12 maio, 2013

Cotas e Visão de Classe

Cotas, Bolsas, Honestidade

Elio Gaspari



Brava Gente. Dados do Bolsa Família e da política de cotas ensinam o andar de cima a olhar direito para o de baixo .


 Atribui-se ao professor San Tiago Dantas (1911-1964) uma frase segundo a qual "a Índia tem  uma grande elite e um povo de bosta, o Brasil tem um grande povo e uma elite de bosta". Nas últimas semanas divulgaram-se duas estatísticas que ilustram o qualificativo que ele deu ao seu povo.

 A primeira, revelada pelo repórter Demétrio Weber: Em uma década, o programa Bolsa Família  beneficiou 50 milhões de brasileiros que vivem em 13,8 milhões de domicílios com renda inferior a R$ 140 mensais por pessoa. Nesse período, 1,69 milhão de famílias dispensaram espontaneamente o benefício de pelo menos R$ 31 mensais. Isso aconteceu porque passaram a ganhar mais, porque diminuiu o número da familiares, ou sabe-se lá por qual motivo. O fato é que de cada 100 famílias amparadas, 12 foram à prefeitura e informaram que não precisavam mais do dinheiro.

 A ideia segundo a qual pobre quer moleza deriva de uma má opinião que se tem dele. É a demofobia. Quando o andar de cima vai ao BNDES pegar dinheiro a juros camaradas, estimula o progresso. Quando o de baixo vai ao varejão comprar forno de micro-ondas a juros de mercado, estimula a inadimplência.

 Há fraudes no Bolsa Família? Sem dúvida, mas 12% de devoluções voluntárias de cheques da Viúva é um índice capaz de lustrar qualquer sociedade. Isso numa terra onde estima-se que a sonegação de impostos chegue a R$ 261 bilhões, ou 9% do PIB. O Bolsa Família custa R$ 21 bilhões, ou 0,49% do produto interno.

 A segunda estatística foi revelada pela repórter Érica Fraga: um estudo dos pesquisadores Fábio Waltenberg e Márcia de Carvalho, da Universidade Federal Fluminense, mostrou que num universo de 168 mil alunos que concluíram treze cursos em 2008, as notas dos jovens beneficiados pela política de cotas ficaram, na média, 10% abaixo daquelas obtidas pelos não cotistas. Ou seja, o não cotista terminou o curso com 6 e o outro, com 5,4. Atire a primeira pedra quem acha que seu filho fracassou porque foi aprovado com uma nota 10% inferior à da média da turma. Olhando-se para o desempenho de 2008 de todos os alunos de quatro cursos de engenharia de grandes universidades públicas, encontra-se uma variação de 8% entre a primeira e a quarta.

 Para uma política demonizada como um fator de diluição do mérito no ensino universitário, esse resultado comprova seu êxito. Sobretudo porque dava-se de barato que muitos cotistas sequer conseguiriam se diplomar. Pior: abandonariam os cursos. Outra pesquisa apurou que a evasão dos cotistas é inferior à dos não cotistas. Segundo o MEC, nos números do desempenho de 2011, não existe diferença estatística na evasão e a distância do desempenho caiu para 3%. Nesse caso, um jovem diplomou-se com 6 e o outro, com 5,7, mas deixa pra lá.

As cotas estimulariam o ódio racial. Dez anos depois, ele continua onde sempre esteve. Assim como a abolição da escravatura levaria os negros ao ócio e ao vício, o Bolsa Família levaria os pobres à vadiagem e à dependência. Não aconteceu nem uma coisa nem outra.

Admita-se que a frase atribuída a San Tiago Dantas seja apócrifa. Em 1985, Tancredo Neves morreu sem fazer seu memorável discurso de posse. Vale lembrá-lo: "Nosso progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do que à consciência das elites. Elas, quase sempre, foram empurradas".


NOSSO GUIA

 Em março passado, a doutora Dilma tomou um chá de cadeira de mais de uma hora em Durban, quando o presidente da África do Sul, Jacob Zuma, deixou-a esperando porque continuava reunido com o presidente russo Vladimir Putin. Com toda a razão, Dilma deixou a sala onde estava, no andar de cima, e voltou ao seu hotel.

Na quinta-feira, em Brasília, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, deu-lhe outro chá de cadeira. Ela esperou por 1h40min pelo visitante, que estava reunido com Lula na embaixada da Venezuela. Desta vez, a doutora esperou. Novamente, fez bem, pois era a dona da casa. Nosso Guia não deveria submeter os outros a esse tipo de demonstração de poder.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/108531-brava-gente-a-brasileira.shtml

Alckmin, a guilhotina e os ratos

"O povo não sabe de um décimo do que se passa contra ele. (...) Senão, ia faltar guilhotina para  a Bastilha, para cortar a cabeça de tanta gente que explora esse sofrido povo brasileiro." Quem disse isso foi o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Noves fora o fato de a prisão da Bastilha ter sido derrubada em 1789, antes da instalação da guilhotina numa praça de Paris (1792), sua afirmação engrandece-o, até porque tem dez anos de sabedoria acumulada no cargo.

Ele sabe. Deveria contar mais, mas pelo menos estimulou o debate.

 Alckmin levantou o fantasma da guilhotina três dias depois de o professor João Sayad, ex-ministro do Planejamento, ex-diretor do Banco Interamericano do Desenvolvimento e atual presidente da TV Cultura, uma emissora do governo paulista, ter publicado o artigo intitulado "Taxonomia dos ratos". Nele, Sayad propõe uma classificação dos larápios. Num grupo ficariam os roedores do "rouba mas faz" No outro, aqueles que mordem aos poucos, o tempo todo. É a turma da "corrupção pequena". Ela "contrata parentes, compra papel higiênico superfaturado, orienta a criação de empresas de fachada para prestarem serviços, cria cooperativas para pagar funcionários terceirizados, faz acordo de 'kick back' com os fornecedores e, principalmente, avacalha, paralisa, lasseia e termina por matar a organização que administra."

 Alckmin poderia perguntar se ele falou em tese ou se, como presidente da TV Cultura, sabe de algo que o governador de São Paulo deveria saber. Como disse Sayad, para os ratos, "o segredo e a confidencialidade passam a ser as regras da organização".

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/108531-brava-gente-a-brasileira.shtml

02 abril, 2013

Mídia define o debate


O leitor que me fez mudar de ideia

publicado em 1 de abril de 2013 às 12:46



por Luiz Carlos Azenha

A ideia de puxar o plug e simplesmente deslogar o Viomundo, depois de mais de 10 anos de existência, foi pessoal, familiar e amadurecida ao longo do tempo. Confesso: me emocionei com a tremenda onda de solidariedade de todos vocês nas redes sociais, que surpreendeu mesmo os meus melhores amigos. Minha mãe, de 88 anos de idade, recém-recuperada de uma operação de cataratas e, portanto, testando a nova capacidade visual no computador, riu muito de uma foto inventada pelo Gerson Carneiro, ainda que não tenha entendido muito bem o motivo de todo aquele fuzuê: estava muito mais interessada no programa da Fátima.

Em minha participação no I Encontro Nacional de Blogueiros, fiz duas observações em meu discurso: revelei minha antipatia à ideia de depender de governos, que mudam de opinião e de prioridades ao longo do tempo e que, frequentemente, acreditam que o dinheiro do Estado, que deveria ser investido em políticas públicas de longo prazo — por exemplo, na promoção da diversidade cultural e pluralidade de ideias — lhe pertence, quando este dinheiro é, evidentemente, público. Propus, na ocasião, uma cooperativa de blogueiros que vendesse clics coletivamente no mercado.

Meu segundo ponto: a crítica da mídia estava desgastada, como se fosse um pensamento único de esquerda, e era preciso gerar pauta e conteúdo próprios.

Explico: o grande poder da mídia corporativa no Brasil é o de definir a agenda do debate político. O tal consórcio midiático é formador de consensos: haverá um apagão que provará a incompetência geral do governo trabalhista, as filas de navios significam que é preciso privatizar os portos, a Petrobras é um fracasso e precisa ser “reestatizada” (isso do povo da Petrobrax, dos que faliram a indústria naval e que defendem a terceirização) e o mensalão foi o maior escândalo da História da República que merece um replay de 18 minutos no Jornal Nacional às vésperas da eleição municipal de São Paulo.

Embora não sejam mais completamente reféns da pauta da direita, os meios progressistas ainda subsistem dentro de um espaço de debate cujos marcadores são definidos pela grande mídia. Se o telejornal de maior audiência do Brasil tivesse dedicado uma boa parte de seus recursos e competência editorial aos incêndios nas favelas paulistanas, por exemplo, durante o governo do ex-prefeito Gilberto Kassab, é provável que um grupo muito maior de brasileiros se interessasse pelo assunto, cobrasse explicações e, lá no fim, seria levado pelo menos a especular se alguns episódios foram intencionais, obedecendo à politica de expulsar os pobres que tão bem serve à especulação imobiliária.

Nada disso aconteceu, obviamente e nenhum meio de esquerda que conheço detém os meios financeiros para bancar uma investigação de longo prazo sobre o assunto.

Portanto, voltamos à questão financeira e, apesar das generosas ofertas de ajuda que recebemos nas últimas horas, é óbvio que elas não resolvem os problemas de fundo, que são os que nos interessam. A ação que Ali Kamel venceu, apenas na primeira instância, nunca foi a questão central, mas sim a incapacidade de enfrentar a ofensiva da direita sem as mais simples ferramentas para fazê-lo.

Como tocar um blog que não aceita patrocínios de governos, empresas públicas ou estatais — uma decisão tomada porque esperamos que Globo, Veja, Folha e Estadão nos sigam — e ainda assim tenha capacidade de debater políticas públicas de forma relevante, sem apenas reproduzir opinionismo político? Acreditamos que o Estado deva adotar políticas que incentivem a diversidade e a pluralidade, conforme previsto na Constituição. Que combata a propriedade cruzada. Acreditamos que o Parlamento deve cuidar do Direito de Resposta, uma forma de evitar a judicialização que leva desiguais para se enfrentarem num campo em que prevalece o poder econômico — dos advogados e lobistas.

Isso se agrava pela nossa leitura da conjuntura internacional, que continua muito negativa: depois dos baques de Wall Street e do euro, o neoliberalismo se reorganiza num poderoso tripé: na indústria financeira, que pendurou e continua pendurando a conta nas costas dos direitos sociais, na crescente influência do dinheiro no processo político — basta ver a decisão da Suprema Corte Americana que permite às corporações doarem a campanhas como se fossem ‘indivíduos’, de forma ilimitada — e, acima de tudo, em uma mídia oligopolizada, de discurso quase unificado, que acima de tudo defende seus interesses econômicos associados ao neoliberalismo. Quando foi o último trabalho de fôlego da imprensa paulistana sobre o adensamento da cidade, se saem todos aqueles anúncios da Abyara nas edições de domingo?

Com as grandes corporações de mídia, vivemos uma espécie de Gulag ao contrário: nosso corpo está livre, mas nosso pensamento frequentemente é prisioneiro de uma pauta que não nos interessa e, mais que isso, desconhece o interesse público, precariza as relações de trabalho e concentra ainda mais o capital na mão de poucos.

A contra-ofensiva neoliberal está em andamento, acreditem: pelo urânio do Mali, pelo petróleo da Líbia, pelas reservas do Orinoco na Venezuela, pelo gás boliviano, pelo pré-sal brasileiro. O neo-imperialismo não obedece apenas às regras clássicas, de conquista militar. Associado a interesses nacionais, ele faz lobby no Congresso, compra bancadas e trabalha silenciosamente nos bastidores. No Brasil, a mídia corporativa, concentrada em níveis inéditos, é uma espécie de aríete, capaz de arrombar a porta e implantar ministros-lobistas num governo do Partido dos Trabalhadores!

Sempre perspicaz, o senador Roberto Requião revelou o que está por trás da “falência” da Petrobras, por exemplo.

Estamos entregues às grandes corporações, que implantam vastas extensões de eucalipto, criam empregos de alta qualidade em seus países de origem, agregam valor à terra e ao sol brasileiros, exportam água embutida em seus produtos e nos deixam com os danos ambientais. Vale o mesmo para o agronegócio.

Estamos entregues em Carajás, com o fenomenal trem que arranca o minério num ritmo que não obedece a prioridades brasileiras, mas às necessidades de lucro da associação entre o grande capital internacional e o trabalho escravo chinês, que produz as bugigangas posteriormente exportadas para os Estados Unidos, via Wal Mart, para entre outros motivos manter baixa a inflação e dar à classe média local a sensação de que ela consome, logo existe!

Como se diz no Amapá, foi o manganês da Serra do Navio que financiou o Plano Marshall!

Estamos entregues na transformação dos rios amazônicos em fontes de energia para as grandes mineradoras; Tucuruí nasceu do interesse do Japão de se livrar de suas indústrias eletrointensivas e poluentes. O Brasil fica com o trabalho sujo, enquanto eles desenvolvem alta tecnologia e os empregos do futuro em solo japonês.

Nada disso é discutido com profundidade em nossa grande mídia.

Nosso único recurso — o daqueles que pretendem discutir questões essenciais ao futuro do Brasil sem o cabresto da mídia — é a solidariedade humana, que foi o que vocês demonstraram com profundidade nas últimas horas. Recentemente, li na revista Economist — de todos os lugares! — uma pesquisa sobre a necessidade que as pessoas têm de de sentirem úteis ao mundo, de deixarem sua contribuição, de acreditarem que fazem a diferença. Obviamente o viés da revista servia às grandes empresas, já que as estimulava a incentivar os empregados a se engajarem em ações filantrópicas. O altruísmo de funcionários utilizado para valorizar a marca!

Mas a solidariedade genuína, idealista e altruísta de todos vocês finalmente me convenceu. A mensagem decisiva veio do João Carlos Cassiano Ribeiro, que não conheço pessoalmente, via Facebook. Diz:

Boa noite!!!!
Não sei se o Azenha vai ler isto, mas gostaria que servisse de incentivo.
A um bom tempo me acostumei a ler blogs e abandonar jornais escritos.
Quando aconteceu o primeiro blog que conheci foi o Viomundo, desde então aprendi a conhecer o mundo pelo seu site.
Gosto dos colaboradores e fotos das reportagens históricas feitas pelo jornalista.
Hoje acordei incomodado com o papel que a tv e o CQC exercem na nossa vida. Passei o dia incomodado com o baixo nível intelectual da tv e o comportamento fascista que noto nela.
Até imaginei que se fosse eu no lugar do Genoino ou do Clodovil durante a agressão a que Pânico e CQC os submeteram, acho que não suportaria.
Ser humilhado em frente a tv toda semana, não sei se aguentaria.
Fiquei feliz ao ver seu post sobre seu pai, imaginei que os fascistas passarão mas os bons permanecem sempre. Foi um sopro de alegria na minha tristeza.
Como já havia acontecido em outras oportunidades com o Viomundo, resgatei um pouco da dignidade e do respeito ao ser humano, voltei a acreditar na capacidade criativa e na solidariedade humana.
Respeito sua decisão e compreendo sua necessidade, mas me sinto um pouco órfão com o fim do Viomundo e triste em ver o jornalista abandonando uma das frentes de trabalho por força da opressão.
Choro ao escrever essas palavras pois sei que perdemos um espaço vital para nossa luta. Não sou colaborador e nem costumo interagir com o blog, sou um leitor anônimo e aprendi a observar o seu blog como um filho observa o pai e aprende e se orgulha de estar por perto.
Nossa luta não é partidária ou governamental é pelos mais fracos e pela dignidade humana.
Sempre o terei como amigo sem nem o conhecer, pois me orgulho dos meus amigos e me orgulho muito de você!
Obrigado por ter tido no Viomundo os melhores exemplos de humanidade e um espaço em que sempre me senti à vontade.

Achei muito bacana ver que um trabalho coletivo como o nosso, organizado por poucos mas que afeta muitos, ainda que precário e improvisado, seja capaz de tocar desta forma uma pessoa.

Assim sendo, depois de longas horas de conversa com a Conceição Lemes e o Leandro Guedes, pensamos num jeito de refundar o site (com o nome provisório de, rsrsrs, Democratas).

Uma consulta ao Comitê Central, sempre munidos dos tomos leninistas, nos levou a decidir:

1. Conceição Lemes (conceicaolemes@uol.com.br) se torna a editora-chefe do site, encarregada também da relação com nossos 40 mil seguidores no twitter/facebook;

2. Leandro Guedes (leandro@cafeazul.com.br) adotará um mix de todas as sugestões que nos foram feitas por vocês sobre crowdfunding, além de perseguir eventuais patrocinadores que vocês nos sugerirem; o dinheiro arrecadado com o crowdfunding será todo reinvestido no site e não será utilizado para bancar advogados, dos quais já contamos com os competentíssimos Cesar Kloury, Idibal Pivetta, Airton Soares e um importante escritório de Brasília que ofereceu ajuda solidária.

3. Eu me afasto do compromisso diário de passar de 5 a 10 horas diante de um computador aprovando comentários, traduzindo e publicando textos. Torno-me um repórter voluntário e não remunerado, além de escrever os tradicionais comentários sobre mídia e política.

4. Passo a aceitar, sempre que compatível com minha agenda profissional, todos aqueles pedidos de entrevistas de estudantes, palestras em universidades e conferências, se possível associadas a oficinas sobre as redes sociais oferecidas pela Conceição Oliveira (blogmariafro@gmail.com), que entende tudo do ramo.

5. Acima de tudo, passo a me dedicar à área de minha especialidade, que é a produção de vídeos, mini-docs e docs.

Aqui, uma explicação se faz necessária. No modelo acertado com o Leandro Guedes, da Café Azul, que há meses já vinha estudando o assunto, os leitores poderão tanto indicar as pautas quanto aprovar nossas propostas.

Exemplo: o Gilberto Nascimento quer escrever uma investigação sobre o poder da Opus Dei no Brasil. Calcula o tempo que vai levar e a remuneração adequada, por valores de mercado, à tarefa. Colocamos uma espécie de contador para acompanhar o avanço da meta. As pautas financeiramente aprovadas serão feitas.

Outros exemplos hipotéticos: a Conceição Lemes quer ir a Minas Gerais investigar o choque de gestão dos governos Aécio/Anastasia.

Há mais de um interessado em fazer um mini-doc sobre o impacto da Globo nas eleições de 2006 e 2010.

Serão trabalhos jornalísticos, não de militância, sobre assuntos que a mídia corporativa brasileira simplesmente desconhece, por não se adequarem àquela pauta única a que me referi acima.

Eu, por exemplo, gostaria de investigar pessoalmente o massacre de Felisburgo, em Minas Gerais, até hoje impune.

O Lino Bocchini poderia ser convidado para fazer a Coleção Folha: Como Rose Nogueira ‘abandonou’ o emprego durante a ditadura.

A Beatriz Kusnir, se aceitasse, poderia fazer uma versão em vídeo do livro Cães de Guarda, aquele que narra o colaboracionismo da mídia brasileira com a ditadura militar.

O Amaury Ribeiro Jr. poderia ficar encarregado, à lá Andrew Jennings, de perseguir e exigir explicações dos privatas que andam por aí. Nosso Michael Moore.

Minha ênfase nos vídeos se deve ao fato de que, eventualmente, eles vão dominar a internet, à medida em que as conexões se acelerarem.

Finalmente, queremos aproveitar o imenso potencial de jornalistas — e quantos!!! — recentemente demitidos, que deixaram suas empresas com boas histórias para contar e projetos nunca realizados.

Quem sabe vocês nos ajudam a financiar o sonho destes colegas.

Portanto, depois de muito matutar, acreditamos ter chegado a uma proposta que permitirá ao Viomundo não morrer, mas renascer das cinzas.

Aguardem, que as mudanças serão implantadas lentamente, inclusive em todo o visual do site.http://www.viomundo.com.br/opiniao-do-blog/o-leitor-que-me-fez-mudar-de-ideia.html

27 janeiro, 2013

Crack - Abordagens diferentes





26 de janeiro de 2013 | 17h 16
Juliana Sayuri, de O Estado de S. Paulo


Uma overdose de polêmica tomou conta de São Paulo nos últimos dias por causa de medidas do programa de incentivo à internação de dependentes químicos, bancado pelo governo do Estado.


No meio desse caminho, tinha uma pedra: o crack. De um lado, viu-se o drama dos aprisionados pela droga e dos familiares desesperados por ajuda. De outro, muita controvérsia em torno da internação forçada - vista ou como política de saúde pública ou como "limpeza urbana" dos frequentadores das cracolândias.

Diante da complexidade da questão, o Aliás conversou com dois especialistas: os psiquiatras Dartiu Xavier da Silveira e Ana Cecília Marques, ambos professores da Unifesp. Eles têm opiniões divergentes e defendem posições a partir de sua experiência de campo. Em um ponto, porém, concordam: do jeito que está, a tragédia brasileira do crack não pode mais ficar.

Confira abaixo a entrevista com Dartiu Xavier da Silveira:

Comecemos pela internação compulsória para dependentes de crack: como o sr. analisa a medida?

O que se destaca negativamente, a meu ver, é esta medida ser proposta como o principal mote de uma política pública. Isso não faz sentido do ponto de vista médico. Internação compulsória deve ser uma situação de exceção, não de regra. Está até prevista em lei de 2001. Mas o governo paulista a divulgou como política pública nova, portanto generalizante. Não sou contra a internação compulsória. Sou contra a ideia da internação compulsória como uma medida generalizada. Tal tratamento funciona para apenas 2% dos pacientes internados contra a vontade. Já trabalhei na Europa e nos Estados Unidos com estudos e tratamentos para dependência química. No Brasil, fundei o Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes), o primeiro serviço gratuito para dependentes em São Paulo. Atualmente atendemos 700 consultas por mês. Desde 1993, lido com dependentes de crack. E, desde 1996, com populações de rua. Assim, sei que as internações involuntárias e compulsórias são indicadas para situações muito específicas, em que o indivíduo apresenta problema mental grave associado, como a psicose com delírio e alucinação, e o risco de suicídio. Fora isso, não.

O governo paulista diz que a internação compulsória mira só a ‘exceção da exceção’.

Não tem sentido. Se é para uma pequena minoria, como pode ser anunciada como mote da ação? O mote deveria ser uma atenção global, integrada e multidisciplinar ao problema. As populações de rua são privadas de tudo que se possa imaginar. Muitos indivíduos nunca foram institucionalizados, nunca tiveram família, nunca tiveram casa. Tenho uma história emblemática para lembrar. Uma menina de 13 anos que usava crack me dizia: "Tio, nem gosto do efeito da droga, não. Mas sabe o que é? Para poder comer, preciso me prostituir. E, para ter relação sexual com um adulto, preciso me drogar, senão não suporto a dor". E o que a gente quer fazer? Quer pegar uma menina dessas e jogar na internação compulsória? O problema dessa menina é muito maior que a droga. Há uma inversão de valores aí, um discurso sobre o crack que perverte as reais questões que estão acontecendo na cracolândia. A repressão deveria ser dirigida ao tráfico internacional, aos traficantes. E não ao menino de rua que usa crack.

Muitos criticam a ausência do Estado. Mas, agora que o Estado se posiciona, também é alvo de críticas.

Precisamos da intervenção do Estado. Mas no papel de agentes de saúde, para propiciar o cuidado necessário a essas pessoas. Não adianta dizer "vamos resolver a questão das drogas" e botar policiais na rua, em ações truculentas. Ainda hoje há uma confusão sobre as diferenças dos aspectos criminais e médicos nas questões das drogas. A própria legislação é muito ambígua para discernir quem é o usuário, quem é o traficante. E, ainda, quem é o usuário ocasional, quem é o dependente químico. Não é simples. Mas jogam todos na mesma vala. Aliás, nem todo usuário de crack é dependente. Outra ambiguidade: a confusão entre a política e a questão médica e psicológica. Agora, se o Estado se autoriza a propor internações involuntárias e compulsórias a essas populações de rua, parece-me uma medida política, midiática e higienista. Se o mote fosse realmente o cuidado do crack - e se a melhor abordagem fosse a internação involuntária/compulsória -, penso que, por uma questão de coerência, isso deveria ser estendido à Avenida Paulista, aos bairros mais nobres da cidade. Por que só na cracolândia? Porque incomoda muito ver as pessoas se drogando na rua. Se a indicação fosse médica, você também pegaria involuntariamente os mais favorecidos. O que incomoda é a visibilidade - não só da droga, mas dessas pessoas. No consultório onde atendo, recebo pacientes de classe média alta que consomem crack entre quatro paredes. Médicos, jornalistas, executivos... São exceções, mas há. Essas pessoas não têm a mesma visibilidade das pessoas de rua. Quer dizer, temos uma miséria social antes de tudo. A droga é só um elemento. A internação deve ser uma decisão médica - e, então, como defendê-la como decisão jurídica? É muito mais cara (e menos eficaz) que o trabalho ambulatorial que já realizamos.

Por quê?

Por exemplo, há uma iniciativa municipal em que uma equipe de psiquiatras faz internações involuntárias de pessoas em situação de rua. Como não tem condições de tocar esse regime de internação em hospitais públicos, recorre a hospitais particulares. Mesmo nos melhores modelos, como nos convênios com o Hospital Samaritano com o Said (Serviço de Atenção Integral ao Dependente), uma internação custa quase R$ 20 mil por mês. Há um lobby de instituições psiquiátricas, uma máfia branca interessada nesses recursos. Há muitos interesses escusos. Por isso, muitos médicos defendem a internação compulsória, pensam nos próprios interesses financeiros.

Mas não seria ingênuo esperar pela internação voluntária desses dependentes?

Ingênuo? Não. Ingênuo é não fazer nada e, na hora em que a situação se agrava, recorrer a uma medida de exceção. Essas populações de rua foram abandonadas pelo Estado. Perderam a cidadania, a moradia, a saúde. Agora, com essas novas medidas, perderam mais direitos: a liberdade individual e o direito de ir e vir. Há uma leitura equivocada nessa história. Pensam que a miséria social é uma decorrência da droga, o que não é verdade. É decorrência da omissão do Estado. A droga não é a causa, é uma das consequências. Então, a cracolândia deve ser tratada como uma questão de saúde pública, e não de segurança pública. Eu continuo trabalhando na cracolândia atualmente. Um trabalho de formiguinha, muito difícil e lento. Abordamos essas pessoas, fazemos intervenções com consultórios de rua, levamos para atendimento ambulatorial no Caps-AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, iniciativa municipal). Nas situações extremas, também recomendamos internação. Tudo é trabalhado a partir de uma rede assistencial. Mas, quando o governo entra com uma política intervencionista e ações policiais como a de janeiro de 2012, todo nosso trabalho é prejudicado. Perdemos a confiança que demoramos tanto para conquistar entre as populações de rua. Atitudes agressivas e repressivas só afastam essas pessoas. Então, é um retrocesso para nós. Além disso, a psiquiatria cometeu muitos abusos no passado. Sou psiquiatra, vejo isso todos os dias: hospitais abrigando usuários de drogas sem nenhuma indicação médica. É um risco grave e sério de manicomialização do tratamento. Na primeira ação na cracolândia, a de janeiro de 2012, tive a impressão de que estávamos retornando à era da psiquiatria medieval. Entramos até num questionamento ético: qual é o direito do Estado de intervir assim na vida de alguém? É uma afronta às liberdades individuais. Não se pode fazer um isolamento nos modelos das prisões. E internação compulsória é isolamento social, não tratamento. É o que vejo na prática. Se tivéssemos um aparelho constituído e um método eficaz, eu defenderia a iniciativa. Se não é assim, qual é o sentido? Em São Bernardo do Campo, um dos hospitais conveniados com o governo do Estado estava sob intervenção e investigação por maus-tratos aos pacientes. Como se pode propor uma internação involuntária em um hospital assim? E isso foi no ano passado, não na história distante da luta antimanicomial.

O dependente de crack é capaz de discernir o que é melhor para ele?

Tenho discutido muito a questão da autonomia com o pessoal da área jurídica. A perda da capacidade de autodeterminação, que configura uma situação jurídica que justifica uma internação compulsória, é exceção. A maioria das pessoas envolvidas com drogas não perdeu essa capacidade de autodeterminação - isso vale para maconha, crack, álcool, etc. O que define a dependência é a perda do controle em relação ao produto. Se o indivíduo perde o controle no consumo de álcool, ele é incapaz de responder pelos próprios atos? Não. Ele escapará da prisão se cometer um crime? Não. Quer dizer, a perda de controle vale apenas para aquele ato. Mas dizer que esse indivíduo perdeu a noção de identidade e o julgamento entre certo e errado? Não. Qual é o limite? A capacidade de fazer o julgamento da realidade. Perdendo isso, entramos na psicose. A maioria dos dependentes de crack pode estar consumindo compulsivamente a droga e pode estar desesperada a ponto de roubar para poder comprar mais, mas não perdeu a capacidade de diferenciar o certo do errado. Quer entrar com medidas jurídicas? Sim, mas medidas voltadas para os delitos - o roubo, por exemplo. E roubo não é doença mental, é crime.

O governador Geraldo Alckmin se disse surpreso com o número de internações nos primeiros dias, prometendo mais investimentos. Foi realmente surpreendente?

É difícil saber. Mas é até natural um movimento dessa ordem, pois a repercussão na mídia desperta uma procura maior. E a maioria das pessoas ainda não entendeu a medida, não tem uma visão crítica sobre as questões polêmicas, principalmente sobre a baixa eficácia desse modelo de tratamento.

Qual o modelo mais eficaz para tratar dependentes de crack?

O modelo ambulatorial, com equipes multidisciplinares. Sei que é difícil trabalhar com ele. É muito mais simples "decretar" a internação. Mesmo nesse modelo ambulatorial, que considero mais sustentável, os resultados não são fáceis. A maioria das ações ali não tem recursos públicos. A quantia que o governo apostou nas internações compulsórias (R$ 250 milhões)... Nunca foi investido nada parecido nas nossas ações. Nos consultórios de rua, por exemplo, temos ONGs e voluntários, pois não há investimento público consistente. E considere também que os Caps-AD são iniciativas da Prefeitura com respaldo do governo federal - e são as formas preconizadas pelo Ministério da Saúde como a forma privilegiada para tratamento de dependência química. E embora conte com profissionais muito competentes, o Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas, iniciativa estadual) tem uma postura diferente, numa linha do antigo modelo americano, mais restritivo e repressivo. O Caps-AD trabalha numa linha mais europeia, que privilegia o acolhimento. Por exemplo: não temos uma visão apriorística, não dizemos "vamos acabar com as drogas agora". Mas vamos ouvir essas populações para descobrir como podemos ajudar. Não é à toa que os Estados Unidos estão mudando de modelo: eles constataram que a famosa guerra contra as drogas já foi perdida. Precisamos pensar em alternativas. Agora, se os Estados Unidos, com os recursos que têm para investir em saúde, já notaram isso, por que nós ainda estamos batendo nessa tecla? Devemos priorizar intervenções mais humanizadas. Precisamos proporcionar acolhimento, não segregacionismo.

A proposta da ‘oferta controlada de drogas’ daria certo no Brasil?

Conheço algumas experiências de uso controlado - nos Estados Unidos e no Canadá, além de países europeus como Espanha, Holanda e Suíça. Funciona, mas para uma parcela específica dos pacientes: usuários crônicos de longa data, que já tentaram os outros modelos de tratamento, sem sucesso. Na esfera da redução de danos, são medidas válidas, a partir da seguinte constatação: nos modelos de tratamento tradicionais ancorados na abstinência, como preconizam Ana Cecília (Marques) e outros, as melhores taxas de eficácia do mundo não passam de 35%, 40%. Quer dizer, mesmo com os melhores recursos não conseguimos ajudar nem metade das pessoas. O que fazer com os 60%, 65% restantes que não mantêm a abstinência? Eles dizem: olha, o dependente não parou, foi um insucesso terapêutico, entra na estatística e acabou. Não se faz mais nada. Na minha perspectiva, as pessoas que não respondem ao tratamento e não ficam abstinentes devem receber outras estratégias para diminuir danos. As propostas de uso controlado fazem parte dessas estratégias. No Proad, atendo em média 150, 200 consultas de crack por mês. Temos uma taxa de sucesso de 1/3, que abandona o crack totalmente. Os outros 2/3, não. Então, tentamos diminuir a frequência de uso para que o indivíduo tenha uma qualidade de vida melhor, um desempenho profissional razoável. Um paciente me disse certa vez que a maconha o ajudava a diminuir o uso do crack. A partir disso, fizemos uma experiência controlada com 50 dependentes de crack usando maconha, com controle rigoroso e uma série de variáveis para ter aferição científica, com acompanhamento detalhado por um ano. Resultado: 68% abandonaram o crack depois dessa experiência, que foi relatada no Journal of Psychoactive Drugs, uma revista científica da Califórnia. Em algumas experiências no exterior, há ainda a possibilidade de os médicos fornecerem o produto ou prescreverem a droga. Isso começou na Inglaterra no início do século 20, quando os médicos britânicos foram autorizados a prescrever heroína para soldados dependentes que voltaram da guerra mutilados. É preciso esclarecer que a política de redução de danos não se opõe à política de abstinência. Elas são complementares, não antagônicas. Cada caso é um caso. A internação compulsória pressupõe a da abstinência, o que é louvável. Mas funciona menos. No dia em que for liberado, o dependente terá uma recaída.

O status de epidemia do crack é real?

Como não temos nem estrutura de atendimento adequada, não podemos dizer se e quanto aumentou o consumo de crack. A quantidade de dependentes que me procurava em 1996 e em 2012 é praticamente a mesma. O que há é mais visibilidade.http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,miserias-fora-de-ordem,989156,0.htm