formas totalmente contraditórias em épocas diversas, em diversas estruturas sociais e diversos modos de produção.


O universalismo abstrato do moderno sistema produtor de mercadorias sempre despertou a impressão de que fosse relativamente neutro sob o prisma sexual. Mercadoria é mercadoria e dinheiro é dinheiro; onde estaria inscrita aí uma valoração sobre os sexos? A sobrevivência das estruturas patriarcais na família e na sociedade podia parecer assim, numa análise superficial, um mero resquício do passado pré-moderno. Nesse sentido, o feminismo reivindicou desde a Revolução Francesa uma "igualdade de direitos", tal como a prometia a forma universal da economia monetária moderna. Desse ponto de vista, a redução masculina do lema "liberdade, igualdade, fraternidade" era um puro arbítrio da dominação masculina herdada do passado, devendo ser ampliada para abarcar não só uma fraternidade entre "irmãos", mas também entre "irmãs".


Até hoje o feminismo como política não foi além da exigência de participação feminina no universalismo do moderno sistema produtor de mercadorias. O "homem abstrato", o átomo individual da sociedade, pode ser tanto homem quanto mulher. De outro lado, a pesquisa histórica e sociológica feminista descobriu há tempos que a desvantagem e a depreciação da mulher na modernidade não representam nem um "resquício" de relações pré-modernas nem uma simples vindicação masculina do poder, mas radicam profundamente nessas próprias relações modernas. Isso porque o moderno sistema produtor de mercadorias não é tão universal como parece ser. Ele tem de certa forma um reverso, que permanece obscuro na sociologia oficial. Refiro-me a todos os âmbitos e aspectos da vida que não se deixam exprimir em dinheiro. E esse reverso do sistema é tudo menos sexualmente neutro, pois dele basicamente as mulheres foram feitas responsáveis.


Trata-se, por um lado, de certas atividades concretas que se dão no horizonte doméstico, para além da produção de mercadorias: cozinhar, lavar roupa, fazer faxina, cuidar dos filhos etc. Por outro lado, essa tarefa definida como "feminina" transcende a atividade meramente mecânica; a mulher deve ainda criar uma atmosfera agradável e afetuosa, na qual não impere o tom cortante da concorrência como "na vida lá fora", no espaço público capitalista da economia, da política e da ciência. A mulher, portanto, é responsável pela "dedicação afetiva", de uma certa maneira, pelo "trabalho amoroso" dedicado ao homem e aos filhos. Assim, é uma das "virtudes femininas" ter faro para relações pessoais, ser emotiva e "meiga"; em compensação, o homem deve bancar o intelectual, o durão, alguém pronto para a concorrência. Para tanto, não precisa ser bonito, o que por sua vez é o primeiro dever da mulher.


Ao contrário de opiniões correntes, a modernização não atenuou o patriarcado, antes o agravou. Foi primeiro a economia capitalista que cindiu de forma tão extrema homem e mulher, como se fossem seres de planetas diferentes. Nas sociedades pré-modernas ainda não havia uma divisão estrita entre a produção de bens e a gestão doméstica. Por isso as atribuições sexuais eram também menos unívocas; as mulheres tinham o seu próprio lugar na produção agrária e artesanal. A moderna economia de mercado, pelo contrário, transformou a produção de bens numa esfera economicamente autônoma, numa esfera da maximização empresarial abstrata dos lucros, e, com isso, num aspecto central da esfera pública burguesa dominada pelo sexo masculino. Capitalistas e empresários, como bem se sabe, assim como políticos, são sobretudo homens.


Essa nova e agravada repartição funcional entre os sexos na modernidade não podia ser igualitária. As atividades e condutas definidas como "femininas", é verdade, são tão necessárias à sobrevivência da sociedade quanto a produção de bens, que foi deslocada para o campo funcional "masculino" da lógica empresarial. Mas a cota dessas atividades e condutas na produção geral da sociedade não foi creditada às mulheres. Justamente porque foram feitas responsáveis por tudo o que, pela sua natureza, não se deixa exprimir em dinheiro e, portanto, "não tem valor" segundo os critérios capitalistas, a mulher foi considerada, a exemplo de suas esferas de atividade, de suas qualidades e virtudes imputadas, como inferiores e secundárias.


Claro que, na modernidade, mulheres sempre foram encontradas no ambiente burguês, tanto nas atividades remuneradas da esfera econômica quanto na política, na cultura etc. Mas o estigma de sua depreciação sexual perdurou também nesses âmbitos. Uma mulher com profissão ou politicamente ativa não se desvencilha das marcas sociais que lhe são imputadas pela cultura dominante masculina. Ela continua, em princípio, como responsável pela cozinha, pelos filhos e pelo "amor", ou seja, nunca é levada a sério na economia ou na política. E este não é somente um modelo imposto de fora, mas também um aspecto psicologicamente introjetado, cuja origem é a socialização feminina. Como todos sabem, as mulheres são até hoje em menor número que os homens nas atividades profissionais e públicas; muito mais raramente elas alcançam posições de destaque e, em regra, são pior remuneradas.


Aqui vem à tona o dilema do movimento feminista: para realmente superar o patriarcado, ele teria de pôr radicalmente em dúvida todo o modo de produção moderno; não no sentido, claro, de uma idealização retrógrada das relações agrárias, mas como exigência de uma forma de organização fundamentalmente diversa das forças produtivas modernas. Enquanto a racionalidade destrutiva e "masculina" da lógica empresarial não for rompida, serão também perpetuadas as formas de atividade e as pseudoqualidades definidas como inferiores e relegadas à esfera privada. Só para além da cisão estrutural entre uma "lógica do dinheiro", de um lado, e uma "falta de lógica" da vida doméstica, da dedicação pessoal e da emotividade, de outro, poderia florescer uma relação emancipatória entre homens e mulheres.


Um feminismo, ao contrário, que se limite à exigência de "direitos iguais" no interior do modo de produção dominante há necessariamente de sucumbir à forma cindida da vida social. Sempre caíram em ouvidos moucos o apelo de que os homens devessem participar em igual medida das atividades e condutas cindidas no seio da vida pessoal e familiar. Inversamente, a visão feminista estreita-se cada vez mais, e de forma automática, à esfera econômico-política. A emancipação feminina não é medida pela mudança dos homens no âmbito privado, mas pela mudança das mulheres no âmbito público. O modelo pós-moderno não é mais a mulherzinha dengosa e de miolo mole, mas o tipo andrógino da "mulher de carreira". Ao lado da loiraça oxigenada, da vampe e da mãe extremosa, fiel dona de casa, surge a banqueira que faz jogging e surfa na Internet, em cujo caminho de solteira ela passa, feito um homem, por cima de tudo e de todos.


De fato, pelo menos nas metrópoles do mercado financeiro, parece haver uma sinistra convergência entre os sexos e suas atribuições.0 Enquanto a mulher de profissão é obrigada a demonstrar uma boa dose de rigor e "frieza" emocional para subir na vida, a gestão pós-moderna descobriu, por sua vez, a chamada "inteligência emocional" para o cálculo empresarial e o planejamento individual de sucesso na luta da concorrência. Em livros e em seminários é oferecido um programa inovador de treinamento para "empresários sensíveis". "Peritos em emoção" e "estudiosos da emoção" surgem aos montes, tagarelam sem parar. Fala-se tanto de uma "cultura da emoção" quanto de um "empresariado estressado". Trata-se, portanto, de manipular e regular funcionalmente as sensações subjetivas e os sentimentos próprios. A emotividade, circunscrita até hoje à esfera privada e delegada à mulher, deve ser carreada para fins capitalistas e transformada, de certa maneira, numa fórmula de sucesso.


A perversidade desse propósito fica especialmente clara quando a "tecnologia emocional" aparece como gestão empresarial ou política de subalternos. O economista alemão Hans Haumer, por exemplo, fala nesse sentido de um "capital emocional" cuja função é render "suficientes ganhos". A medida para tanto é um "coeficiente emocional de capital", que indicaria a grandeza com que a "tecnologia humana" da dedicação pessoal reverte em benefício do lucro da empresa. Implicado nisso está a exigência, pela "racionalização emocional", da sujeição dos trabalhadores aos reclamos da flexibilidade empresarial, a aceitação de desmandos de toda espécie e o estímulo da produtividade individual. O chefe "emocionalmente inteligente" evita atritos pessoais e passa aos trabalhadores a sensação de que são amados e reconhecidos, mesmo quando ele os trata feito simples material humano. O rendimento do "capital emocional" atingiria o auge de eficiência quando as pessoas, comovidas às lágrimas, agradecessem ao empresário o fato de serem postas no olho da rua.


É nítida, nesse caso, uma reintegração das formas de vida e comportamentos cindidos, mas no sentido errado: o sistema econômico autonomizado começa a tragar as normas, modelos e "qualidades" reservados até agora ao âmbito doméstico e à intimidade, a fim de instrumentalizá-lo no sentido da lógica do dinheiro. Só dentro desses horizontes os homens pós-modernos são mais emocionais que no passado, enquanto a mulher pós-moderna pode agora empregar de modo economicamente funcional suas "virtudes femininas" a-socializadas. O que na mídia é sugerido como distensão na batalha dos sexos sob a forma de futebol feminino, strip-tease masculino ou casamento de homossexuais, na verdade resulta na redução economicamente funcional da esfera doméstica, antes um reduto dos sentimentos. A androginia consiste em que indivíduos de ambos os sexos, em igual medida, mobilizem "ternura e frieza" para a concorrência e aliem a competência técnica à competência emocional, a fim de manter a todo vapor a máquina de fazer dinheiro.


Se no passado a emotividade doméstica da sociedade capitalista era repartida de maneira desigual, agora ela se acha para sempre destruída. Pois justo nesse aspecto vigora ironicamente a lei da escassez. O que é consumido em dedicação e sentimento pessoal na empresa, no propósito de manter lubrificada a máquina econômica, perde-se para o âmbito cindido da vida privada e da intimidade. Se as atividades e condutas "femininas", na qualidade de reverso da produção de mercadorias, não forem superadas juntamente com a economia capitalista, sendo antes tragadas por essa própria economia, então o resultado pode ser apenas uma nova dimensão da crise. Os aspectos necessários da vida social, embora não representáveis em forma monetária, não serão assim repartidos igualmente entre homem e mulher; quando muito, virarão ruínas.


O que hoje dá o tom é o modelo televisivo da "mulher dinâmica", que junta carreira e família sob o mesmo teto e ainda por cima se embeleza diariamente para arrancar suspiros como "objeto do desejo". Mas para a maioria isso é exigir muito, algo de todo inviável. A porcentagem das mulheres que consegue esse malabarismo é infimamente baixa. Só uma reduzida minoria de "mulheres de carreira" pode dar-se ao luxo de uma tal ilusão, delegando o fardo da administração do lar, dos cuidados com os filhos etc. a empregadas domésticas (imigrantes, negras, desprivilegiadas), que, por sua vez, deixam de ter tempo para seus próprios filhos. O grosso das mulheres está absurdamente sobrecarregado com a tarefa de responder, ao mesmo tempo, pelo dinheiro, pelas atividades domésticas e pelo "amor". Na pós-modernidade o patriarcado não some, antes "se embrutece" e se estilhaça em formas múltiplas de barbárie, como escreve a feminista alemã Roswitha Scholz. Este é o mundo que transforma crianças em assassinos e psicopatas.


Robert Kurz


Fonte: http://www.nossacasa.net/dire/texto.asp?texto=70aa


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26 dezembro, 2006

Mercado - Vantagens Comparativas


Buracos de rato para elefantes



Oferta de lugar no capitalismo para gigantes como o Brasil não passa de cinismo.


Por Robert Kurz


Por muito tempo, a esperança social nos países do Terceiro Mundo esteve voltada para o paradigma da "libertação nacional". A dependência às economias imperiais dos antigos Estados industriais devia ser superada em favor de uma industrialização nacional autônoma.


O meio para tanto foi sempre uma maior ou menor impermeabilidade ao mercado mundial, a fim de concentrar-se na própria economia interna. As importações dos países industrialmente avançados deviam ser substituídas na medida do possível pela produção própria. Essa estratégia, que como se sabe gozou por um bom tempo de primazia em suas incontáveis versões, não pôde desenvolver uma alternativa histórica ao capitalismo ocidental, mas seja como for representou em vários Estados a tentativa de conduzir todo o país à "modernização" e distribuir a cada qual os frutos do desenvolvimento.


Em muitos aspectos formais pode-se comparar tal projeto com o mercantilismo, a doutrina do absolutismo europeu nos séculos 17 e 18. Mas na teoria desenvolvimentista do Terceiro Mundo tratava-se apenas de um "mercantilismo pela metade". A exemplo da política econômica dos velhos príncipes absolutistas, a importação de mercadorias devia ser limitada e o Estado ser o responsável pelo planejamento da economia nacional ou mesmo agir ele próprio como empresário. À diferença do mercantilismo histórico, porém, a exportação a todo custo não era o objetivo, mas ao contrário a concentração no próprio desenvolvimento interno.


Essa diferença pode ser também facilmente explicada. A doutrina mercantilista apoiava-se na exportação porque não queria, em primeiro lugar, desenvolver o próprio país como tal, mas antes arrancar aos demais países o máximo de dinheiro possível, a fim de engrossar os fundos de guerra dos príncipes salteadores. O exército e a suntuosidade da corte absolutista eram glutões insaciáveis de moeda. Os regimes desenvolvimentistas do Terceiro Mundo possuíam igualmente certos traços "absolutistas": eram autoritários, não raro também propensos à ruinosa ambição militar e à pompa burocrática irracional. De outro lado, no entanto, eles eram vincados por um momento socialmente emancipatório que se sedimentou na opção do desenvolvimento interno. Talvez eles fossem menos afeitos à exportação porque, como retardatários históricos, não podiam se impor da mesma forma que o absolutismo europeu, que ainda nada tivera a temer com a concorrência superior no mercado mundial.


O modelo político de desenvolvimento do Terceiro Mundo caiu por terra. Já antes de seu flagrante colapso ele padeceu uma longa agonia. Pois logo ficou patente que a impermeabilidade ao mercado mundial era absolutamente impossível, caso não se quisesse deixar de lado o objetivo do próprio desenvolvimento industrial. A substituição das importações impôs-se apenas a produtos relativamente simples e pouco numerosos. Muitos componentes necessários para uma produção industrial abrangente não podiam ser elaborados pelos países do Terceiro Mundo. Se mesmo assim quisessem desenvolver-se industrialmente, eles tinham antes de tudo de importar tais componentes do mundo ocidental. Pouco a pouco, a economia do desenvolvimento viu-se a contragosto obrigada a curvar-se à exportação ou até a um "mercantilismo total", muitas vezes à custa do abastecimento interno de bens de consumo e mantimentos básicos. A pobreza, que se quisera eliminar, batia de novo à porta dos fundos.


Como a disparidade entre os custos de importação e as receitas de exportação aumentasse cada vez mais, os regimes resolveram-se pela contração de dívidas no mercado financeiro mundial. Ora, com isso a perspectiva do desenvolvimento interno viu-se de uma vez por todas denegada. De fato, agora patenteava-se que já a médio prazo os custos para os créditos resultavam mais elevados que as rendas dos investimentos financiados com ajuda desses mesmos créditos.


O saldo foi a crise de endividamento do Terceiro Mundo, que desde então não pára de inchar. Trocando em miúdos, as rendas com a exportação já não podiam sequer ser utilizadas para o desenvolvimento interno da economia, mas quase exclusivamente para cobrir as dívidas nos mercados financeiros globais. Isso em nada mudou até hoje. A maioria dos países do Terceiro Mundo verte sangue. Os velhos regimes desenvolvimentistas transformaram-se em feitores do capital monetário transnacional e desse modo perderam todo momento emancipatório.


Desta necessidade fizeram virtude as instituições internacionais como o Banco Mundial e o FMI, sob a égide da abertura neoliberal ao mercado global. Elas prometem uma nova perspectiva, diametralmente oposta à antiga teoria do desenvolvimento: agora o desenvolvimento não cabe mais à substituição de importações e à vasta industrialização interna, mas antes a uma industrialização voltada às exportações.


Isso significa que já não se aspira mais a um complexo industrial amplo e escalonado, que englobe todos os setores essenciais, desde a indústria de base até a produção de bens de consumo, e garanta a coesão da economia interna. Em vez disso, cada país há de procurar seu "produto de exportação" específico, de acordo com a teoria do livre-cambismo, e concentrar-se naqueles produtos que podem ser manufaturados com custos relativamente baixos e para os quais vigoram portanto "vantagens comparativas".


Infelizmente, essa teoria das "vantagens comparativas" de David Ricardo (1772-1823) não vingou nem mesmo no passado. Quando muito ela podia funcionar quando se tratasse de uma troca entre nações que, em primeiro lugar, promovem o grosso de sua reprodução por meio da economia interna e exportam ou importam relativamente poucos produtos e que, em segundo lugar, possuem quase o mesmo nível de desenvolvimento. Ambas as condições aplicam-se menos do que nunca ao mundo atual. Não há que se falar nem em nível comparável de desenvolvimento nem em economias coligadas.


A globalização do capital já é uma manifestação da crise histórica que alcançou também os países da metrópole capitalista. Eis por que todavia o declínio do desenvolvimento não diminuiu. A crise tem portanto de atingir com tanto mais virulência os antigos "países em desenvolvimento". A rigor, os conceitos "exportação" e "importação" tornaram-se absurdos. Somente no plano formal trata-se ainda de uma troca entre economias nacionais independentes.


Por isso, também a expressão "vantagens comparativas" caiu no absurdo. De modo algum procede que as nações produzam o grosso para si e importem e exportem somente os produtos para os quais vigoram "vantagens comparativas". O novo imediatismo do mercado mundial impõe a manufatura sucessiva e excludente dos produtos capazes de encontrar seu lugar ao sol a preços relativamente mais baixos e largar mão de tudo mais. Mesmo a Ricardo isto seria um descalabro ou uma inconsequência.


A totalidade dos países só pode ocupar uns poucos nichos de exportação, ao passo que o resto é inundado e sufocado pela oferta globalizada. Os países deixam de ser países e tornam-se zonas do mercado mundial com diferentes densidades. E isto equivale a afirmar que a possibilidade de existência abre-se somente a quantos sejam capazes de tomar posse dos nichos do mercado mundial. Isso não toca apenas aos trabalhadores, mas também aos empresários.


A bem da verdade, a chamada industrialização seletiva voltada para as exportações não é um projeto econômico, mas simplesmente empresarial. Os ideólogos do livre-cambismo, a quem já no século 19 coubera a ruína de vários milhões de pessoas, argumentam agora que a situação não é necessariamente essa. Como suposta prova, eles invocam os "pequenos tigres" do Sudeste asiático. Há muitas razões por que também a opção dos "pequenos tigres" não é sustentável a longo prazo. Eles não vivem somente de ciclos globais deficitários, mas também ameaçam a todo instante recair em novas crises de endividamento graças aos custos com infra-estrutura e investimentos na área de racionalização. Afora isso, resta saber se o sucesso relativo e historicamente talvez apenas efêmero dos poucos novatos são extensíveis a todos.


A industrialização seletiva voltada para as exportações significa ocupar nichos no mercado mundial. O termo "nicho" já diz todavia que se trata de um espaço bastante restrito e apertado. Os "tigres" já têm de ser um bocado pequenos, se quiserem como país se encaixar nesse espaço. Ou melhor dizendo: eles têm na verdade de ser ratos, pois apenas ratos cabem num buraco de rato. Daí a validade do preceito: quanto menor um país e quanto menor sua população, mais a estratégia empresarial dos nichos de exportação harmoniza-se com todo o Estado. E vice-versa: quanto maior um país e quanto maior seu número de habitantes, mais absurda torna-se a opção pelos nichos no mercado mundial.


Acerca disso dispõe-se de provas absolutas e relativas. As estrelas do mercado global no Sudeste asiático, Hong Kong e Cingapura, são minúsculas cidades-estados com menos de 3 milhões de habitantes. Isso equivale a mais ou menos 1/6 da população de São Paulo. Estes ratos têm ao menos um posto temporário num buraco de rato do mercado mundial. Já mais delicado é o caso de países como Coréia do Sul, Taiwan ou Tailândia, na Ásia, Argentina e Chile, na América Latina, e Polônia, República Tcheca ou Hungria, no Leste europeu. Estes países, que têm aproximadamente entre 15 e 50 milhões de habitantes, já possuem mais o tamanho de gatos que de ratos. Graças a tanto, eles podem alocar no nicho apenas uma parte de seus homens e têm de suportar as feridas da compressão. Indonésia ou Índia, na Ásia, Brasil, na América Latina, e Rússia, no Leste europeu, todos países com mais de 120 milhões de habitantes, assemelham-se por sua vez a elefantes, aos quais a oferta de um lugar no buraco de rato não passa de derrisão ou cinismo.


Há porém um país no mundo onde a opção pelo nicho de exportação surte por assim dizer um efeito aterradoramente monstruoso e obsceno. Este país é a China. A enorme massa que excede hoje 1,2 bilhão de habitantes nem mais elefante é, mas sim um mamute ou mesmo um dinossauro. O que ocorrerá quando se oferecer a essa montanha humana um confortável lugar num buraco de rato? Os ideólogos neoliberais do livre-cambismo são loucos o bastante para fazerem tal oferta com toda ingenuidade. E, de fato, o governo chinês tentou nos últimos decênios ceder passo à estratégia da industrialização voltada às exportações.


Nas províncias do Sul foram erigidas "zonas econômicas privilegiadas" como Shenzhen, as quais se tornaram atraentes aos investidores estrangeiros em virtude de regalias tributárias, salários baixos e isenção de impostos sociais ou ecológicos. Sob condições pré-capitalistas, lá se fabricam principalmente componentes para empresas globalizadas do Japão, Hong Kong ou países ocidentais. Os trabalhadores são aquartelados e mantidos como presidiários, as jornadas de trabalho são extremamente longas e quase não há precauções com a segurança. Tornou-se rotina o comunicado de graves acidentes e incêndios catastróficos. Em 1995, um sem-número de jovens trabalhadoras de uma empresa têxtil foram carbonizadas porque as portas da fábrica estavam cerradas.


A despeito dessas condições brutais, os setores da industrialização voltada às exportações podem abarcar, numa estimativa otimista, o máximo de 200 milhões de operários. A longo prazo, é impossível que a China dite o ritmo dos mercados mundiais e conduza o grosso de sua reprodução por outros critérios que não os do setor das exportações. Isso vale sobretudo para todo o sistema de crédito e monetário assim como para o câmbio. A industrialização voltada para as exportações só é viável caso a moeda seja conversível. Uma moeda conversível exige por sua vez que a quantidade de moeda permaneça sob controle e os créditos só sejam concedidos pelas regras da rentabilidade.


Isso acarreta graves consequências para a economia interna. Grande parte das mais de 2 milhões de empresas estatais chinesas com 150 milhões de empregados seriam obrigadas a fechar. Inúmeras microempresas do setor de serviços, que dependem do poder de compra dos empregados na indústria estatal, teriam igualmente de entregar os pontos. A própria lavoura de que vive grande parte dos chineses, considerada improdutiva segundo os critérios globais, estaria fadada à ruína. A fim de evitar essas consequências, a administração chinesa adotou uma contabilidade de partidas dobradas. Não somente diversas cotações da moeda, mas também diversas formas de lançamento estatal correm lado a lado.


As elevadas taxas de crescimento que deixaram pasmos todo o mundo constam de elementos absolutamente heterogêneos. Elas contêm não apenas o crescimento real dos setores de exportação, mas também o crescimento puramente fictício de grande parte da economia interna, que depende das injeções estatais da Casa da Moeda. Ao cotejar a estatística chinesa das exportações com as correspondentes estatísticas dos parceiros comerciais, ressalta, além disso, que uma parte dos números consiste de meras "exportações ilusórias" que jamais existiram e só servem para ludibriar a própria burocracia.


Enquanto no Ocidente a China é bajulada como o sustentáculo do grande boom do século 21, a situação real há muito tornou-se crítica. Segundo depoimentos da agência oficial "Xinhua", em 1995 a cifra de desempregados atingiu 230 milhões, mais de 25% da população ativa. Por volta de 150 milhões de pessoas vagam pelo país em busca de salário. A inflação faz com que até mesmo os mantimentos básicos tornem-se exorbitantes para muitos. Mais cedo ou mais tarde a contabilidade de partilha dobrada irá por água abaixo.


Explicará então o governo chinês a 1 bilhão de habitantes que eles são "supérfluos" na economia de mercado? Em muitos lugarejos, camponeses insurrectos respondem à bala aos policiais e ao Exército. As províncias costeiras há muito já não transferem ao governo central os impostos recolhidos. Peritos do Instituto Londrino para Estudos Internacionais temem a eclosão iminente de uma guerra civil na China. A terra do sonho do grande boom poderia tornar-se um modelo catastrófico da industrialização voltada às exportações.


Robert Kurz




Fonte: http://www.nossacasa.net/dire/texto.asp?texto=70av


Publicado em 01/12/96 no caderno Mais! da Folha de São Paulo


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Doutrinamento Militar


O modelo de Huntington
por Stan Goff [*]


Eu perambulava numa livraria da Barnes & Noble na semana passada quando deparei com um livro escrito pelo meu velho líder de equipe do 1º Destacamento Operacional das Forças Especiais (1st Special Forces Operational Detachment - Delta Force) . O livro, por incrível que pareça, chamava-se "Inside Delta Force". O autor, meu antigo líder de equipe, é Eric Haney.


Ao folhear o livro encontrei uma fotografia da nossa equipe que fez o trabalho arriscado no helicóptero "Chalk 4" numa operação antes da hora H da Operação Urgent Fury, a invasão de Granada - uma invasão que deveria afundar-se nos anais das invasões não só pelo seu cinismo como também pelo absoluto fracasso do seu planeamento e execução. Na fotografia, fomos colocados sabe-se lá por quem num grupo, aparentemente preparando a nossa partida da ilha. A sujeira e o medo da operação ainda estavam em nós, e estávamos visivelmente fatigados e com a adrenalina gasta.


Fui até à página 300, onde Eric descreveu todo o fracasso em pormenores dramáticos. Ele mudou uns poucos nomes por qualquer razão, e o meu foi mudados para Stan Johnson. Talvez tenha pensado que ainda estou na activa, alhures.


Isto tudo fez-me sentir estranhamente nostálgico, não de dar tiros, mas de me ter tornado muito mais velho, das viagens longínquas que fiz então, quase 20 anos atrás.


Mais tarde, naquele mesmo dia, parei para um café numa livraria melhor, The Regulator, em Durham, onde quase me escapou um volume na secção de História Militar chamado "American Soldier: Stories of Special Forces from Iraq to Afghanistan", editado pela Nate Hardcastle and Clint Willis. Num impulso relutante, retirei-o da prateleira e ali na capa desta antologia estava o meu nome. O meu editor de "Sonho odioso" (Hideous Dream) havia dado permissão para incluir uma parte substancial do meu livro, e o de Eric. Ali se conta tudo desde o Vietname, escrito principalmente pelos participantes reais.


O que me chocou nesta coincidência de livros foi que a maior parte deles foi escrito por antigos alistados - sargentos como eu.


As memórias começam a formigar, e algumas velhas cicatrizes conectam-se como pontos dentro da minha cabeça.


Em 1986 comecei a ter problemas no Delta. Comecei a brigar e a afastar-me do círculo interno maçónico um ano antes, quando os "embaracei" num exercício no Panamá em que - desempenhando o papel de inimigo - derrotei o meu próprio esquadrão. Naquele mesmo ano, a unidade ficou embrulhada num escândalo de uma fraude que implicava virtualmente toda a gente, e as investigações principiaram uma orgia de dedo-durismo e traição que arruinaram a moral da tropa e desencadearam um expurgo.


No Dia de Acção de Graças de 1986 fui chamado ao gabinete do Sargento Maior Mel Wick e sumariamente libertado da função de "operador", meu certificado de segurança (security clearance) foi suspenso, e disseram-me para começar a procurar um emprego. O rumor que serviu de base para a minha libertação da tropa foi que havia, quando em El Salvador no fim de 1985, levado uma mulher que era uma antiga guerrilheira da FMLN ao quarto do embaixador Edwin Corr na sua residência palaciana em Colonia San Benito quando ele estava em viagem e partilhado prazeres carnais com ela sobre os lençóis presidenciais do embaixador. Numa palavra: Gostaria de poder reivindicar o rumor - nem que fosse pelo seu aspecto iconoclástico - mas, ai de mim, não é verdade. Mas pouco importa. Fui expurgado.


Pendente da devolução do meu certificado de segurança, eu tinha de procurar uma missão em que um Airborne Ranger Infantry Sergeant First Class pudesse trabalhar sem ter acesso a material classificado. Foi assim que aconteceu ser designado, como instrutor de Ciência Militar, no Departamento de Instrução Militar da Academia Militar de West Point, Nova York.


Em West Point, durante o primeiro semestre dos calouros em Ciência Militar, recrutas apavorados com cara de bebé entravam na sala de aula à espera de serem instruídos sobre as formas de se tornarem guerreiros.


Mas, ao invés disso, eles são sujeitos a uma versão altamente seleccionada da história militar dos EUA que rasteia o desenvolvimento do corpo de oficiais do Exército dos EUA através das lentes loucas de algo que se chama Modelo de Profissionalismo Militar de Huntington (Huntington's Model of Military Professionalism) .


Primeiramente, tendo revisto o material do meu curso a fundo para garantir que os meus cadetes poderiam sobreviver aos exames, pensei que este semestre era apenas uma outra extensão sádica do "sistema da quarta classe", aquela estúpida tradição da privação do sono, da submissão generalizada e da humilhação que os calouros de West Point devem aguentar nos seus primeiros noves meses.


Eu estava errado.


Todos os que vão ser oficiais militares dos EUA são doutrinados no Modelo de Huntington.


Samuel P. Huntington, o grande racista cultural e intelectual da Guerra Fria, desenvolveu uma teoria louca (crackpot theory) do "profissionalismo militar" e do "relacionamento civil-militar" que foi adoptada décadas atrás como a "teoria" oficial para o corpo de oficiais da Forças Armadas dos EUA.


Em West Point, esta doutrinação é quase como um Skull-and-Bones , uma lavagem cerebral semi-hipnótica, porque é infligida sobre cadetes que entram na sala de aula num estado de sonambulismo pós-traumático. Ao contrário dos rapazes de Bush, contudo, nenhum cadete é forçado a permanecer num caixão, recitando sua história sexual para os seus companheiros.


O Modelo de Huntington, que eu prometo não atacar muito aqui (por compaixão para com o leitor), descreve o oficial militar ideal como uma espécie de versão prussianizada de médicos, advogados e administradores de empresas - profissionalismo definido mecanicamente por três atributos: conhecimento técnico especializado, um "sentido corporativo", e uma vasta educação liberal.


Esta última significa uma licenciatura numa faculdade.


Huntington também faz a afirmação claramente absurda - na sua definição de relacionamento civil-militar - de que os militares podem ser apolíticos, uma asserção bizarra da parte de um homem que afirma ter sido influenciado pelo grande teórico militar prussiano Carl von Clausewitz . (Clausewitz começa a sua teoria da guerra com a premissa de que "a guerra é a política continuada por outros meios").


O Modelo de Huntington fornece uma justificação teórica para a reprodução de um sistema de classe entre os militares, um sistema e uma justificação ajustada unicamente para os militares americanos pós-2ª guerra mundial.


Examinando o seu critério de um "profissional", verifica-se imediatamente que as pessoas alistadas e experientes entre os militares preenchem dois daqueles critérios. Eles têm perspicácia técnica tal como a maior parte dos oficiais, e eles participam plenamente da cultura militar (sentido corporativo). A distinção, então, está num grau universitário formal, uma credencial descrita por Huntington como uma "vasta educação liberal".


Há algumas razões muito práticas, baseadas na pura lógica militar, para a hierarquia nas forças armadas. A mais óbvia é que a actividade definidora das forças armas inclui matar, morrer, mutilar, ser mutilado e destruir propriedade. Estes são, para dizer as coisas suavemente, comportamentos contra-intuitivos, muitas vezes cometidos tendo em vista um objectivo político que é pouco mais do que uma abstracção para os que são obrigados a cometer todos estes males. Quanto mais afastado da experiência do soldado está aquele objectivo, mais difícil é convence-lo dos seus méritos pois ele (e ocasionalmente ela) tem de ser confrontado com um inimigo crível que se comporte como ele/a espera. Assim, juntamente com uma ideologia de militarismo tudo isso estimula terrores sexuais profundamente irracionais, é preciso estabelecer um sistema de disciplina draconiana a fim de assegurar que a maioria das tropas combaterá, ao invés de fugir ou atirar nos seus oficiais, quando a merda é despejada sobre a proverbial ventoinha.


Mas Sam Huntington estava a trabalhar no seu modelo de militar profissional na década de 1950, e nessa época a disciplina para os militares já era axiomática há séculos. A "contribuição" de Huntington foi, de facto, desenvolver uma teoria adequada especificamente às necessidades da primeira força militar imperial após a 2ª Guerra, plenamente emplumada e hirta.


Por que ficou ele tão entusiasmado com a sua definição de profissionalização para as forças armadas?


Ele exprimia admiração aberta pelos prussianos, mas os costumes feudais dos mesmos (os quais, a propósito, infectam todas as grandes organizações militares do mundo hoje em dia) foram adaptados e modificados para reforçar um sentido de tradição que mantivesse uma espécie de continuidade cultural através das muitas mudanças tecnológicas, doutrinais e estruturais na condução da guerra. Estas mudanças são reflexos da sociedade em que estas organizações militares estão inseridas. Somente o etos militar é prussiano.


Este etos não deveria ser confundido com as necessidades práticas de uma vasta, moderna, mecanizada (e agora computorizada) força militar, concebida para projectar-se internacionalmente, através de um espectro de conflitos potencial que vão desde acções menores de polícia para tranquilizar uns poucos banqueiros com cara de pastelão até a algo chamado Guerra Total, em que o objectivo é a destruição de toda uma sociedade.


A pista para desvendar o mistério é que o Modelo de Huntington denomina o oficial militar de "um administrador de violência". Ênfase em administrador.


Uma organização militar permanente consistente por centenas de milhares de pessoas e por centenas de milhares de milhões de dólares de equipamentos e abastecimentos, empregando tecnologias no estado-da-arte, e espalhando-se através dos cinco continentes... tem muitas das características de... digamos... uma corporação multinacional. Esta magnitude de dimensão e complexidade implica uma complexa e altamente especializada divisão do trabalho, a qual por sua vez exige um vasto aparelho administrativo para manter tudo sincronizado.


Isto é pelo menos parte da definição de burocracia.


Burocratas não precisam de líderes, no sentido homérico do herói guerreiro. Eles precisam de administradores. Sociedades burocratizadas como a nossa reproduzem-se a si próprias, isto é, mantém as suas próprias estruturas e relações. Um importante mecanismo para esta reprodução social, nos sectores civis e militares, é o credenciamento.


Uma vez que aqueles calouros de West Point acabem de passar as dificuldades dos seu Ano de Ralé, eles passam os três anos seguintes a serem doutrinados sobre como manter controle sobre inconfiáveis, falsos, manhosos e traiçoeiros porcos alistados - tudo isto agora codificado na linguagem apropriada da extrema-direita politicamente correcta. Incluídos entre os manhosos e traiçoeiros estão aquelas pessoas alistados sobre as quais elas dependerão totalmente para o seu êxito, os NCOs.


O pequeno punhado de alistados com quem eu conversava em West Point consistiu uma espécie de excursão atrevida e experimental a fim de expor os cadetes aos "bons" NCOs. Na maior parte dos casos, penso, os perversos cadetes preferiam-nos aos oficiais, e assim aquela experiência foi logo concluída.


Isto, penso, aponta-nos para uma importante arena da luta de classe.


Após este passeio através do Delta e de West Point, preciso reorientar o leitor de volta ao livro de Eric Haney. Dentro da Delta Force há um canto de glória às operações especiais e ao militarismo, encobrindo o racismo-machismo da unidade. Mas em certos trechos Eric também levanta questões inconfortáveis acerca da política externa dos EUA, e descreve - tal como o meu próprio livro - a experiência real das pessoas por trás da desgraçada mística das Special Ops. No nosso caso, estas são experiências de pessoas alistadas que de muitas maneiras transgridem a fronteira invisível entre pessoas alistadas e os "administradores de violência" credenciados.


E está bem escrito.


Nós ambos, no nosso tempo de serviço activo, tornámo-nos pessoas com as quais os oficiais contavam, mas achavam difícil controlar.


A questão real que quero enfatizar é que Eric Haney e eu escrevemos livros para todos. E que eles foram publicados.


Nada contribui tanto para a reprodução de classe na nossa sociedade, além das relações de propriedade, como a divisão intelectual do trabalho imposta institucionalmente. Isto secciona o conhecimento em guetos académicos, e tenta congelar as pessoas da classe trabalhadora separadamente da intelligentsia. Credenciais!


O capitalismo precisa dos seus mandarins credenciados, e os mandarins muitas vezes definem até quem são os críticos "legitimados" do capitalismo. Especialização e credenciamento são as chaves para esta legitimação, e as chaves para a exclusão dos pretensos transgressores.


Aqueles de nós que não têm credenciais devem ser excluídos da intelligentsia, pois a inclusão das nossas vozes, a legitimação das nossas vozes, põe em causa a legitimidade de todo o sistema de poder.


Sinto isto pessoalmente, tanto como antigo alistado como como homem de esquerda. Como homem de esquerda, tenho por vezes me deparado com pressões poderosas para circunscrever o meu próprio papel, e limitar os meus próprios discursos públicos, à crítica da política militar dos EUA... para servir a revolução só como uma testemunha.


Deixe a teoria para os peritos. Actue só como militar.


Os camaradas da www.freedomroad.org Freedom Road não aceitam essa treta. Eles incluem muitos intelectuais da classe trabalhadora.


As pessoas da classe trabalhadora podem e devem tornar-se intelectuais. Podemos e devemos estudar diligentemente, debate, auto-criticar, reestudar, e afiar continuamente nossa capacidade para actuar intelectualmente.


Não podemos ser preguiçosos acerca disto. É sempre mais fácil pretender que se sabe alguma coisa do que aprender acerca dela. É sempre mais fácil ser engraçado do que ser rigoroso. É mais fácil conversar fiado do que praticar a humildade do estudante sério. Temos de trabalhar, mais duramente do que a burguesia, porque estamos em guerra.


Mas nunca nos poderemos permitir sermos intimidados por graus avançados - assim como não devemos tornar-nos anti-intelectuais. Nunca poderemos nos permitir ficar contidos dentro de especializações pré-determinadas. A experiência dos intelectuais da classe trabalhadora. enriquecerá a teoria. Nossas estórias manterão as coisas reais. Nossa prática definirá o futuro.


E nós merecemos ser ouvidos.


O original deste artigo encontra-se em http://www.freedomroad.org/milmatters_9_huntington.html .


[*] Ex-sargento do Exército dos EUA.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info



13/Fev/03


http://resistir.info/eua/huntington_model.html


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Jornalismo hoje


Vale a pena ser jornalista?


Por Fernando Evangelista em 23/12/2006
Publicado originalmente na revista Caros Amigos, edição 117, dezembro de 2006


Vale a pena ser jornalista? Eu me fazia essa pergunta enquanto soldados norte-americanos me arremessavam dentro de um carro na fronteira do Iraque. Dois militares me pegaram pelos braços, outros dois pelas pernas e, sem gritar, como se fosse um trabalho de rotina, como se fossem educados, disseram: "Desaparece". Era junho de 2003 e essa era a minha segunda tentativa frustrada de entrar no país, em menos de três dias.


Havia esperado por horas, no meio do deserto, sob um calor de mais de 40 graus, lutando contra a ansiedade e as moscas, com o intuito de chegar a Bagdá. Só na terceira tentativa, alguns dias depois, consegui entrar no Iraque. Entre as crateras das bombas que marcavam o caminho até a capital, tentava responder qual era, afinal de contas, a utilidade dessa profissão.


Quando adolescente, acreditava que o jornalismo seria um dos caminhos para mudar, radicalmente, o mundo. Mas nasci depois dos anos 60 e cresci com a imagem do Muro de Berlim sendo destruído e essa coisa de revolução foi ficando fora de moda, apesar de as injustiças sociais - de norte a sul - terem se agravado. Dizem por aí que a ditadura caiu, que vivemos numa democracia e que tudo, a partir de então, deve ser feito de "maneira mais madura e civilizada". A ditadura se foi, é certo, mas isto que a substitui está longe de ser uma democracia (no sentido original) e muitos dos que mandavam antes continuam mandando agora, sempre sem nenhuma "civilidade".


Fatos e versões


Comecei a pensar sobre "civilidades e democracias" quando pisei pela primeira vez num acampamento do MST. Só então, naquela visita, percebi o poder de manipulação da grande mídia. Pouco do que via e percebia daquela realidade correspondia à imagem midiática do Movimento. A mesma distorção dos fatos, em menor ou maior escala, testemunhei como repórter em 2001, na maior manifestação contra a globalização já vista, que reuniu mais de 200 mil pessoas em Gênova. Igualmente em Ramallah, 2002, durante a operação militar israelense "Escudo Defensivo", que culminaria com o massacre de Jenin - fato silenciado pelos meios de comunicação. Assim também, em 2003, no Iraque ocupado, e, recentemente, na guerra do Líbano. Era sempre muito inquietante perceber que as notícias do dia - em muitíssimos casos - não correspondiam aos fatos que eu havia presenciado na véspera.


Parte dessa distorção reside num dado bastante simples: alguns jornalistas ainda não descobriram que o lado mais fascinante da história não acontece nos palácios ou nos discursos oficiais. Acontece principalmente nas ruas. Ao cobrir um conflito armado, por exemplo, o ideal seria estar em todos os fronts, ouvindo todas as versões, como se aprende na primeira lição de jornalismo na universidade. É, todo mundo aprende, mas muitos esquecem e escolhem apaixonadamente um único front e ali permanecem grudados como o marisco na rocha. É o front do poder, o mais cômodo e mais seguro.


Eu não teria testemunhado o assassinato de uma senhora palestina, uma civil, por um soldado israelense, se estivesse acomodado num confortável hotel em Jerusalém, lendo e reproduzindo os releases enviados pelo governo de Israel. Ela foi executada na minha frente, quando saía de um hospital em Ramallah. Levou dois tiros, um na testa e outro no peito. Isso acontece com freqüência naquela região, não é novidade, mas é espantoso como alguns colegas insistem em reproduzir as versões oficiais sem qualquer investigação séria. Isso que chamam de "imparcialidade jornalística", muitas vezes, nada mais é do que cumplicidade com o poder.


Silêncio militante


Além de ter posição e deixar isso claro ao leitor, o jornalismo em que acredito deve saber costurar os fios de uma história, descrevê-la da forma mais objetiva possível e contextualizá-la. Por que quando se fala sobre o MST se omitem dados importantes para entender a questão da luta pela terra? Por que quase nunca se menciona que, dos 5 milhões de proprietários rurais, apenas 26.000 -menos de um por cento do total - são donos de 46% de todas as terras do Brasil? Por que nunca se diz que o acesso à terra era livre no Brasil até 1850, quando foi elaborada uma lei com o objetivo preciso de impedir o acesso a ela dos trabalhadores pobres? Por que quase nunca se menciona que o MST já alfabetizou 22 mil pessoas e mantém 2.000 escolas que empregam 4.000 educadores? A quem interessa esse silêncio militante?


Então, chegamos a uma das raízes desse silêncio e ela diz respeito à nossa concepção de democracia. O jornalista norte-americano Walter Lippmann, autor do livro Public Opinion, escrito em 1922, tinha uma concepção de democracia bastante atual. Lippmann foi um dos mestres das relações públicas e figura proeminente da primeira grande ação de propaganda de um governo moderno, coisa que levou o povo norte-americano a apoiar a I Guerra Mundial. Para Lippmann, a democracia é um regime deficiente porque o povo, basicamente uma "horda primitiva", não tem condições de saber o que é melhor para o bem comum. Por isso, é preciso que essa "horda" seja conduzida por uma elite de homens racionais. Essa elite - e apenas ela - tem condições de julgar o que deve ser permitido ou rejeitado.


Para que isso funcione, em uma democracia, é preciso fabricar consenso, construir idéias e valores que sejam assimilados, aceitos e seguidos. E o consenso é criado por meio da propaganda que, na maior parte das vezes, não se apresenta como tal, mas como informação, por meio do jornalismo. Enquanto isso, a "horda" deve ser entretida e deve pensar, assistindo a eleições e outros truques, que possui alguma importância. A concepção de democracia de Lippmann é a que existe no Brasil e em muitos outros países.


O norte-americano Noam Chomsky aborda esse tema no livro A Manipulação dos Media - Os Efeitos Extraordinários da Propaganda (Editorial Inquérito, 2003) e traz uma definição lapidar: "A propaganda está para uma democracia como o cassetete está para um Estado totalitário." Mas, quando a "horda primitiva", quando esse "rebanho tolo", por um motivo ou outro, se organiza e se rebela, é preciso revitalizar o Estado policial, utilizar o cassetete e criminalizar o rebanho. Para o poder não existe nada pior do que a junção de pobreza, consciência política e disposição para a luta. É o que acontece com o MST e, em muitos aspectos, é o que ocorre nos movimentos contra a globalização e na questão palestina.


Outras fronteiras


O problema de fundo, como constatou o incansável Fausto Wolff, é que "os novos jornalistas passaram a ver a realidade sob a sua perspectiva burguesa de classe média. O povo deixou de ser importante, deixou de ser o ator principal para tornar-se figura, coadjuvante, presunto. Em compensação, o jornalista deixou de ser o herói marginal para tornar-se uma espécie de poodle de divã, uma espécie de office-boy do poder..." Ou seja, chegamos a tal ponto que boa parte dos jornalistas já não precisa ser seduzida pelo poder. É cúmplice do poder sem ter consciência porque faz parte do rebanho tolo.


Para completar, vivemos num país onde a informação é controlada por meia dúzia de famílias. Essa concentração se torna ainda mais dramática pelo fato de que, segundo pesquisa divulgada pelo Ibope em setembro de 2005, 68% da população brasileira é considerada analfabeta funcional. E, se não bastasse, ainda temos um Poder Judiciário acostumado a separar a lei da justiça, a transformar vítimas em réus e vice-versa. A censura imposta à revista Observatório Social, a condenação do jornalista Lúcio Flávio Pinto e do cientista social Emir Sader mostram que ainda é muito arriscado contrariar, em alta voz, os interesses da nossa elite. Conforme estudo da organização Repórteres Sem Fronteira (RSF), "a imprensa brasileira, sobretudo a local, continua sofrendo graves represálias quando se mostra curiosa demais". É por isso que o Brasil ocupa a 75ª posição no ranking que mede a liberdade de imprensa.


Ainda assim, vale a pena ser jornalista? Vale, se tivermos ânimo para ultrapassar as fronteiras proibidas, fronteiras bloqueadas pela censura, pela ignorância, pela mentira. Vale, se tivermos os olhos bem atentos, para ver o delicado, o diferente, o invisível. É preciso coragem para se comprometer, para dizer o que se vê e o que se sente, sem medos nem manuais. Só vale a pena ser jornalista se for - como cantou Torquato Neto - para "desafinar o coro dos contentes".


Fonte: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=413FDS004


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20 dezembro, 2006

Os totalitarismos iluministas


O Iluminismo e os totalitarismos


Publicado em 24/08/97 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.


Em maio de 1944, durante o exílio californiano, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno concluíram, sob o título ''Dialética do iluminismo'' (''Dialektik der Aufklãrung''), um manuscrito redigido em comum, frase a frase, que só seria publicado em 1947, em Amsterdã. Sobre esse texto pode-se dizer, sem hesitar, que introduziu uma mudança de paradigma cheia de consequências para a teoria social.
Pois, até então, o pensamento do iluminismo, da forma como se desenvolvera no século 18, era tomado como o legado positivo comum da modernidade. Liberais e marxistas reportavam-se igualmente às conquistas desse período, uma vez que o marxismo resultara do liberalismo e, este, da filosofia do iluminismo anglo-escocês, francês e alemão.


As ideologias do progresso concorrentes no século 19 e início do século 20 batiam-se em torno da interpretação e evolução do pensamento do iluminismo; o marxismo aparecia, por assim dizer (e também compreendia a si próprio), como a sua ''segunda transição'', que, após a crítica do despotismo absolutista, da religião e da superstição, queria executar a ''missão histórica'' do iluminismo por meio da crítica das relações sociais e econômicas.


Uma crítica contrária aos fundamentos do iluminismo só parecia possível nos horizontes do pensamento reacionário, misantropo e irracional, que preparara e munira ideologicamente o regime fascista e a sua barbárie moderna. Um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial, quando ainda vigorava a coalizão anti-Hitler entre a União Soviética e as potências ocidentais, seria comum representar intelectualmente, num maniqueísmo filosófico, as frentes de guerra , identificando a coalizão antifascista ao lado bom, na tradição do iluminismo, e, o fascismo ao lado mau, na tradição romântica e reacionária do contra-iluminismo.
Essa interpretação, no âmbito de um liberalismo banal e um não menos trivial marxismo democrático que vegetaria até os anos 80 (e de bom grado teria insistido para sempre na constelação que há muito se tornara histórica da coalizão anti-Hitler), foi, todavia, fundamentalmente recusada pela ''Dialética do iluminismo''.


Mas Horkheimer e Adorno tampouco forneciam nessa obra teórica uma filosofia para o conflito entre Ocidente e Oriente, que dominaria metade do século seguinte - filosofia esta que se interessava simplesmente pelos pressupostos ideológicos do mercado e se antecipava ao espírito do tempo como ''trendsetter''.


A mera excomunhão do marxismo dos limites da ''boa'' modernidade e a glorificação da democracia ocidental supostamente ''pluralista'' como a única herdeira legítima do iluminismo, em oposição às ditaduras fascistas e stalinistas, qualificadas igualmente como ''totalitárias'', remonta a uma literatura acadêmica barata, que, com exagerada condescendência, servia ideologicamente ao próprio sistema de dominação durante o período da ''Guerra Fria''.


A ''Dialética do iluminismo'', ao contrário, buscava raízes muito mais profundas: pela primeira vez, de uma perspectiva crítica e emancipatória, a tradição do iluminismo como tal foi posta em juízo.


O fascismo, diz a revelação chocante de Horkheimer e Adorno, não foi um monstro alheio, que irrompeu de forma atávica do subterrâneo pré-civilizatório da história, mas um legítimo descendente do próprio iluminismo. ''O iluminismo é totalitário'' - essa frase cortante delineia o programa de uma crítica nova e diferente crítica social, que até hoje aguarda o seu cumprimento. O conceito de ''totalitarismo'' caracterizava, desse prisma, não somente o fascismo e tampouco o fascismo e o stalinismo tomados em conjunto, mas, em última instância, a própria democracia ocidental. De certo modo, era a perspectiva de um futuro antecipado, a partir do qual as ideologias modernas mutuamente antagônicas, os movimentos políticos e os sistemas sociais eram, de forma inopinada, percebidos num sistema de coordenadas comum, para o qual elas próprias eram cegas, mas cujo reconhecimento crítico relativizava, de um ponto de vista superior, seus antagonismos. Por isso, ambos os autores desse livro admirável não se deixavam embair pela situação histórica concreta do ano de 1944. Era indispensável, na prática, derrubar o fascismo, que corporificava as possibilidades e consequências mais fatídicas do iluminismo e da modernização. Mas isto não significava subordinar a Teoria Crítica a tal objetivo imediato. O conhecimento teórico, para além da política antifascista do dia-a-dia e das necessidades de guerra, não podia calar e reprimir que o próprio fascismo era farinha do mesmo saco do iluminismo e que a lógica da desumanização espreitava os próprios pilares da democracia ocidental.


Mas no que consistia esse momento totalitário comum da modernidade iluminada, que o fascismo representava numa forma extremamente irracional e equívoca, o stalinismo numa forma historicamente extemporânea (tardia) e a democracia ocidental numa forma , em vários aspectos, madura (pelo menos nos Estados Unidos), já quase pós-moderna? Horkheimer e Adorno tiveram sérias dificuldades para formular, em 1944, o problema que farejavam. O salto por sobre a própria época os tinha conduzido aos limites do pensamento moderno em geral, ou seja, ao terreno para o qual ainda não havia nome nem conceito. A fim de poder designar o totalitarismo da modernidade, eles lançaram mão do conceito de ''dominação da natureza'', que se transforma, em sociedade, na ''dominação sobre os homens''.


Na medida em que se rebaixa a natureza a ''uma mera objetividade'', e o objeto isolado a um mero ''exemplar'' de uma espécie (e, portanto, a uma abstração), o sujeito onipotente, por sua vez, torna-se ''mero possuir, mera identidade abstrata'', que só enfrenta o mundo, a fazer cálculos, com a pretensão de submetê-lo e dominá-lo.
A fim de possibilitar o distanciamento necessário em face da natureza, tem de surgir na sociedade humana uma classe dominante, que intercala entre si e a natureza ''os trabalhadores'' enquanto dominados sociais: ''A distância entre sujeito e objeto, pressuposto da abstração, radica na distância com relação à matéria, que o senhor ganha por meio dos dominados''.


A dominação da natureza por intermédio dos homens-senhores pressupõe que o homem degrade o próprio homem a mero objeto da natureza: ''O despertar do sujeito é comprado com o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações''. Ora, isso, sem dúvida, descreve uma correlação negativa bem anterior à sociedade burguesa moderna.


Disso têm plena consciência Horkheimer e Adorno:
''De fato, o racionalismo linear, a liberalidade e burguesismo são muito mais antigos do que supõe a noção histórica, que data o conceito de burguês somente a partir do fim do feudalismo da Idade Média''.


Os mais antigos esboços de desejo (ainda impotente) de dominação sobre a natureza remontam à pré-história - no próprio ''pré-animismo'' já se acha ''a separação entre sujeito e objeto''. Mas se o homem pré-histórico ainda se enchia de um implacável medo diante da natureza predominante , e buscava afastar sua impotência com assimilações mágicas de objetos naturais (mimese), o mito, por sua vez, dá início à objetivação: ''O mito já é iluminismo'', e ''iluminismo é a angústia mítica tornada radical''.
Essa angústia deve ser extinta no mito pelo fato de se objetivar a natureza e, na medida do possível, ''não existir mais nada desconhecido''. Nesse aspecto, as figuras mitológicas aparecem como os arquétipos do sujeito burguês, abstrato e objetivante.


Horkheimer e Adorno tentam mostrá-lo no exemplo do mito de Ulisses - e, isso, lastreados inconfundivelmente na teoria da cultura de Sigmund Freud. O herói homérico das aventuras tem de reprimir os seus próprios impulsos, a fim de se tornar o sujeito da dominação. A sedução dos impulsos naturais, representados mitologicamente pelo canto envolvente das sereias, é emudecido para os servos pelo fato de lhes tamparem os ouvidos com cera; Ulisses, como dominante, permite-se, no entanto, ouvir o canto, previamente atado com cordas ao mastro da nau, para que não sucumba ao chamariz. Tal arquétipo mostra como a própria subjetividade, em última instância, tem de se tornar objeto, a fim de poder objetivar a natureza e os outros homens por meio da dominação. Já o mito, portanto, ''pôs em cena o processo infinito do iluminismo''. Nesse processo, são progressivamente destruídas, junto com os deuses, as qualidades do mundo, pois o ''programa de desencantamento do mundo'', que repousa na dominação, decompõe, com o seu ''pensamento ordenador'', tudo o que é próprio e o que, nos homens e nas coisas, não se resolve na investida objetivante: ''O que não se quer adaptar à medida da calculabilidade e da utilidade é tomado como suspeito pelo iluminismo''. Ele é por princípio totalitário, na medida que submete a natureza e a sociedade despidas de qualidade ao cálculo da mera quantificação, à matemática da dominação: ''A lógica formal foi a grande escola da uniformização. Ela forneceu aos iluminados o esquema da calculabilidade do mundo (...), o número tornou-se o cânon do iluminismo''.


A modernidade iluminada, como herdeira da história ocidental, é caracterizada segundo Horkheimer e Adorno, por uma contradição insanável. De um lado, ela prometeu liberdade por intermédio da desmitologização, ou seja, a superação da própria dominação, que seria substituída, em nome dos direitos humanos universais, pela razão discursiva do mercado. De outro, todavia, ela não só conservou o programa da dominação objetivante da natureza como também o agravou. Por meio do mercado, justamente, a dominação pessoal foi substituída por uma ''dominação da reificação'', ou seja, não se superou a ''injustiça social'', que foi apenas objetivada pela mediação universal da concorrência a um grau de abstração mais elevado do que antes. Com a equivalência abstrata da troca mercantil, que o capitalismo totalizou e dinamizou, consumou-se a redução do mundo a grandezas abstratas.


Desse modo, o iluminismo moderno foi condenado à autodestruição. Com efeito, ao ampliar a desmitologização com base na dominação reificada e despersonalizada, ele obrigou-se a destruir o seu próprio conceito teórico - o conceito universal em geral -como pretenso conceito mitológico: ''Com suas próprias idéias de direito humano não se passa algo diverso do que com os antigos universais''. Porém, quando a metafísica é consumida até a última gota, ''o pensamento se coisifica num processo automático, de curso independente, que imita a máquina'' e perde, assim, a capacidade de reflexão crítica. O que resta é uma ciência rebaixada a ''mero expediente do aparato econômico'': o positivismo, como ''mito daquilo que é o caso''.


O iluminismo, assim, transforma-se novamente em mito - um mito tanto banal quanto nocivo a todos. A promessa de liberdade converte-se em ''total empulhação das massas''. Se o liberalismo, ligado à dominação da reificação econômica, degradou o iluminismo a um sistema de concorrência e, assim, a uma cega ''empresa de autoconservação'', o fascismo, por sua vez, deduziu a última e a mais terrível consequência: a mitologização racista e anti-semita da concorrência converteu-se na ''apreensão total do homem''. E, com ''o fim da livre-troca'', o capitalismo foi falsamente superado nos moldes autoritários e bárbaros.


Lido meio século depois de sua primeira edição, a ''Dialética do iluminismo'' provoca uma sensação contraditória. A sua idéia básica de que o próprio iluminismo transforma-se em barbárie é mais atual do que nunca. O totalitarismo, que se manifestara em primeiro plano nas ditaduras fascistas e stalinistas, mergulhou no fundamento da democracia liberal do Ocidente e mostra-se hoje em sua forma mais pura e desenvolvida: como totalitarismo do mercado global e onipresente, que faz dos homens marionetes de seu princípio econômico, executado pelas coações da concorrência total.


Só agora se torna claro quão justo e, por assim dizer, profético foi o fato de a ''Dialética do iluminismo'' ter incluído as sociedades ocidentais em sua teoria da fatalidade histórica. Se, há mais de 50 anos, a democracia liberal subjugou militarmente seu irmão inimigo, o fascismo, e, na década passada, bateu pela concorrência econômica seu outro irmão antagônico, o stalinismo, no fim do século 20, por sua vez, ela mostra, como única sobrevivente da família do iluminismo e da modernização, a carranca da barbárie. Todas as monstruosidades da história, que deviam ser banidas pelo princípio iluminado dos direitos humanos, retornam sob a máscara das ''coerções'' liberais.
Por maiores que sejam os acertos da ''Dialética do iluminismo'', hoje ela tem eficácia limitada. Horkheimer e Adorno não cruzaram a porta por eles franqueada. Sua recorrência quase supra-histórica ao problema da dominação da natureza põe em curto-circuito dois planos diversos - o condicionamento de toda história da humanidade pela dominação socialmente inconsciente, e o fetichismo especificamente econômico da modernidade. A ''Dialética do iluminismo'' ganha, com isso, algo de inevitável e supratemporal, ao passo que, simultaneamente, concede à falsa promessa da liberdade burguesa um resto de dignidade. Horkheimer e Adorno incorrem na contradição de reconhecer na troca mercantil a redução a quantidades abstratas e irracionais e, ao mesmo tempo, desejar preservar, na liberdade dessa troca, a razão discursiva da circulação de mercadorias. Eles permanecem, nesse sentido, a despeito de sua mudança de paradigma, filhos do iluminismo.


Hoje, caberia levar a termo a crítica da razão iluminista por meio da crítica da economia moderna. Mas ninguém ousa cruzar a porta aberta. Parece ser privilégio da filosofia dos anos 90 rastejar no pó diante das divindades do mercado.


Robert Kurz


Fonte: http://www.nossacasa.net/dire/texto.asp?texto=70am


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19 dezembro, 2006

Mito das Forcas Especiais


Entropia de pleno espectro: Operações especiais num período especial


por Stan Goff [*]


O significado de Bakará


Agora o público americano sabe o que foi a Task Force Ranger. Aquela unidade foi celebrizada pela Columbia Pictures na peça de propaganda de grande êxito [1] chamada Black Hawk Down [NT: O título recebido em Portugal foi "Cercados" ]. Contudo, a Task Force Range real foi o paradigma do problema do estado das Operações Especiais dos EUA, e do contexto das Special Ops naquele período. O verdadeiro desastre em Bakara, que o filme pretende descrever, pode provavelmente ensinar-nos muito acerca da actual aventura militar no Afeganistão.


Aproveitando o conhecimento de uma carreira militar dominada pela experiência das "operações especiais" e, ao mesmo tempo, tentando integrar aquela experiência com a minha actividade política como marxista [2] , e ainda experimentando compreender a actual conjuntura pós 11 de Setembro, encontrei-me a reflectir muito sobre a experiência da Somália, onde participei como membro da malfadada Task Force Ranger em 1993. Aquela experiência, e algumas das conclusões que dali podem ser retiradas, pode contar-nos algo acerca da indeterminada declaração de guerra feita pela petro-oligarquia dos EUA que se apossou do poder em 2000 através de uma ordem judicial proto-fascista.


Examinei recentemente um documento arquivado pelo US Army Command and General Staff College com o título enfadonho de "Análise crítica da derrota da Task Force Ranger. Assunto: Uma análise crítica clausewitiziana sobre a derrota militar da Task Force Ranger em Mogadíscio, Somália, durante a operação RESTAURAR A ESPERANÇA" (Critical Analysis on the Defeat of Task Force Ranger Subject: A Clausewitzian Critical Analysis on the military defeat of Task Force Ranger in Mogadishu, Somalia during Operation RESTORE HOPE). Os seus autores foram o Major Clifford E. Day e o Major Ralph P. Millsap, Jr. Para maior brevidade, daqui para a frente referir-me-ei a este documento simplesmente como "o Documento do Dia".



O Documento do Dia é acompanhado por uma ressalva. Aquela ressalva afirma que o documento não constitui uma posição oficial assumida pelo Departamento da Defesa, o que é interessante por si mesmo. O Departamento da Defesa, tanto quanto eu posso lembrar, não costuma assumir "posições oficiais" em relação a operações passadas. Entretanto, o facto de ter sido escrito por um estudante do Command and General Staff College (CGSC) e pelo seu orientador de faculdade, e de ter sido publicado pelo United States Department of Defense como um ficheiro PDF, indica que, pelo menos nos seus fundamentos, ele está de acordo com a mesma estrutura analítica da doutrina militar em vigor nos EUA. Estudantes e faculdades no CSGC não costumam propor heresias doutrinais.


Ao identificar elementos chaves daquela estrutura doutrinal poderemos identificar as fraquezas sistémicas da doutrina militar dos EUA no Afeganistão, fraquezas no domínio militar, e fraquezas que são reproduzidas fora do sistema político mais vasto dentro do qual esta doutrina militar está inserida, a qual potencialmente traz consigo consequências militares directas. Podemos também especular sobre como tais consequências militares podem retro-agir dentro do establishment político como uma crise de legitimidade.


Algumas das fraquezas são temporariamente remediáveis ao nível militar. Contudo, aquelas de natureza sistémica são essencialmente inultrapassáveis na ausência de mudança de sistema, e a actividade militar está inextricavelmente nela inserida, e a ela reagindo.


A LEI DA ENTROPIA


Tal sistema, o imperialismo "neoliberal" dos EUA, está agora sujeito a crescentes pressões cruzadas ao longo de um certo número de linhas de fractura, económicas, sociais, políticas, ideológicas e militares. A reacção da classe dirigente dos EUA a esta confluência de crises está a aumentar de complexidade técnica e social. Este ensaio argumentará que estas "contradições", se aderirmos ao idioma marxista clássico, e a crescente complexidade técnica da resposta às mesmas, estão sujeitas à lei da entropia. Ou seja, a generalizada interdependência de sistemas tecnologicamente complexos empregues para salvar a classe dirigente e o seu regime de acumulação de capital traz consigo um crescente potencial para a desordem generalizada catalisada por rupturas que, em si próprias, podem parecer inconsequentes.


Um exemplo: Em Novembro de 2001 um homem no Aeroporto Internacional de Hartsfield, em Atlanta, o maior centro de tráfego aéreo no Sudeste dos Estados Unidos [3] , deixou a sua mala com máquina fotográfica no terminal pouco antes de embarcar no seu voo. Ele precipitou-se de volta ao terminal para recuperar a sua mala. Quando correu de volta para apanhar o seu avião, receando perder o voo e vendo longas filas no checkpoint de segurança, impulsivamente subiu a correr a escada rolante de descida a fim de contornar aqueles checkpoints. Foi estúpido. E era ilegal. Mas era, em si mesmo, algo insignificante. As pessoas esquecem coisas. As pessoas tomam atalhos. As pessoas seguem impulsos que constituem maus juizos. Este acto impulsivo, entretanto, a um custo incalculável, encerrou o tráfego aéreo de entrada e de saída do aeroporto ao longo de quatro horas, obrigou a evacuação de cerca de 10 mil pessoas, e teve imensuráveis consequências em cadeia para cada uma e para todas aquelas pessoas. Obrigou a alteração de rotas de aparelhos aéreos, reescalonamentos, cancelamentos e re-emissão de bilhetes durante vários dias a seguir. Foi no fim de semana antes do Dia de Acção de Graças. Só a AirTrans evacuou 18 voos que estavam a espera da decolagem no chão de Atlanta. Isto constitui a realização do potencial entrópico baseado directamente na complexidade do sistema. Aquela desordem pode ser libertada por um subir-e-descer-de-escadas, ou pelo voo de um avião que se choca com um edifício.


Pode-se argumentar que este foi um exemplo da elasticidade do sistema, uma vez que Hartsfield retornou às operações, mas isto não é simplesmente um assunto de se o copo está meio cheio ou meio vazio. Isto aponta directamente para os limites finitos de inputs materiais no sistema e a sua inerente insustentabilidade. No seu todo, o regime de acumulação de capital como actualmente existe, com sua enorme dependência de tecnologia complexa, está muito simplesmente ultrapassando a sua base financeira e ecológica. Hartsfield é apresentado aqui como um exemplo de uma cadeia entrópica, e não deveria ser reificado.


Concentrar-me-ei aqui nas implicações para operações militares, as quais tornaram-se as novas peças chave da política dos EUA e que, acredito, estão agora entre ventos díspares, rodopiando rumo a alguma combinação sinergética a fim de desencadear uma "Perfeita Tempestade" de crise social e política generalizada.


As doutrinas militares dos EUA endossadas pelos Relatório do dia são um caso de Rube Goldberg [NT] , condenadas a degenerar em reacção (decisão-reacção, e não das espécies políticas) e perda de iniciativa. Uma vez que o Relatório do Dia deixa de reconhecer o contexto táctico, estratégico e político como processos que influenciam e são influenciados por outros processos, ele tira conclusões e faz recomendações que só poderão ampliar as fraquezas doutrinais intrínsecas que resultaram na derrota da Task Force Ranger no mercado de Bakara, distrito de Mogadíscio, Somália, em 3 de Outubro de 1993.


A intenção deste artigo, entretanto, não é simplesmente criticar o Relatório do Dia e sim investigar a sua forma e o seu conteúdo a fim de detectar sinais de crises sistémicas mais profundas.


A essência das conclusões do Relatório do Dia está numa secção chamada "Cursos alternativos de acção". O simples título desta secção é instrutivo, nele o estudo da ciência militar, até o momento, é visto como um exercício de compartimentação académica, reflectindo a epistemologia burguesa dominante - analítico em oposição ao sintético, atomizado em oposição a relacional, mecânico em oposição a dialéctico. Os sub-parágrafos desta secção são: Apoio político adequado aos comandantes de campo; Construção de sistemas viáveis de colecta de inteligência; Emprego de força decisiva; Aproveitar a superioridade tecnológica; e Assegurar a unidade de esforços. Não quero despender mais tempo do que o necessário com os pormenores deste relatório, e reconheço que o resumo sempre leva a uma certa distorção. No entanto, traduzirei estes subtítulos.


-"Apoio político adequado aos comandantes de campo" é uma resposta destinada ao então secretário da Defesa Les Aspin, que vetou a introdução de blindagem pesada na Task Force. Muitos dos oficiais superiores das Operações Especiais também exprimiram dúvidas acerca do uso da blindagem, em grande parte porque estas unidades convencionais não são facilmente integráveis na Special Operations Task Force, e também porque elas tendem a inibir a agilidade táctica. Mas é tradicional entre os militares culparem os civis por descuido depois de se verificarem falhas tácticas.


-"Construção de sistemas viáveis de colecta de inteligência" é como aquilo que vemos agora quando cada vez mais revelações vêm à luz quanto àquilo que o governo sabia e não sabia antes do 11 de Setembro. A conclusão no Relatório do Dia, apresentada num inglês tortuoso e obscuro, é de que "se nós soubéssemos mais, poderíamos ter feito melhor". Esta espécie de masturbação mental também é muito comum entre os militares, cujos oficiais geralmente constituem o caixote de lixo da intelligentsia americana [4] .


-"Emprego de força decisiva" é uma espécie de versão do jogador de futebol das manhãs de segunda-feira da Doutrina Powell [5] , a qual diz, de maneira semelhante à conclusão anterior, "se tivéssemos tido mais poder de combate disponível durante a batalha, teríamos actuado melhor". É uma conclusão baseada na quantidade, não na qualidade. O Relatório do Dia também aproveita esta oportunidade para mais uma vez lançar a culpar pela falta de força de combate adequada (adequada para que eventualidade eles não dizem) sobre Les Aspin e os civis [6] .


-"Aproveitar a superioridade tecnológica" conclui, erradamente, que a Task Force Ranger (TFR) deixou de utilizar com pleno aproveitamento o seu equipamento de visão nocturna, e que se o raid em Bakara tivesse sido conduzido à noite, as vantagens tecnológicas dos EUA com equipamento de visão nocturna poderiam ter continuado o dia. Isto é simultaneamente inexacto e estúpido. A TFR executou numerosos raids à noite durante a sua permanência em Mogadíscio, mas aqueles raids foram lançados com base em inteligência em tempo real, tão inexacta quanto possa ter sido, acerca da presente (e constantemente mutante) localização de Mohammed Farah Aidid, cuja captura constituía a missão da TFR. Além disso, o equipamento de visão nocturna não faz muito mais do que ampliar a luz ambiente. Ele muitas vezes cria desvantagens tão problemáticas como a falta de acuidade visual associada com combate nocturno sem ajuda. O equipamento é ruidoso e incómodo. Ele limita drasticamente e canaliza o campo de visão do operador. Ele produz uma espécie de indescritível efeito hipnótico e de isolamento psicológico no operador. Po vezes causa dores de cabeça sérias. E cria uma profunda cegueira nocturna no operador até mais de quinze minutos depois de tê-lo deixado de usar (por mau funcionamento do equipamento, por exemplo, ou por qualquer outra razão).


-"Assegurar unidade de esforços" refere-se à natureza compartimentada da própria operação, em conjunto com forças multinacionais, e as forças convencionais dos EUA não estavam ao par da operação. O Relatório do Dia conclui que a coordenação teria aumentado a eficácia de ambas as inteligências, combinando esforços ali, e a resposta para Bakara, quando a ajuda convencional foi muito lenta a chegar. Mas a realidade é que partilhar informação sobre a natureza da missão tão provavelmente comprometeria a missão quanto a ajudaria, e além disso muito simplesmente ali não havia nem o tempo nem a capacidade para coordenar esta "operação especial" com todas as unidades na Somália.


Após este resumo, deixe-me retomar minha crítica à doutrina subjacente.


As 46 páginas do Relatório do Dia concedem a maior parte do espaço a factos técnicos e cronológicos relativos à derrota de Bakara. A missão UNOSOM à Somália, Operation Restore Hope (ORH), preparou o palco para 3 de Outubro. A decisão do presidente George H. W. Bush de lançar a ORH depois de perder as eleições gerais é mais do que suspeita. Quaisquer que sejam os seus motivos, a missão UNOSOM transmutou-se de uma missão de acção cívico-humanitária (HCA) multinacional, sejam quais forem os motivos cínicos dos seus vários participantes, com uma componente de segurança militar, em operações militares para "estabilizar" a Somália. Já se pode ouvir os ecos disso no Afeganistão.


A HCA, para todas as finalidades práticas, e ao contrário do que afirmou o Relatório do Dia, estava então basicamente ultrapassada. Estas são missões antitéticas, e não podem ser executadas simultaneamente com igual ênfase em ambas, a menos que os militares realmente armem, vivam e participem da vida dura em conjunto com a população "protegida". Isto é verdadeiro, mesmo que haja um Estado coerente com um inimigo único e coerente. Não havia nenhum dos dois na Somália, e assim as contradições da doutrina aplicada foram exponenciadas pelas contradições sociais e militares que existiam na Somália.


Tacticamente, uma vez que as forças militares ocupantes na Somália passaram a estar directamente empenhadas em operações de pré-combate, isto é, adoptaram uma postura mais pronta-para-o-combate, suas acções provocaram contra-medidas preparatórias da parte de todas as facções guerreiras. O balanço de forças na Somália estava num estado de constante movimento de qualquer forma, e a introdução deste novo e importante contendor militar directo (os EUA/NU) inevitavelmente aumentou a entropia de um meio já caótico. Isto aumentou exponencialmente, através do acréscimo de ainda uma outra variável, o número de possíveis combinações tácticas, e inversamente diminuiu a previsibilidade de uma situação já imprevisível. O êxito inicial da inserção militar dos EUA/NU foi baseado na falta de preparação, e consequente falta de resposta, da milícias indígenas, que foram obrigadas a ocupar-se com a competição por posições no cenário estratégico remodelado.


Todas as partes, significativa e previsivelmente, fortaleceram as suas posturas defensivas a fim de assegurar-se que se manteriam sobre o terreno já controlado. O ataque, em Junho de 1993, pelos paquistaneses, à Aliança Nacional Somali (SNA) de Aididi, deparou-se com uma defesa bem preparada (pelo combate de milícias experimentadas), e a SNA, não surpreendentemente, proporcionou-lhe uma decisiva derrota táctica com uma emboscada anti-blindados muito bem preparada - à qual o Relatório do Dia refere-se, ridiculamente, como um "massacre". O seu grande êxito a seguir foi a emboscada contra os americanos em Bakara.


Há outra condição de fraqueza inerente a forças externas nesta situação, e esta é a necessidade de desenvolver instalações fixas, e a seguir de abastece-las. O aeroporto tinha de ser assegurado a fim de manter uma ligação aérea. As estradas do aeroporto à Base Sword (a instalação principal), uns bons 45 minutos de viagem para comboios blindados, tal como uma miniatura da linha Maginot com os bunkers da 10ª Divisão de Montanha nas margens da estrada (cada um deles, por si próprios, vulneráveis a pequenos ataques), estiveram até ao fim em torno de Mogadíscio para evitar a minagem omnipresente, e ataques de morteiro/atiradores individuais. Estas duas instalações e o corredor que as ligava estavam todas "fixadas".


Contra um inimigo altamente móvel e levemente equipado, isto traduziu-se numa perda total de iniciativa no campo de batalha. As forças móveis indígenas podem flagelar de longe as margens das posições fixas, quando quiserem e como quiserem, com um risco mínimo para si próprias (especialmente em áreas urbanas). Cada suave golpe com êxito pode inaugurar todo um novo conjunto de políticas, procedimentos, e contramedidas da força fixada, mantendo-as perpetuamente numa estado de reacção às iniciativas do(s) seu(s) inimigo(s). A ênfase da política dos EUA na "força de protecção" (ou seja, uma fuga obsessiva a quaisquer baixas americanas em combate, uma componente implícita da Doutrina Powell) só aumenta a perda de iniciativa e a vulnerabilidade.


Isto não só drena recursos e diminui a flexibilidade como também se torna muito duro para a moral da tropa. Destaco este ponto não como algo sem importância, porque isto será significativo para a discussão posterior acerca das operações no Afeganistão.


Há uma saída para este dilema numa perspectiva estritamente militar, e ela consiste em retomar a iniciativa no terreno através de acções audaciosas, agressivas e contínuas contra uma organização militar específica. Mas a Doutrina Powell procura evitar enfrentamentos de combate no solo, a menos que haja uma superioridade técnica esmagadora e uma baixa probabilidade de baixas americanas em combate. Para o comandante táctico no terreno, sempre atentos às prioridades dos seus superiores, isto traduz-se numa enorme relutância em travar combates decisivos, ou mesmo em arriscar-se a combater, e uma ênfase exagerada a todos os níveis de comando nas forças de protecção.


Operações ofensivas audaciosas, agressivas e contínuas contra uma organização inimiga única proporcionarão vitórias tácticas, mas inevitavelmente custarão vidas "amigas", e por isso arriscam-se a perder o elemento invisível mas essencial em toda a operação militar - o apoio da população civil nos EUA.


Isto constitui uma contradição sistémica. A população dos EUA é alimentada com "informação" não para informar, mas para obter a sua aquiescência para a acção militar. Ela tende a permanecer silenciosa até que corpos americanos comecem a chegar de volta à casa, e aí começa a fazer perguntas.


Assim, recuperar a iniciativa táctica depende de um tipo de acção - aquela com uma probabilidade mais elevadas de baixas "amigas" - que poderia ameaçar a aceitação interna da acção militar. Esta é uma das razões porque o regime Bush-Rumsfeld faz tantas advertencias ao público acerca dos "custos" da Guerra Infinita. Estamos a ser inoculados a fim de proporcionar mais flexibilidade táctica aos militares.


É importante entender que uma chave e parte integral da Doutrina Powell - uma das forças predominantes da actual doutrina militar nos EUA - é este controlo total da informação. Controlar as percepções do público acerca das operações é uma parte importante das operações militares, de acordo com esta doutrina, tal como a logística ou a inteligência. Uma das dificuldades primárias para os militares dos EUA, por exemplo, no Haiti, era que as fronteiras porosas do país permitiam que enxames de repórteres internacionais não controlados andassem por toda a parte. [7] O mesmo não aconteceu no Iraque, e nem tão pouco no Afeganistão. Estas acções foram filtradas, desinfectadas e embrulhadas para o consumo público. Com o lançamento de Black Hawk Down , vimos a retro-projecção desta política a operações passadas.


A DOUTRINA POWELL


Aqui preciso parar por um momento para descrever em mais pormenor o que é a Doutrina Powell. Esta doutrina é assim chamada devido a Colin Powell, que é o antigo Presidente da Joint Chiefs of Staff.


O primeiro teste de Powell como um jovem oficial negro foi como "deputy assistant chief of staff (public affairs)" junto à Americal Division, onde lhe foi atribuída a difícil e dúbia tarefa de controlar danos após revelações sobre o massacre de My Lai, onde soldados dos EUA torturaram, violaram e finalmente assassinaram 347 civis desarmados numa remota aldeia vietnamita. Ele cumpriu brilhantemente aquele papel, demonstrando um talento real para negociar em labirintos burocráticos e diplomáticos politicamente sensíveis, e foi notado por Caspar Weinberger, que acabou por indicá-lo como seu "deputy security adviser", quando Ronald Reagan indiciou Weinberger como secretário da Defesa. Powell foi então pessoalmente preparado para tornar-se o mais jovem e o único negro Presidente da Joint Chiefs.


Powell nunca esqueceu as "lições" [ele imagina] aprendidas no Vietnam: que precisa haver alguns critérios simples e claros quanto ao "interesse nacional" o qual determina quando a força militar será usada, que o peso do governo e a influência da imprensa deveriam ser mobilizados para assegurar apoio público à acção militar, que a força esmagadora e devastadora deve ser empregue contra toda a sociedade com a qual estamos em guerra (em oposição à "proporcionalidade" [8] , o espectro que muitos - inclusive Powell - incorrectamente responsabilizam pela derrota dos EUA no Vietname, ressuscitado para explicar a derrota da Task Force Ranger), e que há algumas claras "saídas estratégicas". Implícita na Doutrina Powell, com a sua ênfase pesada nas relações públicas, está aquela minimização das baixas dos EUA.


Apesar de o Relatório do Dia apresentar uma descrição muito detalhada do desastre em Bakara, comete precisamente os mesmos erros que os militares cometem a milénios. Os fãs do futebol americano chamam a isto o jogador das manhãs de segunda-feira. O "jogador" examina os pormenores tal como ocorreram, uma visão só possível em retrospectiva, e a seguir joga o jogo do "o que-se" a fim de mudar o resultado, convertendo então os seus "os ques-ses" em recomendações.


Eu fazia parte da Task Force Ranger, embora tenha sido enviado de volta para casa depois de um conflito com um capitão idiota chamado Steele poucos dias antes da derrota de Bakara (uma benção disfarçada, talvez). Estive ali como parte da componente Ranger, apesar de anteriormente ter servido quase quatro anos como um operador com Delta, e estivesse familiarizado com a sua organização e os seus modelos de planeamento.


Vários de nós, veteranos de Operações Especiais asnáticas como a invasão de Granada, queixavam-se informalmente uns com os outros acerca do modo como foram conduzidos os raids em série que levaram à emboscada do SNA que apanhou a TFR a 3 de Outubro.


Lançámos patrulhas terrestres fora do aeroporto depois da primeira noite em resposta a ataques de morteiros - uma táctica que, se tivesse sido prosseguida agressivamente, teria recuperado alguma iniciativa. Mas o disparo de um tiro de advertência para impedir a fuga de um somali assustou o comando, e eles interromperam as patrulhas.


As nossas queixas centravam-se na execução sucessiva de um raid depois do outro utilizando exactamente o mesmo padrão (template) , o que convenceu-nos de que estávamos a dar ao SNA e aos outros uma oportunidade para analisar aquele padrão e preparar contra-medidas. Cada vez que fazíamos um raid contra outro objectivo, nós simplesmente voltávamos ao aeroporto e acocorávamo-nos por um dia ou dois até sairmos outra vez - da mesma forma.


Nosso pequeno grupo de descontentes dizia que deveríamos partir a louça e lançar um raid a seguir a outro, usando um padrão diferente de cada vez, tão rapidamente quanto pudéssemos nos rearmar e reaprovisionar de combustível, até cairmos de exaustão e então dormir durante seis horas e começar outra vez. Mas não estávamos no comando. E maior eficácia táctica apenas teria alterado as características superficiais da situação global, de qualquer modo.


A Doutrina Powell exigia "força de protecção" e acção ofensiva esmagadora. Os comandantes das Operações Especiais eram de uma geração que fora removida das Special Ops do estilo anterior, as que faziam o soldado, a equipe e a criatividade a peça central da sua doutrina. Estes foram educados sob um regime que construiu a sua doutrina em torno da tecnologia (ao invés do inverso). E o contexto político, sendo a ciência política um diferente "assunto", como se sabe, da ciência militar, era muito fracamente compreendido.


Tivemos uma pequena advertência no círculo de tráfego K-4 por ocasião de um dos raids, pouco antes de ser "recambiado para casa".


Eu estava com um veículo num ponto forte do lado de fora do estádio adjacente ao círculo de tráfego, e estava escuro como breu. As equipes Delta estavam dentro do alvo, um edifício a dois quarteirões de distância. Os apoios MH-60 "little bird" com canhões haviam sido afastados para evitar atrair fogo. Então, vindo de algum lugar, fomos experimentados com disparos de metralhadoras muito próximas - como de um lado para outro da rua. O SNA sabia onde estava a margem externa da nossa segurança, com base na observação de raids anteriores, e eles vieram directamente para nós. O fogo estava directamente diante de mim, e eu atirei com a metralhadora, disparando cerca de dez vezes com tratadores a fim de indicar o objectivo aos outros integrantes da equipa de defesa do nosso ponto forte. Os Rangers no ponto forte tinha metralhadoras calibre .50, lançadores automáticos de granadas MK-19 40 mm, e um conjunto de armas pequenas e eles perceberam o sinal das balas traçadoras, despejando um volume de munição atroz na parede do estádio. Então recebemos fogo da direcção oposta, outra vez de fora, e sem balas traçadoras, de modo que não podíamos nos orientar quanto à sua direcção. Quando os somalis atacaram um dos helicópteros com traçadoras, identificámos a sua posição e respondemos contra uma pequena estrutura numa colina baixa, enchendo a noite com um rio selvagem e em arco de traçadoras. Como se verificou, o fogo para dentro do estádio, que estava cheio de pessoas sem abrigo em andrajosas cabanas de panos, matou uns poucos civis além dos dois ou três que dispararam sobre nós, e o nosso fogo na colina fez um arco sobre Mogadíscio e foi despejado sobre uma castigada Sword Base dos EUA. Tivemos um par de feridos, e tive de segurar uma Chem-lite de luz verde nos dentes, uma experiência que dá cabo dos nervos, para fazer uma transfusão num deles. Quando voltámos ao aeroporto, encontrámos um buraco de bala calibre .50 na porta de um dos nossos veículos. Éramos os únicos ali a ter 50s.


De acordo com a Doutrina Powell nós, naturalmente, fizemos as coisas certas (embora pudéssemos ter impedido nossas baixas menores com bombardeamento em tapete, suponho). Respondemos com força esmagadora para assegurar protecção de forças. Também reagimos a um experimento e proporcionámos ao SNA um quadro ainda melhor do nosso padrão operacional.


Este raid foi considerado um êxito, porque empurrámos um par de lugares-tenente de Aidid para fora do objectivo primário. O impacto dos civis mortos nunca foi considerado. O perigo a que sujeitamos a Sword Base nunca foi considerado, nem a falha de coordenação. Mas nenhum comandante parou e disse: Hei, parece que eles adivinharam o nosso plano. Vamos mudá-lo.


Isto ocorreu em parte porque o êxito é medido tecnicamente, e só de um ponto de vista táctico, não político, da mesma forma pouco inteligente como no Vietname. A medida política e a crítica do sistema, em oposição aos problemas técnicos, estão ausentes. Eliminei uma ameaça com os tiros disparados pela metralhadora e suprimi quem quer que fosse que pudesse ter estado com ela. Recrutei 100 novos milícias entre os civis que eu (e o resto de nós) matámos e ferimos. E a nossa tecnologia, longe de proporcionar-nos uma vantagem, estava a tornar-se um perigo para nós próprios.


COMPLEXIDADE & VULNERABILIDADE


Há uma correlação entre a complexidade de um sistema e as suas vulnerabilidades. Recorde-se o Aeroporto de Atlanta. Recorde-se o World Trade Center e o Pentágono.


Em qualquer caso, as forças dos EUA continuarão a ser defrontadas com estes problemas porque todos os comandantes dos EUA estão poupando o seu pessoal, e nenhumas forças convencionais americanas em qualquer prazo no futuro previsível estará comprometida com a espécie de acção sustentada sobre o terreno aqui discutida. As Operações Especiais continuarão a enfatizar acções rápidas de ataque, baseada na surpresa, velocidade e violência da acção, a fim de minimizar sua exposição, e as tropas convencionais continuarão a refugiar-se dentro de posições cada vez mais endurecidas.


Primeiro, porque o responsável do Sistema de Administração de Pessoal entre os militares é alguém tão implacável e competitivo como em qualquer empresa, e responsáveis cautelosos ascendem, deixando apenas um pequeno punhado de lutadores no comando. Segundo, porque as forças americanas, mesmo as mais duras do núcleo, não podem sustentar longas operações no estrangeiro sem uma enorme cauda logística. Basicamente, eles são produtos de uma sociedade amimalhada e pasteurizada - e são muito frágeis. Pode-se colocar todos os músculos que se quiser no soldados americano, e um E-coli local derruba-lo-á como uma enorme árvores. Só água engarrafada para estes rapazes. Esta é uma contradição do imperialismo, uma espécie de darwinismo social invertido, o que é raramente discutido ou plenamente compreendido quanto às suas implicações.


Quatro ou cinco dias é o máximo que eles podem permanecer em campo sem que lhes sejam trazidos reabastecimentos por meio de helicópteros, expondo os aparelhos e as suas próprias posições. Isto significa que eles devem ter bases para retiradas entre missões. Assim, a maior parte das forças ágeis disponíveis nos EUA terão de trazer consigo uma instalação fixa.


O Relatório do Dia conseguiu descrever exactamente as dificuldades do comando e controlo da missão, o que ainda criou uma outra violação de um Princípio da Guerra: o da Unidade de Comando. Mas isto não influenciou o padrão operacional, que era da Delta; aprovado pelo próprio General Garrison (o comandante da Task Force). Melhor unidade de comando poderia ter acelerado os esforços de resgate para conseguir tirar a TFR da sua tempestade merda, mas não teria impedido aquilo de acontecer [9] .


Mesmo que a TFR tivesse perseverado numa rota de acção tacticamente mais saudável - continuadas operações no terreno contra Aidid - um êxito táctico contra o SNA apenas teria fortalecido uma ou mais das outras facções com ela aparentadas. O problema fundamental teria permanecido. Na ausência de acções a longo prazo e continuadas - com significativas baixas americanas - as forças não-indígenas (US/UN), bem alimentadas nas suas instalações fixas, permanecem um alvo estático, cedendo a iniciativa às forças mais flexíveis, móveis e variáveis que as rodeiam... sem sentimentalidades tão despropositadas acerca do risco de baixas.


As forças ocupantes na Somália estavam destinadas a sofrer danos. Aquelas no Afeganistão também. Ninguém pode prever como, mas nós podemos prever que isto acontecerá .


A AVENTURA NO AFEGANISTÃO


A semelhança chave entre o Afeganistão e a Somália é a falta de coerência política e a existência de múltiplas e bem armadas facções guerreiras. A gente de Bush sabe isso, e essa é a razão porque estão a fazer tão vãos e ridículos esforços para remendar alguma coisa junta que possa ser chamada de governo. Este é um boneco para eles, pois uma vez montado, serão os militares americanos que terão a responsabilidade final pela sua manutenção. Os turcos e outros estão a ser levados para lá a fim de suprir as fraquezas por enquanto, mas os EUA voltarão. As bases já foram construídas.


E isto exigirá um bocado de manutenção. A diferença crucial é que os EUA estão a conduzir operações no chão basicamente em áreas rurais, onde desfrutam de muitas vantagens tácticas. Na Somália, estavam concentrados dentro e em torno dos terrenos urbanos altamente perigosos de Mogadíscio. A outra fraqueza mencionada acima foi a de os EUA ficarem atolados pelo uso opções militares sendo estas um último recurso. Isto também constitui uma fraqueza sistémica.


Não há garantia de que a pequena ilha de tranquilidade em Kabul, onde os EUA e as forças aliadas mantêm a tranquilidade com grande custo e esforço, não se torne, como aconteceu em Mogadíscio, um ponto de convergência final e quase apocalíptico no fim de uma longa série de conflitos mutuamente destrutivos.


Os guarda-costas de Karzai não impediram (e podem ter sido cúmplices) o assassínio do seu vice-presidente Haji Abdul Qadir, e tiveram assim de ser substituídos pelas Forças Especiais, que anteriormente os haviam treinado. O residente lunático do Departamento da Defesa, Paul Wolfowitz, está a dizer à imprensa que os EUA têm de preparar-se para a próxima Guerra Fria. O encobrimento pelos EUA das fatais Forças Especiais que dirigiram um ataque de AC-130 a duas aldeias e uma festa de casamento, na província de Uruzgan, foi um caso à parte na imprensa internacional, pois os investigadores da ONU, conhecidos pela sua circunspecção, estão a chamar os porta-vozes dos EUA de mentirosos e apontam evidências de um encobrimento deliberado. Conversas de guerra civil emergiram dos senhores da guerra, do tadjique Ismail Khan em Herat, do tadjique Ustad Atta Mohammed em Mazar-i-Sharif; do usbeque Abdul Rashid Dostum em Mazar-i-Sharif, do pashtun Haji Abdul Qadir em Jalalabad, do pashtun Pacha Khan Zadran, de Paktika Hazara, de Karim Khalili, e do pashtun Gul Agha Sherzai de Kandahar.


Uma força indígena a combater uma invasor estrangeiro ou um Estado existente pode utilizar a acção militar como uma primeira opção, como um catalisador, como a peça central da sua luta política, porque não está a combater para reter controlo económico e político e sim para romper ou impedir aquele controlo por uma outra força. As acções militares são intrinsecamente melhores para criar a instabilidade do que a estabilidade. Qualquer um daqueles líderes, sós ou em combinação com outros, tem a capacidade para introduzir o desequilíbrio total na situação afegã.


A força militar dos EUA é um instrumento, e está subordinada à política externa que é antes de tudo sobre investimentos, ergo , estabilidade. O facto de estar a ser usada para tudo é geralmente uma indicação de que os EUA estão a ficar económica e politicamente encurralados. A Somália era uma atracção secundária que acabou por vir para o centro do palco por umas poucas semanas, e a seguir recuou outra vez. Os EUA sentiam-se relativamente seguros política e economicamente, e a Somália foi uma anomalia. Mas os EUA estão agora nos espasmos de uma crise política (mascarada por algum tempo pelo fervor chauvinista estimulado pelo 11 de Setembro), uma recessão nacional que está sincronizada com uma recessão global, o colapso da Argentina prenunciando uma crise generalizada na América Latina, a lenta implosão do Japão, guerra comercial com a Europa, e uma crescente maré de sentimento anti-americano por todo o mundo. Latente nestes turbulentos e tristes ventos está o potencial para a "Tempestade Perfeita".


Esta administração mordeu mais do que pode mastigar. Por estes sinais, as circunstâncias provavelmente não darão à administração Bush opções muito palatáveis.


Militarmente, eles muito simplesmente não podem conduzir operações militares com êxito simultaneamente no Afeganistão, no Balcãs, no Iraque, na Colômbia, etc, etc, etc. Se houver qualquer resistência real, elas quebrarão as finanças internas. A Argentina é um exemplo perfeito, tal como a Venezuela e o Brasil. Estas modernas sociedades urbanas que estão prestes a embarcar num caminho independente não são subjugáveis pelas forças militares dos EUA. Mesmo um país pobre e pequeno como o Haiti poderia tornar-se um atoleiro.


Esta é a razão porque os EUA estão a ressuscitar o velho grupo das operações cobertas, da Guerra Fria. Isto também fracassará. Se houve em algum momento um tempo propício para os povos de todo o mundo se rebelarem contra o diktat dos EUA, ele é exactamente este. Porque a titubeante e desesperada Administração Bush não seria capaz de manusear uma, duas... ou uma centena de Somálias. O maior dos riscos, naturalmente, que existe seja ele pensável ou não, é que Bush possa escutar Wolfowitz, o Dr. Strangelove da política americana, e considerar a utilização de armas nucleares tácticas a fim de reestruturar a geografia política do planeta.


Mas, como diz um provérbio haitiano, se você não disser bom dia ao diabo, ele comerá você. E se você disser bom dia ao diabo... ele também o comerá. Não há opção senão combater o imperialismo.


É DIFÍCIL SER ESPECIAL


Após este extenso prefácio, vamos ver mais de perto o que são as Operações Especiais e como se ajustam no actual paradigma militar. Em particular, vamos examinar as Forças Especiais, um subconjunto da comunidade das Operações Especiais dentro da instituição militar, que é a peça central das operações terrestres no Afeganistão. [10]


As Forças Especiais (habitualmente mencionadas, desde a canção chauvinista de Barry Sadler, como "Boinas Verdes") descende do Office of Strategic Services (OSS), um grupo aliado de operações cobertas organizado durante a Segunda Guerra Mundial. Na realidade actual, esta organização do Exército foi parida pelo Presidente John F. Kennedy para intervir no Vietname.


A derrota francesa em Dien Bien Phu, em 1954, anunciou o fim do colonialismo francês na Ásia e o princípio da intervenção americana na região. Por volta de 1961 isto incluiu a intervenção militar directas destes "conselheiros" das Forças Especiais, especialistas na nova doutrina da "contra-insurreição".


Os EUA tornaram-se o sustentáculo do corrupto governo sul vietnamita, assumindo o papel da França em 1956 e iniciando missões militares de aconselhamento através de uma organização ad hoc chamada US Military Assistance Advisor Group (MAAG). O MAAG identificou a necessidade de conselheiros especialmente treinados, e aquela unidade estava organizada em Fort Bragg, Carolina do Norte, construída sobre uma unidade experimental que tinha estado por ali desde 1952, chamada 10 th Special Forces Group, e comandada pelo antigo oficial OSS Aaron Banks, o qual posteriormente iria tornar-se um crítico agudo da Guerra do Vietname.


A história de Banks, que não vou pormenorizar aqui, aponta para o "problema" das Forças Especiais. Resumidamente, a simples fortaleza das Forças Especiais, sua capacidade para trabalhar autonomamente, imergir em outras culturas, e de ser constantemente chamada a exercer criatividade e engenho extremos, paradoxalmente é a grande contradição que elas trazem para dentro de umas forças armadas imperialistas. É-lhes pedido que conduzam operações nos ambientes mais "politicamente sensíveis", frequentemente em missões de profundo significado estratégico, mas para actuar assim eles devem pensar independentemente, observar cuidadosamente, e exercitar-se um bocado em termos de sensibilidade pessoal e cultura. Isto os expõe a influências subversivas.


Durante a Guerra Fria, a grande maioria dos responsáveis militares desconfiava das Forças Especiais (SF) e rejeitavam totalmente sua doutrina, a qual rejeitava a tomada de decisões de cima para baixo no campo de batalha, e muitas vez enfatizava conceitos desenvolvidos pelos partisans iuguslávos, pelos comunistas chineses e mesmo pelos escritos de Guevara sobre a guerra de guerrilhas, defendendo a agilidade táctica e a flexibilidade organizacional - um anátema para os comandantes das pesadas unidades mecanizadas em frente às igualmente pesadas forças convencionais da União Soviética na Europa. As SF eram encaradas, na melhor das hipóteses, como uma barraca de feira doutrinal, e na pior como um elemento perigosamente disruptivo dentro do Exército.


As SF, ao longo dos anos, realmente ganharam um orgulho perverso com o seu status de criança-problema, sua perene escassez de fundos, sua reputação de pessoas que esquecem cerimónias, demoram demasiado os intervalos entre os cortes de cabelo, usam uniformes amarrotados e não padronizados, e muitas vezes dirigem-se aos seus oficiais tratando-os pelos primeiros nomes. Seu nível individual de qualificação técnica em armas, comunicações, medicina, explosivos, construção, e pequenas unidades tácticas, contudo, eram sem paralelo no resto dos militares dos EUA, e foi-lhes exigidos que estudassem línguas estrangeiras. Entre militares que estavam a tornar-se cada vez mais padronizados, com cada soldado quase como peça intercambiável, os soldados das SF defendiam ferozmente o seu status como uma espécie de classe artesã nas cada vez mais taylorizadas forças armadas.


As Forças Especiais especializam-se - e especializaram-se desde o princípio - em trabalhar directamente com forças estrangeiras, e mesmo em comunidades civis estrangeiras.


Isto as diferencia da 1 st Special Forces Operational Detachment-Delta (Delta Force), uma unidade de acção directa concebida originalmente para corrigir as deficiências do "contra-terrorismo" identificadas após o fracassado raid no Irão em 1980 (mais abaixo fala-se disto). Isto também as diferencia dos Rangers, que são organizados como batalhões de infantaria de choque, e que são especialmente treinados para conduzir capturas de campos de pouso e para segurança auxiliar de operações Delta. A inclusão conjunta sob um único comando das Forças Especiais, dos Rangers, do 160 th Special Operations Aviation Regiment, do 1 st Special Operations Wing, etc, é problemática, como veremos.


Uma das qualificações chave enfatizadas em todo o treinamento das SF é o desenvolvimento de relações com "os indígenas". Consequentemente, um dos problemas mais comuns com as Forças Especiais tem sido o perigo de um operador das SF venha a "tornar-se nativo". Paradoxalmente, as SF tem sido caracterizada durante alguns anos, especialmente a partir da sua rápida expansão na última década e meia quando principiou a recrutar intensamente fora dos partidários da supremacia branca nos Batalhões Ranger, por sua cultura de racismo anti-negro (mais sobre isto abaixo).


A mistura de indivíduos nos destacamentos SF tem reflectido esta múltipla personalidade institucional. Simpatizantes do Klan entram em equipes com brancos casados com mulheres negras, latinas e asiáticas. Os chauvinistas estritos limitam os seus contactos com estrangeiros a relações profissionais nas missões, ao passo que outros gastam todo o tempo livre que dispõem longe da guarnição, comendo comida local, desfrutando a cultura local e flertando com mulheres locais. Os homófobos violentos nas equipas são por vezes provocados pelos membros da equipa que mexem as bebidas deles nos bares com os seus pénis.


O lançamento da operação Rice Bowl, o raid fracassado dentro do Irão em 1980, marcou uma nova ênfase nas operações de acção directa a longa distância (em oposição à contra-insurreição) pelas Forças Especiais, e o abjecto fracasso da missão real assinalou a necessidade de melhor coordenar as operações inter-serviços. Isto inaugurou uma série de novas estruturas administrativas e operacionais dentro das forças militares, chamada Operações Especiais, as quais acabaram por incluir Special Forces, Rangers, Seal Teams, Special Operations Aviation, Civil Affairs, e Psychological Operations. Esta reorganização deixou de levar em conta esta diferença chave entre as Forças Especiais (que antigamente tinham "assuntos civis" e "operações psicológicas" como parte da sua missão) como uma unidade que tinha de estabelecer relações e trabalhar directamente com comunidades indígenas, e as acções directas uniformizadas como as dos Deltas e dos Rangers. Ao obrigar estas duas metodologias anti-téticas a ficarem juntas sob o mesmo aparelho administrativo iria ampliar várias contradições.


Com a administração Reagan, as Operações Especiais ganharam uma importância acrescida na política externa dos EUA. O dinheiro jorrou para dentro das Operações Especiais. Fort Bragg tornou-se uma indústria em crescimento. A seguir a destruição do Bloco do Leste remodelou drasticamente o panorama geopolítico e militar. As Operações Especiais, outrora a criança-problema dos militares, agora tornava-se a peça central da doutrina em urgente desenvolvimento do pós-Guerra Fria. Finalmente, Henry Shelton, um ex-oficial das Forças Especiais (durante a sua estadia no Vietname), tornou-se o Presidente da Joint Chiefs of Staff. Menos de duas décadas antes, um oficial das SF jamais poderia esperar ir além dos posto de Coronel. Shelton arrombou o "tecto das SF" ao estabelecer-se em postos de pára-quedistas convencionais até as Operações Especiais tornarem-se um império privilegiado dentro da instituição militar, em consequência ele reemergiu como um dos poucos oficiais generais com alguma experiência em SF.


Mas grandes contradições começaram a aflorar. A fortaleza das SF fora o seu engenho característicos e a agilidade. Uma nova burocracia administrativa das Operações Especiais que estendia, camada sobre camada, tudo ao modo da Joint Chiefs, foi agora imposta às SF. E havia uma obrigação para expandir maciçamente o número das tropas, portanto reduzindo a "qualidade" global do operador individual (muitos soldados mais jovens entraram nas SF, e estes eram mais impetuosos e menos peritos em resolução de problemas práticos). Os simples elementos de flexibilidade e agilidade que haviam definido o valor característico das Forças Especiais foram atacados pelas necessidades administrativas - e correspondente fricção burocrática e padronização - de um comando muito mais vasto. As Forças Especiais, em face da feroz resistência dos operadores das SF, tinha de ser convencionalizada. O próprio Henry Shelton foi parte deste processo, e os seus antecedentes ambíguos que oscilaram entre Operações Especiais e Exército convencional adequavam-no a esta tarefa.


A expansão das SF criaram uma situação em que muitos soldados das Forças Especiais, demasiado jovens para terem sido "beneficiários" directos ou indirectos dos rigores do Vietname, os filhos da classe média branca dos fins da década de 70 e princípio da de 80, inabituados a longas, austeras e duras permanências no campo, muitas vezes auto-complacentes ao extremo quando entrados no serviço, estavam a entrar para as Forças Especiais pelo prestígio e pela atracção por uma espécie de estilo de vida macho, despreocupado e rebelde. Eles queriam cabelos compridos, a "boémia dos destacamentos" e as missões sexy, mas não queriam sofrer a dureza. As SF estavam a tornar-se a força prima donna com maior proporção de incompetentes e tagarelas.


Durante o meu período no Delta, entre 1982 e 1986, servi com um megalomaníaco de cinco pés e meio e com complexo de Napoleão chamado Danny Hobson - cujo título de glória era ter morto um invasor da sua casa com 14 anos por meio de uma pistola - e que era geralmente considerado na unidade como um pouco esquisito (é preciso considerar a composição da Delta para apreciar o significado desta avaliação). Como um ex-operador Delta, promovido a Sargento Mort, a trabalhar no Special Warfare Center (SWC) em Fort Bragg em 1988, ele vendeu-se aos SWC como o homem que tinha a solução para as "conspiração dos frouxos" nas SF.


Assim, ele implementou um novo Special Forces Assessment and Selection Course (SFAS) para todos os candidatos às SF, um "curso de tortura" brutalmente física de 30 dias baseado no modelo utilizado pelo Australian Special Air Service (as suas SF). Isto funcionou. Os frouxos foram extirpados, mas a maior parte do conjunto de soldados interessados e capazes de sobreviver nas SFAS eram Rangers - mais uma vez, a mais branca das unidades do Exército [11] .


No fim dos anos 80 as SF haviam-se expandido maciçamente. Com a expansão veio o dinheiro, e com o dinheiro veio equipamento. Montes de equipamento, especialmente gadgets. As SF, que no passado trabalhara com recursos inferiores ao resto do Exército, quando sargentos comuns tinham de teclar Código Morse em rádios antiquados e usavam arame farpado como antenas para aumentar o seu alcance, recebiam o estado-da-arte de todas as coisas. Satcoms com encriptação digital e saltador de frequência, barcos Zodiak com motores de 150 HP, pára-quedas de 9 células que podiam ser abertos em altitude e voar 40 quilómetros em direcção a um objectivo, telémetros laser, armas de franco-atirador de US$ 7000, uma vasta variedade de equipamentos de visão nocturna, e mais e mais. Com o tempo, como aconteceu nas cada vez mais tecnocêntricas forças armadas, os avanços tecnológicos tornaram-se dependência tecnológica, e uma doutrina das SF que fora centrada em habilitar homens acabou por ser recentrada no manejo de equipamento. As SF estavam agora a assumir todas as características dos militares convencionais dos EUA, e todas as suas fraquezas em consequência. Estavam a tornar-se mimados e começaram a perder a sua engenhosidade. A moral nas SF enfraqueceu na proporção directa do fortalecimento da tendência convencional. A corrupção, o racismo e a síndrome prima donna haviam-se tornado endémicas no momento em que o Bloco do Leste caiu. A reacção era mais disciplina de cima para baixo, o que mais uma vez asfixiava a iniciativa.


A instituição militar como um todo experimentou um desenvolvimento concorrente, que certo modo coincidiu com as tendências nas SF, e em alguns casos contrariava-a. É importante entender que a doutrina militar não se desenvolve num vácuo, mas é de diferentes maneiras influenciada pelos viéses da doutrina passada, teorias de ciência militar competidoras, rivalidade inter-serviços, proteccionismo burocrático, contratistas de armas e os seus representantes eleitos, as políticas de promoção para os níveis de comando mais elevados, e os viéses peculiares, opiniões, ilusões e desilusões dos membros da Autoridade de Comando Nacional (o Presidente, o secretário da Defesa e Conselheiro de Segurança Nacional).


Desta mistura de influências emergiram duas tendências dominantes dentro da instituição militar: a Doutrina Powell, e a dominância de pleno espectro (full-spectrum dominance, FSD).


Como foi descrito anteriormente, a Doutrina Powell lista entre as suas prioridades as relações públicas. Com a ênfase sobre as relações públicas há uma ênfase sobre a aparência dos soldados. Isto é um problema para as Special Forces.


"A regra da polidez podia por vidas em risco, afirmam soldados", lê-se num artigo de Ian Bruce no The Herald de 05/Junho/2002:



"O General Lugar-tenente Dan K McNeill, um combatente veterano do Vietname, do Golfo e do Panamá, chegou à sua sede na base aérea Bagram no fim da semana passada e já ordenou aos seus 12 mil soldados que se escovassem, usassem uniformes e equipamento padrão, e saudassem os oficiais quando se encontrassem com eles.


"Todo Exército do mundo abandona óbvios distintivos de posto e saudação numa zona de combate porque isto identifica os comandantes aos observadores inimigos e marca-os como alvos para franco-atiradores.


"Alguns oficiais agora recusam-se a responder às saudações, mas a reinstauração do protocolo militar foi estendida até mesmo às barracas das forças especiais - um acampamento de tendas relativamente anárquico no limiar da base que até agora tivera uma regra para si própria.


"Muitos dos soldados da Delta e dos Boinas Verdes na frente da guerra ostentam cabelos compridos, não fazem a barba e tem-lhes sido permitido usar combinações de coisas do kit GI e vestuários locais práticos e confortáveis para as suas perigosas missões por trás das linhas.


"Mesmo ali, um sinal em que até sábado se podia ler: "Esta é uma zona de não-saudação", foi removido e a padronização da aparência é para ser aplicada enquanto os homens conhecidos pelos seus colegas convencionais como "comedores de cobras" estiverem na base e em certa medida dentro dos olhos do público. O General McNeill, que efectuou 300 saltos de pára-quedas [Esta estatística, naturalmente, não tem qualquer significado pois todos aqueles saltos foram sobre zonas seguras de aterragem como aquelas no Fort Bragg - SG], ontem descartou os protestos pois organizou-se para o que provavelmente será a mais dura fase da guerra, arrancando e destruindo pequenos bolsões de combatentes do Al Qaeda e dos Taliban em fortalezas remotas nas montanhas".



A DOUTRINA DO DOMÍNIO DE PLENO ESPECTRO
(Full-Spectrum Dominance, FSD)


"Full-spectrum dominance" é a expressão chave na "Joint Vision 2020", o plano do Departamento da Defesa preparado na gestão de Henry Shelton. Full-spectrum dominance significa "a capacidade das forças dos EUA, a operarem sós ou com aliados, para derrotar qualquer adversário e controlar qualquer situação ao longo de toda a cadeia de operações militares". A frase utiliza a palavra "qualquer" duas vezes, tornando-a talvez a mais grandiosa alucinação da história militar americana, em contraste com a semiconsciente cautela inerente à Doutrina Powell. "Full spectrum" refere-se a três coisas: âmbito geográfico, nível de conflito e tecnologia. Trata-se de uma doutrina que implicitamente objectiva a dominação militar mundial, tendo em vista todas as coisas, desde tumultos de rua até a guerra termonuclear, acompanhada de um cheque em branco aos desenvolvedores de armas para um conjunto de dispositivos (gadgets) altamente (alguns diriam demasiadamente) refinados. Esta é a doutrina da devoção de Rumsfeld, e ele tem uma fé na mesma de cortar a respiração. Isto explica a sua selecção da mediocridade militar que é o General da Força Aérea Richard Meyers, que partilha a tecno-religiosidade de Rumsfeld como Presidente da Joint Chiefs.


É importante fazer uma distinção entre FSD e a extrema tecno-centricidade de Rumsfeld et al . Colin Powell, cuja "doutrina" própria pode acomodar-se e mesmo saudar um leque mais vasto de opções tácticas, ainda é um oficial militar treinado que pelo menos compreende os Princípios da Guerra, os quais, considerados em conjunto, enfatizam a liderança acima de todas as outras prioridades. Powell também é suficientemente realista para reconhecer a ilusão de "qualquer adversário". Rumsfeld e companhia parecem acreditar que a superioridade técnica é uma garantia de êxito militar, e que a força militar de certo modo sempre pode solucionar as subjacentes contradições económicas e militares. Powell, com todas as suas imperfeições, sabe isso melhor [12] .


Às Forças Especiais está a ser solicitado que preencham muitos dos vazios tácticos, vazios no "pleno espectro", no Afeganistão. Pede-se-lhe que faça coisas que ninguém mais pode fazer, porque elas são consideradas flexíveis, ágeis, aptas para línguas. Reconhecimento especial. Treinamento de milícias afegãs. Segurança para assuntos civis e operações psicológicas. Acção directa. Gendarmes. Espiões. Valentões. Guarda-costas.


A realidade é que poucos, se é que algum, fala os dialectos locais, contando com tradutores que são examinados quase sob o único critério da sua capacidade para falar inglês. A lista das tarefas para as quais os soldados das Forças Especiais estão a ser reconhecidos como aptos, agora descritas num "Manual do soldado das Forças Especiais" tal como se fossem instruções destinadas a um empregado da Macdonalds, são demasiado numerosas e frequentemente irrelevantes, numa situação que é culturalmente impenetrável para eles, e cambiante a todo momento.


Há poucas dúvidas neste momento de que eles estão a ser manipulados por várias facções. Vamos examinar um pouco mais detidamente o ataque a centenas de civis em Kakarak, Afeganistão, onde os militares americanos estão a efectuar investigação para determinar se os militares dos EUA fizeram algo errado [13] .


Os civis afegãos em Kakarak não foram "bombardeados". É uma distinção importante. Já foi confirmado que as Forças Especiais estavam a efectuar uma missão ali, e eles usam aviões AC-130 para apoio aéreo, não bombardeiros. O AC-130 é um aparelho propelido por turbinas e dotado de computadores, um avião de carga que dispara uma variedade de armas controladas por computador, a 5000 pés, numa órbita circular com uma inclinação de 30 graus a fim de que os armamentos enquadrados na porta estejam voltados DIRECTAMENTE para os alvos sobre o solo. Imagine um funil com o ponto sobre o alvo, e o avião a circular por cima ao longo da borda.


O avião transporta munições de fogo directo , não bombas. Trata-se de um sistema de armas de precisão . Aquilo não dispara algo como fogo "errante". Trabalhei com estes pássaros, e eles podem ser chamados para disparar sobre uma motocicleta a 50 jardas (45,7 m) de distância da posição "amiga". Elas não são disparada por um piloto de bombardeiro que está a "balouçar" num alvo que em grande parte é invisível. Elas são disparadas por um comandante do tanque de voo que sabe exactamente para o que está a disparar, com ajustamentos e confirmação acerca do "efeito sobre o alvo" do observador avançado das Forças Especiais que está no solo.


Kakarak foi atacada deliberadamente... ...tal como Khorum em Outubro - mais de 100 mortos, Moshkhil em Dezembro - 16 mortos, um comboio civil na Província de Paktia em Dezembro - 65 mortos, Qalaye Niaze em Dezembro - 52 mortos, inclusive 25 crianças, o raid de 12 de Maio das Forças Especiais sobre "a aldeia errada" em Kandahar, onde cinco foram assassinados directamente, inclusive um de 13 anos e outro de 15 anos de idade, e 32 pessoas "capturadas", o raid de 24 de Maio em Bandi Temur - dois mortos e 59 sequestrados, inclusive um homem de 100 anos que morreu de um tiro de rifle na cabeça e uma garota de 13 aos que caiu num poço quando fugia e afogou-se.


Das duas uma: ou há facções a utilizarem as forças dos EUA para ajustarem as suas contas, ou a CIA alinhou com uma certa facção e está a "pagar algumas contas".


Benvindo de volta a Mogadiscio.


Uma outra razão, não mencionada, para o emprego das Forças Especiais nas primeiras operações das SF desde o Vietname em que os planeadores militares aceitam que existe uma probabilidade (moderadamente alta) de combate no solo é a composição racial das SF.


Tanto Granada como a Somália surpreenderam os planeadores, que subestimaram as forças oponentes e empregaram tácticas loucamente arrogantes e, em ambos os casos, a luta mais árdua ficou, mais uma vez, com as tropas das Operações Especiais, mas não com as SF. O Panamá e o Iraque foram as expressões finais da Doutrina Powell, com força esmagadora, severo afastamento dos media, pequena probabilidade de combate intenso no solo e, mesmo assim, as missões de maior risco foram reservadas aos Delta, aos Rangers, e aos Seal Team Six - unidades com muito poucos operadores negros [14] .


Unidades convencionais com mais de 30% de tropas afro-americanas colocam um problema, se a história dá lições. Quando grande número de tropas negras vão à guerra pelo Tio Sam, elas retornam a casa com expectativas e atitudes. Pedir a alguém para se arriscar ao supremo sacrifício por uma sociedade em que ela senta que é de um povo colonizado tem um efeito galvanizador sobre as consciências [15] .


Estas duas tendências doutrinárias, a Doutrina Powell e o Domínio de Pleno Espectro, estão a ser empregues, numa certa medida, no Afeganistão. O controlo do media e bombardeios indiscriminados de alta altitude são padrões da Doutrina Powell. Verifica-se a tentativa de coordenar a massa de baixas tácticas (estrangeiras) da Doutrina Powell com as tropas de Operações Especiais empregues em vários estilos de conflito de baixa intensidade no solo. Ambas são doutrinas míopes pelos seus próprios méritos, mas são absolutamente incompatíveis quando empregadas em conjunto, quando uma parte significativa daquele "espectro pleno" é trabalho das Forças Especiais.


A tentativa de combinar destruição maciça de vidas e de propriedade, com bombardeamento em tapete a alta altitude, com a construção de relações e de cooperação militar entre a população foi tentada outrora pelos EUA, no Vietname. E a tentativa de coexistir como uma força militar (estrangeira) num meio de combate sem Estado, com senhores da guerra com base étnica e de clã e a romperem alianças a cada mudança dos ventos políticos também foi tentada antes pelos EUA, na Somália.


Enquanto as Operações Especiais foram desenvolvidas utilizando modelos não convencionais bem sucedidos e de movimentos de guerrilha, o registo das Operações Especiais dos EUA tem sido horrendos. Os pontos altos das Operações Especiais, o raid Son Tay, a operação Rice Bowl, a invasão de Granada, a Task Force Ranger, foram todos fracassos. As tácticas desenvolvidas pelas forças insurrectas são adequadas para uma tarefa política insurreccional, mas não se enquadram bem com uma missão imperialista.


"Na contradição jaz a esperança", dizia Berthold Brecht. E podemos ter esperança.


Até à data, o Afeganistão tem sido um absoluto fracasso militar. Toda a fonte independente disponível (a imprensa empresarial dos EUA não é nem remotamente independente) confirma isto. O Génio do Mal não foi capturado ou morto. Os Taliban simplesmente ficaram no terreno no Afeganistão e no Paquistão à espera de que os EUA fiquem profundamente submersos no pântano que avança. A colheita da papoula será a melhor da década. O próprio Paquistão ficou desestabilizado a ponto de arriscar-se a uma guerra nuclear com o seu vizinho, a Índia. As facilidades para o possível pipeline ainda não podem ser asseguradas. E os danos colaterais infligidos pelos bombardeamentos e má inteligência, combinados com o apoio ao corrupto e inepto regime de Karzai, vira segmentos cada vez mais vastos da população contra os americanos a cada dia que passa. O Exército turco, bem conhecido na Turquia pela sua brutalidade, pode cuidar disso por algum tempo com a sua habitual autoconfiança, até alienar e enfurecer as várias facções por todo o Afeganistão. Nessa altura os EUA terão de intervir outra vez com operações no terreno.


Quem está apanhado no meio disto? As Forças Especiais. Apanhadas entre bombardear e construir relações. Apanhadas entre as expectativas de combatentes não convencionais e os meninos bonitos do regime. Apanhadas entre os pronunciamentos oficiais acerca da guerra e o seu próprio e íntimo contacto com as realidades do Afeganistão. E apanhadas entre o imperativo de mostrar ao público alguma acção e a total incompreensibilidade das missões que estão a ser montadas, tal como a perigosa e afinal das contas despropositada Operação Anaconda.


Agora as forças das Operações Especiais estão a ser consideradas, se acreditarmos nas "fugas", para uma invasão de Bagdade. A centralidade das Forças Especiais na actual doutrina e o aparentemente insaciável desejo de guerra da administração Bush, tal como o sistema queima a sua própria base material, logo levará à ultrapassagem da capacidade das forças das Operações Especiais. Não se trata apenas de uma questão logística, é uma questão moral.


Quando planeadores militares avaliam a "situação inimiga", levam em conta cinco categorias materiais: dimensão, localização, composição, disposição e força. Mas incluída naquela avaliação está uma sexta categoria. Moral. É algo difícil de quantificar e operacionalizar, como diriam os positivistas. E ela não se correlaciona bem com bem-estar material. Vi os soldados de um Destacamento, altamente bem aprovisionado e bem cuidado, tornarem-se adolescentes aparvalhados, e vi tropas em condições austeras prolongadas e exaustivas imbuídas de um feroz espírito de combate. Considere as condições do NLA no Vietname ou dos revolucionários cubanos, cuja moral raramente enfraqueceu.


Tropas expostas a combate real reagem de diferentes maneiras. Algumas desenvolvem a "Post Traumatic Stress Disorder". Algumas parecem adaptar-se muito bem, e a seguir readaptar-se a situações de não-combate. Algumas tornam-se homicidas sádicas, embebedas com o poder de vida e morte em relação aos outros. Algumas perdem o sentido de finalidade e tornam-se suicidas. O recente dilúvio de assassinato de esposas e de assassinos-suicidas entre operadores das Forças Especiais que retornam do Afeganistão está a dizer-nos algo.


Algumas tornam-se críticas.


As tropas das Forças Especiais geralmente começam as suas carreiras militares em busca de algum ideal másculo. Elas são geralmente apolíticas. Poucas apresentarão em público as suas dúvidas ou os seus sentimentos quanto ao que fazem para viver. Trata-se, apesar de tudo, de um emprego muito prestigiante. Assim, muitos são capazes apenas de dizer, aquilo foi uma "cabra fudida" (linguagem das SF para uma situação irremediável), e continuam adiante com as suas vidas. Mas muitos também são inteligentes, pessoas mesmo sensíveis, que sofrem as cicatrizes da dissonância cognitiva. O Afeganistão será um fardo para toda a vida para alguns deles, e não será de surpreender quando entre as primeiras histórias de divergências e aversão que surgirem directamente dos militares ali, algumas venham dos operadores das Forças Especiais.


A moral em casa também é um facto, e como os dirigentes americanos de facto continuam a reconstruir o mundo a força de armas, os custos económicos, e a seguir os custos sociais, reacenderão a crise política que foi temporariamente sufocada pela explosão chauvinista do 11 de Setembro. Mas a história oficial está a ficar cada vez mais difícil de ser sustentada. Ela ainda persiste só devido à grande paixão americana, a negação. Mesmo que não possa perdurar para sempre. E quando isto acontecer, esta administração pode acrescentar uma crise de legitimidade à sua extensa listas de desgraças. Talvez esta crise, no fim das contas, seja a sua ruína.


A legitimidade pode ser a chave para o poder na conjuntura que se aproxima, pois os benefícios materiais do imperialismo para a classe operária das metrópoles são liquidados com a contra-revolução que veio de cima.



30/Jul/02



NOTAS


[1] O filme de Ridley Scott recebeu a cooperação sem precedentes do Departamento da Defesa da administração Bush, ao ponto de por em contacto artistas e equipas de filmagem com unidades militares top secret , permitindo-lhes observar e praticar tácticas e técnicas que são classificadas, e permitindo aos militares exercerem o poder de veto sobre virtualmente todos os aspectos do filme. A combinação bizarra de colaboração directa entre Hollywood e o Departamento da Defesa e a privatização-mercantilização da propaganda oficial é um reflexo do estado de degeneração desesperadora desta época e da sua elite política.


[2] Esta expressão exige clarificação. Tem sido sujeita a muitos usos e abusos durante anos. A palavra em si própria designava muitos homens de palha. Neste contexto, entretanto, significa que aderi a uma metodologia interpretativa que toma o materialismo dialéctico como o seu axioma filosófico e o materialismo histórico como a aplicação do MD a questões de desenvolvimento social. Isto não implica, e de facto rejeita, a conversão de algumas versões do "marxismo" numa doutrina quase-religiosa, completa com profetas infalíveis e textos sagrados, nem isto implica o endosso ou a rejeição em conjunto das práticas, incluindo o exercício do poder estatal, por marxistas no passado ou no presente. O marxismo, tanto como método crítico como prática política, está ainda em evolução, e este ensaio pretende ser uma pequena contribuição para essa evolução.


[3] É argumentável que Hartsfield seja realmente o aeroporto mais ocupado do mundo.


[4] E que agora exerce uma poderosa influência perturbadora sobre os dirigentes políticos, que realmente excedem os militares em mediocridade intelectual.


[5] Cobriremos a Doutrina Powel em maior pormenor mais abaixo.


[6] Tais espécies de argumentos assumem que todas as variáveis são independentes, quando o oposto é que é verdadeiro. Se o "inimigo" neste caso tivesse observado blindagem pesado na Task Force, suas tácticas teriam sido alteradas em conformidade. Se o ambiente da inteligência tivesse sido diferente, então o que observou teria sido diferente. Esta espécie de pensamento superficial e falacioso encontra-se a todo momento entre o corpo de oficiais da instituição militar americana.



[7] O autor também participou na operação Uphold Democracy (no Haiti), um ano após a catastrófica solução da operação Restaurar a Esperança (na Somália), e ele apresenta uma crítica abrangente das Forças Especiais e dos militares americanos no seu livro "Sonho odioso: Memórias de um soldado da invasão americana do Haiti" (Hideous Dream: A Soldier's Memoir of the US Invasion of Haiti) (Soft Skul Press, 2000). A esperança não foi restaurada na Somália. A democracia não foi confirmada no Haiti.


[8] "Proporcionalidade" é a ideia de que a acção militar é proporcional à necessidade. Como um Princípio da Guerra, isto é chamada Economia de Força, e é pregado nos púlpitos das academias de serviço, como West Point onde ensinei Ciência Militar durante três semestres. Mas quando os civis são culpados, utilizando a retro-projecção das "variáveis independentes" citadas anteriormente, "proporcionalidade" é transformada em heresia civil que subverte os êxitos militares. Por outras palavras, Powell acredita que a derrota no Vietname era uma consequência, em parte, da falta de vontade para escalar para quaisquer meios necessários, incluindo as armas nucleares.


[9] O Relatório do Dia também retracta com precisão o absurdo de empregar uma equipa de agentes brancos da CIA para reunir inteligência humana numa nação negra como a Somália.


[10] Ter em mente que no momento em que ler isto aquela operação ter-se-á estendido. As SF são agora activas nas Filipinas e na Colômbia.


[11] Os soldados negros não têm estado muito interessado nos programas de selecção do Exército que enfatizam o abuso e a humilhação. Para muitos soldados brancos, isto é percebido como uma espécie de rito de passagem dentro da fraternidade. Os negros também são extirpados das Forças Especiais e dos Rangers pelos racistas que efectuam avaliações subjectivas durante os cursos e fases de treinamento e selecção.


[12] O dilema, se for mesmo reconhecível pela mediana inteligência de George W. Bush e Donald Rumsfeld, é que esta doutrina tecnocentrica intensamente complexificada é agora a pedra de toque de toda uma geopolítica estratégica com o singular objectivo de impor ordem numa altamente instável (por si própria) situação mundial. O potencial sistémico para a entropia significa que alguma coisa inevitável, e imprevisível, romperá o sistema e criará "a cascata de desordens". Recorde-se o aeroporto de Atlanta. Recorde-se o 11 de Setembro.


[13] Uma das coisas mais importantes que posso salientar, como veterano por mais de duas décadas na instituição militar, é que o Departamento da Defesa é uma burocracia. Isto coloca as coisas em perspectiva. As burocracias são intrinsecamente incapazes de admitir pecados. O ABC dos burocratas é CYA. O que está a acontecer aqui é encobrimento.


[14] Se algum. Não sei ao certo agora. Quando estive na Delta, havia dois operadores negros durante um período de quase quatro anos. Na Seal Team 6, com quem por vezes trabalhávamos, nunca vi um único operador negro, e eles referiam-se abertamente à sua defesa de 36 horas da mansão do Governador de Granada, depois de serem apanhados ali, como um "tiro de negro..."


[15] Latinos e ilhéus do Pacífico, contudo, são muito comuns nas SF, e o rito social de passagem para dentro destas unidades de "arianos honorários" é a negrofobia. O viés anti-negro entre estes grupo dentro das SF é muitas vezes feroz.


[NT] Rube Goldberg foi um artista, inventor, engenheiro, escritor e escultor norte-americano. Ele é mais conhecido pelos seus desenhos cómicos de inovações e invenções malucas. O seu trabalho artístico foi publicado em jornais de todos os Estados Unidos durante décadas, até os anos 60. Hoje a expressão Rube Goldberg é utilizada para designar qualquer coisa que seja construída de uma forma excessivamente complicada ou mediante um procedimento contrário ao habitual.


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[*] Ex-sargento-mor do Exército dos EUA. Publicado em português com a autorização do autor. Tradução de J. Figueiredo.



Tradução de: resistir.info
Site do autor: http://stangoff.com


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