26 novembro, 2010

10 Maneiras de enganar o público (Chomsky)

O lingüista estadunidense Noam Chomsky elaborou a lista das “10 estratégias de manipulação” através da mídia:

1- A ESTRATÉGIA DA DISTRAÇÃO.
O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto ‘Armas silenciosas para guerras tranqüilas’)”.

2- CRIAR PROBLEMAS, DEPOIS OFERECER SOLUÇÕES.
Este método também é chamado “problema-reação-solução”. Cria-se um problema, uma “situação” prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3- A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO.
Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.


4- A ESTRATÉGIA DO DEFERIDO.
Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que “tudo irá melhorar amanhã” e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se com a idéia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.
5- DIRIGIR-SE AO PÚBLICO COMO CRIANÇAS DE BAIXA IDADE.
A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou um deficiente mental. Quanto mais se intente buscar enganar ao espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê? “Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestão, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver “Armas silenciosas para guerras tranqüilas”)”.

6- UTILIZAR O ASPECTO EMOCIONAL MUITO MAIS DO QUE A REFLEXÃO.
Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e por fim ao sentido critico dos indivíduos. Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar idéias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos…

7- MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE.
Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. “A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça impossível para o alcance das classes inferiores (ver ‘Armas silenciosas para guerras tranqüilas’)”.

8- ESTIMULAR O PÚBLICO A SER COMPLACENTE NA MEDIOCRIDADE.
Promover ao público a achar que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto…

9- REFORÇAR A REVOLTA PELA AUTOCULPABILIDADE.
Fazer o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de rebelar-se contra o sistema econômico, o individuo se auto-desvalida e culpa-se, o que gera um estado depressivo do qual um dos seus efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não há revolução!

10- CONHECER MELHOR OS INDIVÍDUOS DO QUE ELES MESMOS SE CONHECEM.
No transcorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado crescente brecha entre os conhecimentos do público e aquelas possuídas e utilizadas pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o “sistema” tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele mesmo conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.
Artigo:
http://www.rodrigovianna.com.br/outras-palavras/noam-chomsky-10-estrategias-de-manipulacao-midiatica-2.html
Segurança Pública e Sistema policial

A crise no Rio e o pastiche midiático
por Luiz Eduardo Soares, em seu blog
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Sempre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética –- supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu–, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –- ou sob tanta pressão — quanto os jornalistas.
Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia:
(1) Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevistas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram.
(2) Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido –- em uma palavra, banido –, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial?
(3) Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacional do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas –- nesses casos, reduzi-me a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes.
Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução.
Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura:
(a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança?
Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia. Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises?
Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.
A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco.
A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia.
(b) O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?
Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis.
Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la –- isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia — teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.
Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime.
Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas –- mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente.
O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção.
É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.
(c) O Exército deveria participar?
Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias.
E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.
(d) A imagem internacional do Rio foi maculada?
Claro. Mais uma vez.
(e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.
Palavras Finais
Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente.
As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo.
A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na secretaria estadual de assistência social –um dos melhores gestores do país–, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.
O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia, vale reiterar.
Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios –- as bandas podres das polícias — prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.
Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?
As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça.
A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania.
A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados.
E nesse quadro, a PEC-300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.
Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino “gato orçamentário”, esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada.
Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.
O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas.
Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.
Artigo:
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/luiz-eduardo-soares-a-crise-no-rio-e-o-pastiche-midiatico.html

14 novembro, 2010

A Coerência da fantasia (Chomsky)

por Noam Chomsky, Esquerda.net

As eleições intercalares nos EUA registaram um nível de raiva, medo e desilusão no país como não me lembro em toda a minha vida. Desde que estão no poder, os democratas carregam o peso da revolta contra a nossa actual situação socioeconómica e política.

Numa sondagem da Rasmussen, no mês passado, mais de metade dos americanos da corrente dominante disseram que encaram positivamente o movimento Tea Party, um reflexo do espírito de desencanto.

Os ressentimentos são legítimos. Há mais de 30 anos que os rendimentos reais da maioria da população estagnaram ou baixaram, enquanto que as horas de trabalho e a insegurança aumentaram, juntamente com a dívida. Foi acumulada riqueza, mas em muito poucos bolsos, conduzindo a uma desigualdade sem precedentes.

Estas consequências surgiram principalmente da financeirização da economia a partir dos anos 1970 e do correspondente esvaziamento da produção nacional. A impulsionar o processo está a obsessão pela desregulamentação apadrinhada por Wall Street e apoiada por economistas fascinados pelos mitos do mercado eficiente.

As pessoas assistem ao regozijo dos banqueiros, que foram em grande parte responsáveis pela crise financeira e que foram salvos da bancarrota pela comunidade, com os lucros recorde e os enormes bónus. Entretanto, o desemprego oficial permanece em cerca de 10 por cento. A indústria transformadora está nos níveis da Depressão: um em cada seis estão desempregados, os bons empregos têm poucas hipóteses de voltarem.

Os cidadãos querem justamente respostas e não as estão a obter, excepto de vozes que contam histórias com alguma coerência interna para quem suspenda o cepticismo e entre no mundo deles, de irracionalidade e mentira.

Contudo, ridicularizar o Tea Party é um erro grave. É muito mais útil perceber o que está por trás da atracção popular pelo movimento e perguntarmo-nos por que é que são precisamente as pessoas enraivecidas que estão a ser mobilizadas pela extrema-direita e não pelo tipo de activismo construtivo que cresceu durante a Depressão, como o CIO (Congresso das Organizações Industriais).

Agora, os simpatizantes do Tea Party estão a ouvir dizer que todas as instituições, o governo, as empresas e os sectores profissionais, estão podres e que nada funciona.

No meio do desemprego e das execuções de hipotecas, os democratas não se podem queixar das políticas que conduziram ao desastre. O presidente Ronald Reagan e os seus sucessores republicanos podem ter sido os maiores responsáveis, mas essas políticas começaram com o presidente Jimmy Carter e prosperaram sob a presidência de Bill Clinton. Durante a eleição presidencial, a base de apoio eleitoral de Barack Obama eram as instituições financeiras, que adquiriram notável supremacia sobre a economia na geração anterior.

O incorrigível radical do século XVIII Adam Smith, falando da Inglaterra, observou que os principais arquitectos do poder eram os donos da sociedade; na sua época, os comerciantes e os fabricantes, que se certificaram de que a política do governo atenderia escrupulosamente aos seus interesses, por mais “doloroso” que fosse o impacto sobre o povo de Inglaterra, e pior, sobre as vítimas da “injustiça selvagem dos europeus” no exterior.

Uma versão moderna e mais sofisticada da máxima de Smith é a “teoria do investimento na política” do economista político Thomas Ferguson, que encara as eleições como ocasiões em que grupos de investidores se juntam para controlar o estado, seleccionando os arquitectos das políticas que irão servir os seus interesses.

A teoria de Ferguson acaba por ser um indicador muito eficaz da política durante longos períodos. Dificilmente isto surpreende. As concentrações de poder económico procurarão naturalmente alargar a sua influência a todo o processo político. Acontece que a dinâmica é extrema nos EUA.

Pode ainda dizer-se que os grandes especuladores das empresas têm uma defesa válida contra as acusações de “ganância” e desrespeito pelo bem-estar da sociedade. A sua missão é maximizar o lucro e a quota de mercado; na verdade, é a sua obrigação legítima. Se não cumprirem essa função, serão substituídos por alguém que o faça. Eles ignoram também o risco sistémico: a probabilidade das suas operações prejudicarem a economia em geral. Essas “externalidades” não os preocupam, não por serem más pessoas, mas por razões institucionais.

Quando a bolha estoura, os que arriscaram podem fugir para o abrigo do Estado protector. Os resgates financeiros, uma espécie de apólice de seguro governamental, estão entre os muitos incentivos perversos que aumentam as ineficiências do mercado.

“Há um reconhecimento crescente de que o nosso sistema financeiro está a aproximar-se do dia do Juízo Final”, escreveram os economistas Peter Boone e Simon Johnson, no Financial Times, em Janeiro. “Sempre que ele falha, contamos com o dinheiro e as políticas fiscais negligentes para o resgatar. Esta resposta aconselha o sector financeiro: aposta em grande para seres pago regiamente, não te preocupes com os custos, que serão pagos pelos contribuintes” através de resgates e outros mecanismos, e o sistema financeiro “é, assim, ressuscitado para voltar a jogar e voltar a falhar”.

A metáfora do Juízo Final também se aplica fora do mundo financeiro. O Instituto Americano do Petróleo, apoiado pela Câmara de Comércio e outros lobbies empresariais, tem intensificado os seus esforços para persuadir o público a descartar as preocupações sobre o aquecimento global antropogénico, com considerável sucesso, como as sondagens indicam. Entre os candidatos republicanos ao Congresso nas eleições de 2010, praticamente todos rejeitam o aquecimento global.

Os executivos por trás da propaganda sabem que o aquecimento global é real e que as nossas perspectivas são sombrias. Mas o destino da espécie é uma externalidade que os executivos têm de ignorar, na medida em que prevalecem os sistemas de mercado. E o público não conseguirá caminhar para a salvação, quando se desenrola o pior cenário.

Tenho idade suficiente para me lembrar daqueles dias deprimentes e ameaçadores do declínio da Alemanha, da decência para a barbárie nazi, para usar as palavras de Fritz Stern, o ilustre estudioso da história alemã. Num artigo de 2005, Stern refere que tinha o futuro dos Estados Unidos em mente quando reviu “um processo histórico em que o ressentimento contra um mundo secular desencantado encontra alívio no escape extático da irracionalidade.”

O mundo é demasiado complexo para que a história se repita, mas há, todavia, lições a reter à medida que notamos as consequências de mais um ciclo eleitoral. Não faltam tarefas aos que tentam apresentar uma alternativa à raiva e indignação mal orientadas, ajudando a organizar os inúmeros descontentamentos e a mostrar o caminho para um futuro melhor.

Tradução de Paula Coelho para o Esquerda.net
Artigo:
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/noam-chomsky-eua-indignacao-mal-orientada.html
Lawrence Wright e Robert Fisk (10/7/2007 )

Os dois autores falam sobre o papel do jornalista, mídia e o modo como ela trata os conflitos no Oriente Médio, o conceito de terrorismo e o papel dos EUA na região
Paulo Markun: Olá. O Roda Viva apresenta hoje o último programa da série especial organizada na Festa Literária Internacional de Parati [Flip], no litoral do Rio de Janeiro. Ao longo desta semana, entrevistamos escritores de expressão internacional reconhecidos por suas obras e, também, pelo envolvimento com temas sociais e políticos do mundo nas últimas décadas. O programa de hoje, nesta edição especial na Flip 2007, entrevista dois jornalistas e escritores: o inglês Robert Fisk, repórter do jornal The Independent, um dos raros jornalistas ocidentais que entrevistaram Osama bin Laden, o líder da organização Al Qaeda. Fisk já recebeu mais de uma dezena de vezes o prêmio de melhor correspondente britânico. E o americano Lawrence Wright, colunista da revista New Yorker, pesquisador da Universidade de Nova Iorque e um minucioso analista dos conflitos que inquietaram o mundo nesta virada de século. Ele acaba de ganhar o prêmio Pulitzer 2007 na categoria de não-ficção. O Roda Viva começa em instantes.

[intervalo]

Paulo Markun: O jornalista britânico Robert Fisk vive há trinta anos em Beirute, no Líbano, conhece como poucos os conflitos no Oriente Médio e em outras áreas do mundo. Ele analisa que o apoio às ditaduras e às intervenções ocidentais na região estão na raiz do ódio que as populações muçulmanas criaram pelo Ocidente. Lawrence Wright, que já estudou na Universidade do Cairo [no Egito], vive nos Estados Unidos. Roteirista de cinema, também escreveu um romance e cinco obras de não-ficção. Há anos, pesquisa personagens, mitos, fatos e razões que estão por trás da chamada "guerra de civilizações".

[inserção de vídeo]

Paulo Markun: [em off, enquanto passam imagens dos livros de Lawrence Wright] O livro de Lawrence Wright que lhe valeu o Pulitzer 2007 de não-ficção, é uma obra de jornalismo investigativo. O vulto nas torres nasceu assim que o World Trade Center, de Nova Iorque, foi colocado abaixo por terroristas [nos atentados de 11 de setembro de 2001]. Na contra-capa, o editor escreve que, "quando achávamos que o fim da Guerra Fria marcava o ‘fim da história’ e a humanidade, enfim, viveria em paz, o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 mergulhava o mundo em perplexidade". Lawrence Wright, então, decidiu desvendar as origens da “guerra santa” de bin Laden e investigar erros e comportamentos do governo americano. [são exibidas cenas do filme Nova Iorque sitiada] Nos anos 90, ele já analisava as tensões que as ameaças terroristas começavam a causar e fez disso o roteiro do filme Nova Iorque sitiada, uma cidade levada ao caos pela ameaça de bombas terroristas. [cenas dos atentados de 11 de setembro] O caos de verdade vem em setembro de 2001. [cenas de Robert Fisk e da guerra de 2003 no Iraque] Um ano e meio depois dos atentados, no outro lado do mundo, o jornalista Robert Fisk entrava uma vez mais num campo de batalha para acompanhar a invasão americana ao Iraque, na anunciada "guerra ao terror". Fisk é um especialista em Oriente Médio, cobriu todos os conflitos na região desde a revolução islâmica, no Irã, em 1979. [cenas do livro de Robert Fisk] Suas crônicas detalhadas e bem documentadas deram origem a um dos mais volumosos livros que chegaram à Flip 2007. Com quase 1500 páginas, A grande guerra pela civilização - a conquista do Oriente Médio é mais do que um amplo relato desta cultura bélica. Robert Fisk fez uma abordagem crítica destes acontecimentos que só fizeram aumentar o ódio e a dor no mundo e que, na visão do autor, representam o total fracasso do espírito humano. [cenas de um encontro entre Fisk e Wright na Flip] Robert Fisk e Lawrence Wright tratam destes temas em debates e palestras em suas viagens pelo mundo e trouxeram estas reflexões também aos encontros entre escritores e público na Festa Literária Internacional de Parati.

[fim da inserção de vídeo]


Paulo Markun: Para entrevistar os jornalistas e escritores Lawrence Wright e Robert Fisk, nós convidamos: Marcos Strecker, redator da sessão de livros do caderno “Mais” e do caderno “Ilustrada”, do jornal Folha de S. Paulo; também está conosco Josélia de Aguiar, editora da revista Entre Livros; Norma Couri, correspondente da revista portuguesa Visão; Helena Celestino, editora executiva do jornal O Globo; Bruno Torturra Nogueira, repórter especial da revista Trip; e Lázaro de Oliveira, chefe de pauta do programa Metrópolis, da TV Cultura. Também temos a participação do cartunista Paulo Caruso, mostrando em seus desenhos os principais momentos do programa. O Roda Viva é transmitido em rede nacional de TV pela TV pública para todo o Brasil. E, como o programa de hoje está sendo gravado, ele não permite a participação direta do telespectador, mas você pode mandar suas críticas, suas sugestões, tanto para o blog da TV Cultura, quanto para o endereço do programa, que é www.tvcultura.com.br/rodaviva. Bem, eu vou começar com uma pergunta clássica e óbvia, mas que é obrigatória, que é a seguinte: muitas guerras surgiram em razão das fronteiras, de debates sobre as fronteiras. Na nossa área, em particular, da comunicação, da literatura e o jornalismo, há uma fronteira que se discute muito, que é aquela entre a ficção e a não-ficção, entre o jornalismo e a literatura. E vocês são autores de obras que trabalham exatamente nesta fronteira. Eu queria perguntar, primeiro para o Robert, depois para o Lawrence, o seguinte: aonde fica essa fronteira?

Robert Fisk: Bem, eu não creio que a fronteira que você citou seja real. Todos nós que escrevemos temos que usar a imaginação. Se o trabalho de um jornalista em campo é aquele de uma agência de notícias, como cobrir uma partida de futebol com 50% de opinião de cada um, não quero esse trabalho. Nosso trabalho como jornalistas no Oriente Médio, onde eu trabalho... Na minha opinião, temos de mostrar nossos sentimentos, que simpatizamos com os oprimidos cujo país está ocupado, com aqueles que sofrem. Os fracos, os pobres. Sei que já fui muito criticado, por exemplo nos Estados Unidos, por dizer isso: "Você tem de ser neutro e imparcial!" [refere-se à cr[itica que sofre] Mas, se eu falasse do comércio de escravos no século XVIII entre África, América do Sul e Estados Unidos, daria o mesmo tempo ao capitão do navio? Não, entrevistaria os escravos. Durante a libertação de um campo de extermínio nazista daria o tempo igual à SS? [organização paramilitar nazista que perseguia minorias na Alemanha entre 1933 e 1945] Não. Falaria com os sobreviventes sobre aquele dia. Quando, em Sabra e Chatila, no massacre de 1,7 mil palestinos em 1982 [realizado por uma milícia libanesa na região ocupada pelos israelenses durante a invasão do Líbano por Israel, naquele ano; as forças israelenses são acusadas de não terem feito nada para impedi-los], eu não tinha dúvidas sobre a minha fronteira. Entrevistei os sobreviventes, não dei o mesmo tempo aos aliados dos israelenses que perpetraram o massacre. Em Jerusalém, em agosto de 2001, quando o cronômetro – click, click, click... - já fora acionado antes de setembro, não dei o mesmo tempo à Jihad Islâmica [organização palestina cujo objetivo é a criação de um Estado palestino e a destruição de Israel, para os quais usa ataques armados e a bomba] quando um homem-bomba palestino matou crianças israelenses em uma pizzaria: escrevi sobre os israelenses. Nosso trabalho não é enviar reportagens do Oriente Médio como se fossem matérias de um jogo de futebol ou como uma pesquisa sobre uma nova rodovia no Brasil. Trata-se de uma tragédia humana e temos de usar os nossos sentimentos e as nossas simpatias e eloqüência para retratá-la. Se damos a impressão de que usamos a uma linguagem de um romancista, não significa que escrevemos ficção, e sim que precisamos passar o que de fato está acontecendo. Lawrence deve concordar, mas pode perguntar a ele.

Paulo Markun: Lawrence.

Lawrence Wright: Eu escrevo romances, roteiros de cinema, peças e não-ficção. Estou dos dois lados da linha, mas tenho uma linha. Na ficção, você pode inventar, criar coisas e, na não-ficção, no jornalismo, você tem a obrigação sagrada de não fazê-lo. Você pode enviar reportagens sem parar. Se quiser uma grande cena e quiser saber o que personagens disseram e pensaram, você pode entrevistá-los e, então, recriar e pintar, tudo isso num estilo romanceado ou numa maneira muito parecida com a que você encontraria em um filme. Eu tenho como objetivo fazer isso na minha não-ficção. Mas insisto que seja possível atribuir que tudo a um fato que se pode provar. Acho que essa é a obrigação de todo jornalista. Sou um pouco diferente do Robert. Venho de uma escola de jornalismo diferente e admiro a paixão que ele traz para o trabalho. A minha tradição é um tanto diferente. Permito ao leitor ter os seus próprios sentimentos, mas a meta de expor o leitor aos problemas é a mesma.

Norma Couri: Robert Fisk, o senhor contraria uma regra básica de jornalismo, que é a obrigação de ouvir os dois lados. Se, numa situação dessas, o senhor ouve um lado só e se o outro lado resolver não ouvir o lado de cá, onde fica a verdade? E isso implica em uma outra colocação sua, que é: "O jornalismo é mais covarde e parasitário depois do 11 de setembro”; que “Não dá para ler o New York Times, não dá para ler o Los Angeles Times, a CNN, a Fox [canais de TV noticiosos estadunidenses]. Eu acredito que a imprensa alternativa também esteja contaminada. E, se o [Rupert] Murdoch [presidente do News Corporation, o maior conglomerado do setor de comunicações do mundo] comprar o Wall Street Journal, tudo vai ficar muito pior". Onde é que está a verdade? Como é que o leitor fica nisso?

Robert Fisk: No jornal The Independent de Londres, é claro. [risos] Você fala sobre regras básicas do jornalismo. Quem inventa essas regras?

Norma Couri: Nós as aprendemos.

Robert Fisk: Quem inventa essas regras básicas do jornalismo? Nós estamos aprisionados no que eu chamo de “escola americana de jornalismo” - desculpe-me, Lawrence -, segundo a qual não devemos ofender ninguém e sempre devemos citar o porta-voz do Departamento de Estado na íntegra. Eu dou bastante tempo aos dois lados. Às vezes, se estou com israelenses na Cisjordânia [um dos dois territórios palestinos ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias em 1967; o outro é a Faixa de Gaza], obtenho a opinião dos israelenses. E, com os palestinos, obtenho a opinião deles. Mas, em face de uma grande tragédia humana, de um massacre, é obrigação do jornalista que sabe o que está acontecendo, dizer: “Olha, foram eles! E eles são as vítimas!” Todos os outros no mundo fazem isso. Por que nós não podemos? O meu jornal não me envia ao Oriente Médio para gerenciar uma agência de notícias. Não me envia ao Oriente Médio para que eu saia correndo em direção aos palestinos ou israelenses toda vez que um morteiro é disparado de modo que eu dê o mesmo tempo aos dois lados e diga: “o leitor vai decidir”. Eu não acho que o povo de Nevada, ou o povo de Huntington, dos Midlands, na Inglaterra, quer isso. Acho que querem que o repórter que está a serviço do jornal diga que diabo está acontecendo por lá. Se não gostarem, podem ler o The Guardian ou New York Times, pobrezinhos, se quiserem. Ou podem ler vários jornais daqui, O Estado ou a Folha de S. Paulo. Você pode escolher o seu jornal, pode desistir de ler o The Independent. E o meu editor chama o nosso jornal de “viewspaper” [literalmente, “jornal com visões”, no sentido de “com testemunhos, com pontos de vista”; Fisk fez um trocadilho com “newspaper” (“jornal”, em inglês), cuja tradução literal é “jornal de notícias”] e quer que nossos repórteres digam aos leitores o que acontece lá, e não ouvir um relato de uma agência de notícias, ou ler o New York Times, no qual o novo muro [na Cisjordânia, para separar Israel dos territórios palestinos], em construção nos territórios ocupados [por Israel, na Palestina], é chamado de “cerca”; no qual os territórios ocupados são chamados de “disputados”; no qual assentamentos ou colônias nos territórios árabes são chamados de “bairros”. Não usamos essa linguagem, nós damos nomes aos bois. Mas, se você ler o New York Times, vai encontrar "barreiras de segurança" ou "cercas". Lembra da “Cerca de Berlim?” [o Muro de Berlim, construído em 1961 para impedir que os habitantes de Berlim Oriental (de orientação comunista) fugissem em direção a Berlim Ocidental (na Alemanha Ocidental, aliada dos Estados Unidos)] Os alemães orientais chamavam o Muro de “barreira de segurança”. E você pode ler a respeito de "territórios em disputa"; e isso é jornalismo letal, por um motivo simples. Eu sou contra toda violência, independente do motivo, sempre. Mas se você vê uma criança palestina jogar uma pedra e sabe que ela a está jogando porque seu país está ocupado ou porque colônias foram construídas em sua terra, você pode até entender. Mas, se o noticiário é sobre uma cerca, uma coisa no jardim, na sua propriedade, ou sobre uma disputa que você pode resolver em um tribunal de pequenas causas ou tomando chá, é óbvio que essa criança é genericamente violenta. E, assim, nós, como jornalistas, tornamos a disputa mais letal. Não defendo os palestinos, nem o mundo muçulmano, tenho muitas críticas e eu as escrevo sobre esses assuntos, mas temos de... É um clichê antigo: devemos dar nomes aos bois e não mudar constantemente nem dessemantizar conflitos para que nós, jornalistas, não sejamos atacados. O grande medo de jornalistas dos Estados Unidos que cobrem a disputa árabe-israelense – sejamos francos – é que, se criticarem Israel, serão acusados de anti-semitismo, o que é uma calúnia que nunca deve ser usada. É ultrajante. Existem anti-semitas de verdade, sou totalmente contra eles e todos deveriam sê-lo. Mas usar essa calúnia para tentar calar jornalistas na cobertura o Oriente Médio é um ultraje. E vemos, nos Estados Unidos... Leia o Los Angeles Times, o Washington Post, o New York Times, leia qualquer jornal - talvez o Christian Science Monitor seja até um pouco melhor... O Chicago Tribune decaiu... Todos estão com medo. É um jornalismo assustado, não querem balançar o barco. E é claro que, como a administração dos Estados Unidos apóia Israel 100%, estejam os israelenses certos ou errados, sentem que é anti-patriótico criticar Israel, porque é o mesmo que criticar o governo americano. Se isso é jornalismo, estou fora da profissão.

Paulo Markun: Sem querer transformar isso em um debate – seria, aliás, muito interessante -, eu queria ouvir a opinião do Lawrence sobre essa questão.

Lawrence Wright: Eu reconheço o trabalho do Robert.

Robert Fisk: Isso parece perigoso!

Lawrence Wright: E é, mesmo!

Robert Fisk: As pessoas que fazem isso são perigosas...!

Lawrence Wright: Não é o meu estilo de jornalismo, mas o mundo do jornalismo, ainda mais no Oriente Médio, seria bem mais pobre sem Robert Fisk lá, porque poucos fazem esse tipo de cobertura. Ser como ele não é da minha natureza, mas o problema é que o mundo todo do jornalismo está encolhendo. A visão do Robert... Dez anos atrás, ele era um numa grande multidão de jornalistas estrangeiros e essa multidão fica cada vez menor. Quando vou a esses países, com freqüência me surpreendo com a quantidade diminuta de colegas. Os jornais retiraram seu pessoal e, então, as notícias em primeira mão, a experiência, que é tão valiosa, deteriorou-se muito no jornalismo. É uma alegria ter um colega de quem às vezes discordo mas que, pelo menos, está em campo, trabalhando.

Helena Celestino: Eu queria continuar um pouco nesse assunto de imprensa. O senhor concorda com esta afirmação, mister Wright, de que toda a imprensa americana está contaminada pela ideologia [George W.] Bush [presidente dos Estados Unidos de 2001 a 2009], que não existe mais imprensa independente nos Estados Unidos?

Lawrence Wright: Não, de modo algum. Para começar, acho que não dá para dizer muitas coisas boas sobre Bush na imprensa. Todos são unânimes. Seria uma grande novidade ver alguém levantar para defendê-lo... Ainda é uma imprensa livre mas, como em toda imprensa, como em toda tradição, existem pensamentos comuns, jornalistas que pensam igual, que raramente querem fugir do convencional e que têm medo de desafiar o governo. São problemas reais e nós os vimos na escalada até a Guerra no Iraque [de 2003], em que a imprensa foi reprimida pelos eventos de 11 de setembro, teve medo de olhar bem de perto o que o governo fazia e como o governo sentiu isso, conseguiu sair impune com mentiras atrozes.

Robert Fisk: Lawrence, o que você diz está certo até determinado ponto, mas veja, foi a insurgência iraquiana... foi a [com ênfase] insurgência iraquiana que deu mais liberdade à imprensa dos Estados Unidos, mostrando que os americanos estavam errados e o presidente havia mentido. Se a guerra tivesse dado certo, o New York Times ainda diria que a guerra foi incrível e o presidente, maravilhoso.

Lawrence Wright: Todos diríamos isso, Robert.

Robert Fisk: Eu, não!

Lawrence Wright: Talvez você, não, mas o elemento central eram as armas de destruição em massa que não tiveram nada a ver com a insurgência. Fomos à guerra por uma falsa premissa e ela foi vendida aos americanos sob uma premissa que muitos na imprensa sabiam ser errada, que Saddam Hussein e a Al Qaeda estavam juntos. Creio que esse foi um ponto em que a imprensa dos Estados Unidos falhou gritantemente em sua missão de comunicar aos americanos que isso era uma mentira.

Robert Fisk: As armas de destruição em massa eram uma mentira, mas se não tivéssemos encontrado nenhuma e o Iraque tivesse se tornado uma democracia amiga do Ocidente, ainda diríamos: "Fomos lá com a melhor das intenções e se não foram as corretas, foi uma boa idéia". Mas agora sabemos que foi um desastre. Então, repito, foi a insurgência iraquiana - brutal, cruel e implacável - que mostrou à imprensa dos Estados Unidos que ela precisa fazer uma curva a estibordo e mudar de curso, não foi porque alguém disse na redação do New York Times: "Escutem, acho que fomos enganados pelo presidente. Talvez seja melhor repensar."

Josélia Aguiar: Por falar em uso de palavras - o senhor comentou algumas -, o senhor costuma dizer que não compra nenhum jornal... O senhor, aliás, disse hoje de manhã, em uma conversa, que não compra nenhum jornal que use a palavra “terrorismo”. Eu queria que o senhor comentasse as implicações dessa palavra, o quanto ela tem de ideológico e de problemático - enfim, esta concepção mudou historicamente.

Robert Fisk: A palavra "terror"... Quem foram os primeiros terroristas? Os hashashins [antiga seita muçulmana], que atacaram os cruzados [Cruzadas contra os muçulmanos: diversas campanhas militares européias entre os séculos XI e XIII cujo objetivo principal era libertar a Terra Santa do domínio islâmico]? Os anarquistas de Moscou no Século XIX? Os alemães chamaram os aviadores da Real Força Aérea de "terroristas" ao bombardearem Alemanha, Hamburgo, Dresden e França e que levou à invasão da Normandia [a invasão dos Aliados na Europa, no Dia D, em 1944, abrindo uma segunda frente contra os nazistas alemães (a primeira foi na União Soviética)]? Hoje, a palavra "terrorista" e "terror" estão total e verdadeiramente desvalorizadas, não têm significado e foram inteiramente dessemantizadas, e são termos racistas usados contra os nossos inimigos, sejam quem forem. De verdade. Hoje, eu acho que a palavra "terror" - e lembre-se que bin Laden usa o terror de maneira tão promíscua quanto nós: "terroristas americanos, terroristas britânicos, terroristas cruzados", etc. Para nós, a palavra "terror" se tornou não um meio de definir ou bestializar os inimigos, mas sim um jeito de dizer: [apontando o dedo] "Tenha medo! Vamos introduzir uma nova legislação de proteção! Terror, terror, terror!" Eu vou à América - aos Estados Unidos, perdão - em média a cada três semanas. E, sempre que ligo na Fox News, há um alerta vermelho, alerta roxo, alerta rosa, alerta verde... Sei lá, é bobagem. Quem sabe? Não houve alerta em 11 de setembro. Foi a maior falha de todos os tempos do serviço secreto e não admitimos. Precisamos parar de falar sobre "terror, terror, terror, terror!" e começar a nos perguntar: "Por quê?” Por mais terríveis, terroristas e “terrorísticos” os terroristas sejam [no original: “However terrible, terrorist (adjetivo relativo a “ser terrorista”) and terroristic (adjetivo relativo ao terrorismo em si – as duas palavras são traduzidas para o português como “terrorista”) the terrorists (o substantivo) are”], ainda não ouvimos o que bin Laden diz. Ele é obcecado pela história, a Declaração de Balfour [declaração oficial do governo britânico, de 1917, a favor da instituição de um lar para os judeus na Palestina], o acordo Sykes-Picot, o Tratado de Sèvres, que acabou com o Império Otomano, o “Último Califado” [o Império Otomano foi por muitos considerado uma “ressureição” do poderio muçulmano medieval]. Nós precisamos entender. O general [Bernard] Montgomery [1887-1976], que lutou pelos britânicos, na Batalha de El Alamein, em 1942, tinha em seu trailer uma foto de [Erwin von] Rommel (1891-1944), o general alemão contra quem lutava, porque ele queria entender o seu inimigo. Nós não queremos entender o nosso inimigo, queremos bestializá-lo e introduzir mais leis para tirar os nossos direitos humanos, manter Guantánamo aberta, para extraditar pessoas e mandar torturá-las [presos de guerra do Afeganistão e do Iraque e acusados de terrorismo foram presos e torturados na base estadunidense de Guantánamo, em Cuba]. É para isso que se usa o terror.

Lawrence Wright: Robert, Você não lê mesmo jornais que usam a palavra "terror"?

Robert Fisk: Os jornais libaneses estão dizendo "terrorista" agora e sou obrigado a lê-los.

Lawrence Wright: OK, mas você cortou a outra argumentação no momento em que você estava se expondo.

Robert Fisk: Veja, a não ser que usem entre aspas... Leio jornais franceses sem problema algum . Libération, Le Monde, o Corriere della Sera [italiano] só usa entre aspas. Nós não usamos entre aspas. Chega.

Paulo Markun: Bem, nós vamos fazer um rápido intervalo e voltamos em um instante com a entrevista dos jornalistas e escritores Robert Fisk e Lawrence Wright. É uma edição especial do Roda Viva na Festa Literária Internacional de Parati 2007. A gente volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Esta edição especial do Roda Viva na Festa Literária Internacional de Parati, edição 2007, entrevista hoje uma dupla de jornalistas e escritores: Robert Fisk, da Inglaterra, e Lawrence Wright, dos Estados Unidos. Ambos trouxeram para a literatura seus relatos e visões críticas a respeito de guerras que afligem o mundo desde a metade do Século XX até os dias de hoje. Lawrence, eu queria perguntar a respeito do personagem mais intrigante da atualidade, mais mencionado e creio que menos conhecido: Osama bin Laden. Quem é ele e como ele chegou - eu sei que isso daria um programa de muitas e muitas horas, mas em uma curta resposta, quem é ele e como ele chegou onde está?

Lawrence Wright: Quando comecei o livro, adotei o mesmo conceito errôneo que os americanos tinham de Osama bin Laden, que era um homem fisicamente gigante, um bilionário, que talvez tivesse doença renal. Tudo isso estava errado. Por exemplo, falei com muitas pessoas amigas dele e todas dizem... o nosso amigo em comum [de Lawrence e de Robert Fisk], Jamal Kashoggi, diz que bin Laden tem 1,85 metro. Mas o relatório da CIA [Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos] diz que tem dois metros ou mais, por aí. Durante sua vida, ele teve uma fortuna de, no máximo, sete milhões de dólares, que era a parte dele na construtora que o pai fundou. Mas esse valor foi confiscado pelas autoridades sauditas, no início dos anos 1990 e, quando ele deixou o Sudão, os sudaneses roubaram tudo o que lhe restava. Então, quando saiu do Sudão, ele não tinha um centavo. Em 11 de setembro, bin Laden era um mendigo, não era, de forma alguma, um bilionário. E ele está doente. Analisei os sintomas dele: ele sofre de pressão baixa e costuma carregar um saco de sal que pega com o dedo, para manter a pressão. Ele costuma desmaiar, ele tem uma dor crônica nas costas e a pele dele está escurecendo. Tudo isso são sintomas de doença de Addison, que é uma doença que John F. Kennedy [(1917-1963), presidente dos Estados Unidos de 1961 a 1963, quando foi assassinado] tinha. Acho que aprendi muito sobre os mitos que nos venderam antes do 11 de setembro.

Paulo Markun: Robert Fisk, o senhor já entrevistou Osama bin Laden. Qual é o seu relato?

Robert Fisk: Ele nunca me pareceu doente. Mas ele mancava, acho que por causa de um ferimento à bala em um combate contra os russos, durante a ocupação soviética do Afeganistão [entre 1979 e 1988] - ele lutava do nosso lado, é claro. Depois da nossa conversa, ele saltou como um tigre para almoçar ou tomar chá, que eu tomei com ele. Ele comia as mesmas coisas que os soldados da Al Qaeda e eu também, que era iogurte, chá, pão, hortelã etc. Ele não me pareceu doente de forma alguma. Na verdade, parecia bem ágil. A razão de ele parecer bem alto é porque é bem magro, esguio. Mas acho que não sofre de doença renal. Acho que toda grande “besta” do jornalismo sobre a qual já escrevi, seja na Irlanda do Norte, como Ian Paisley [líder dos unionistas da Irlanda do Norte (que querem manter o território dentro do Reino Unido) e seu primeiro-ministro de 2007 a 2008], ou o coronel [Muamar] Khadafi [presidente da Líbia desde 1969] e outros... O serviço secreto sempre diz que sofrem de câncer, doença renal e mal de Alzheimer, mas eles nunca tinham essas doenças. É só o nosso jeito de dizer: “Estão morrendo! Estão morrendo! Estão morrendo!”, porque não conseguimos capturá-los ou apanhá-los. Mas há algo sobre bin Laden que não aceitamos. Ele é virtualmente, totalmente irrelevante. Ele criou a Al Qaeda. Para ele, foi um grande feito essa instituição extraordinária, singular, que não tem filiação formal, que não tem contatos diretos, que não tem celulares, onde só se falam de vez em quando, mas de maneira bem limitada... e ela existe, o monstro nasceu. Se ouvirmos falar que bin Laden morreu de câncer ou Alzheimer, ou qualquer outra coisa, não fará a mínima diferença. Ele criou esse monstro que se alimenta da humilhação e do sentimento de enorme repressão de milhões de pessoas no Oriente Médio. É mais ou menos como depois da criação de armas nucleares. Você pode prender todos os cientistas nucleares, você pode executá-los, mas a bomba está entre nós, o monstro já nasceu, temos de lidar com ela. E agora, temos de lidar com a Al Qaeda. E, ao invés de ouvir a Al Qaeda ou bin Laden e dizer que o que o Oriente Médio precisa é de justiça, que se pode construir a democracia com base na justiça, queremos é [representando agressividade] lutar, lutar, lutar e bombardear, bombardear, bombardear - e é isso o que a Al Qaeda quer. No momento, dançamos a música de bin Laden. E, mesmo que bin Laden esteja morto ou morra amanhã, nós ainda estamos dançando a música dele. Esse é o verdadeiro problema.

Lázaro de Oliveira: Sr. Wright, no seu livro, você diz que o grande problema de 11 de Setembro é a não-relação entre CIA e o FBI [Escritório Federal de Investigação]. Eu queria levar essa falta de informação para a área da diplomacia. Por exemplo: o Omar Torrijos [(1929-1981), ditador de facto do Panamá de 1968 até sua morte num acidente aéreo] foi partner dos Estados Unidos durante muito tempo e virou inimigo. O [Manuel] Noriega [ditador do Panamá de 1983 a 1989, quando foi deposto por uma invasão dos Estados Unidos], também. O Saddam Hussein [(1937-2006), ditador do Iraque de 1979 a 2003, quando foi deposto por outra invasão dos Estados Unidos] contra os xiitas [do Irã, na guerra entre os dois países, entre 1980 e 1988]. Osama bin Laden foi sustentado pelos Estados Unidos contra os xiitas [do Irã] e contra a invasão russa [do Afeganistão]. Isso é uma falta de entendimento do que acontece no Oriente Médio? Aonde é que está o erro disso?

Lawrence Wright: Se quiser que eu discorra sobre a profunda ignorância que os Estados Unidos têm sobre o Oriente Médio, não saberia por onde começar. Fizemos um péssimo trabalho de entender os nossos inimigos e aliados, e é claro... Concordo com Robert, a democratização é essencial para reformar essas áreas. Infelizmente, fizemos tudo errado no Iraque. Acho que levará décadas, se não mais, para os Estados Unidos voltarem a se interessar por qualquer tentativa de incentivo a esse tipo de movimento. Infelizmente, os líderes no Egito, Arábia Saudita, Síria e tudo mais, não têm interesse na democracia porque acabaria com as carreiras deles e de seus filhos também. Eles tentarão impedir isso e uma das maneiras é permitir que terroristas ajam em seu território se decidirmos pressionar muito fortemente pela democracia. Esse é o impasse, agora, da política americana no Oriente Médio. E acho que o governo atual e também aqueles no futuro terão de suplantar os ditadores no poder no Oriente Médio, mas não os forçarão mais, eles se cansaram.

Robert Fisk: Concordo até certo ponto. Acho que a maioria dos árabes gostaria de uma democracia, gostariam de alguns “pacotes” de direitos humanos ocidentais. Mas querem uma liberdade da qual não falamos: querem se ver livres de nós e não estamos dispostos a isso. Só estamos no Iraque por causa do petróleo - é claro que estamos lá por isso! Se o produto nacional do Iraque fossem batatas ou aspargos, os militares americanos estariam em Bagdá? Não, claro que não. Mas insistimos nisso e nunca queremos dizer que existe uma ligação. Vários meses após o 11 de setembro não tratamos das ligações entre o fato e o Oriente Médio. Eram "eles e nós", "eles são maus, odeiam a nós e a nossa democracia". Muitos dos assassinos do 11 de setembro não reconheceriam a democracia nem se dormissem com ela. Esse não era o caso. Depois do 11 de setembro, fiquei repetindo: "Por quê? Por quê? Por quê?" e pessoas como [o advogado e articulista político] Alan Dershowitz, por exemplo, me chamaram de "anti-americano","anti-semita" e "anti-tudo" só por perguntar por quê. Por quê! E a primeira coisa que policiais fazem - e há muito crime aqui, em São Paulo - depois de um crime, o que a polícia faz? É procurar o motivo. Mas, no 11 de setembro, a única coisa que não nos permitiram foi procurar um motivo. [a câmera focaliza Lázaro de Oliveira com um aparente sorriso de curiosidade, interesse] São 19 assassinos, árabes, eles vêm do Oriente Médio. "Há algum problema lá?” O falecido Edward Said disse que este era o último tabu nos Estados Unidos. Podia-se falar de lésbicas, negros e gays, mas não sobre a relação com o Oriente Médio, especialmente com Israel. Isso está fora dos limites da discussão pública. Quando você tem pessoas como Tom Friedman [colunista do New York Times], que deveria ser o precursor das discussões, você, de fato, tem um problema na imprensa americana. Então, a questão do motivo só foi abordada um ano depois, exceto pelo The New Yorker, que fez essa pergunta. Mas, de modo geral, tínhamos medo. A maioria tinha. [Essa] É a conexão! Quero fazer um filme chamado A conexão. [Tony] Blair [primeiro-ministro do Reino Unido de 1997 a 2007] disse, depois das bombas do metrô em julho [de 2005] em Londres, disse que não tinha nada a ver com o Oriente Médio. E ele estava mentindo. Até a polícia dizia que era por causa do Iraque. Aí, um dos assassinos aparece em um vídeo e diz: "É por causa do Iraque". Claro que já estava morto. Precisamos abordar esse problema e ainda não fazemos isso. Esse é o verdadeiro problema do 11 de setembro, que continua até hoje.

Paulo Markun: Bruno.

Bruno Torturra Nogueira: Sr. Fisk, o senhor acha justa a existência do Estado de Israel onde ele está?

Robert Fisk: Escute... É como repetir o que sempre me perguntam: "Acredita no direito de Israel existir?" E a minha resposta é: "Sim, mas dentro de quais fronteiras?" Se estamos falando da Israel de 1948, sim. Se é da Israel antes da guerra de 1967 - isso foi mais aceito pelo mundo e até pela ONU [Organização das Nações Unidas] -, a resposta é "sim". Se é se aceito o lugar onde Israel está agora, ainda engolindo espaço na terra de outros, não. É claro que não. Os assentamentos, as colônias que estão sendo construídas - pelo menos o Le Monde as chama de colônias -, as colônias estão sendo construídas infringindo todas as leis internacionais, assim como o muro -não a cerca, mas o muro [na Cisjordânia]. Elas precisam ser desmontadas. A não ser que voltemos à resolução da ONU 242, que exige a retirada das tropas israelenses de territórios ocupados na guerra de 1967 em troca da segurança de todos os Estados na área, incluindo Israel, não teremos paz entre israelenses e palestinos. Não teremos. E podemos fazer como Blair. Mal posso esperar para ver o nosso caro sr. Blair tentando lidar com o Oriente Médio, usando o seu charme e algumas mentiras aqui e ali. [logo após renunciar ao cargo de primeiro-ministro do Reino Unido, em 27 de junho de 2007 (13 dias antes desta entrevista), Tony Blair foi indicado representante de Estados Unidos, União Européia, Rússia e Nações Unidas para as negociações de paz no Oriente Médio] Não dará certo. A não ser que resolvamos os problemas básicos e tenhamos um mediador de verdade - alguém neutro, não os Estados Unidos -, não teremos paz no Oriente Médio. Os israelenses têm o direito a um Estado seguro. É claro. Mas não nos países dos outros. Mas não nos países dos outros, como tampouco o poderiam os sauditas, os libaneses, os sírios.

Paulo Markun: Marcos.

Marcos Strecker: Eu queria fazer uma pergunta para o Lawrence, mudando um pouquinho de assunto, a respeito da produção do seu livro. Você vem de uma escola de jornalismo muito sofisticada e rigorosa, que é da revista New Yorker. E eu queria perguntar quantas entrevistas você fez para poder produzir o seu livro e como foi o trabalho de produção, checagem de dados. E, também, usando os elementos ficcionais: você disse que tem influência, por exemplo, do cinema e da sua experiência com roteiros...

Lawrence Wright: Entrevistei mais de seiscentas pessoas durante cinco anos e em muitos países. É jornalismo comum, de muitas maneiras, porque o jeito de tratar um assunto como esse é: entrevistar o [subcomandante] Marcos [líder dos guerrilheiros zapatistas na região de Chiapas, no sul do México] e então, perguntar a ele: "com quem mais devo falar?” Aí, você me indica, eu falo com essas pessoas e, então, pergunto a elas com quem mais devo falar e, gradativamente, tudo vai ficando enraizado no solo. Isso é jornalismo. E é maravilhoso quando feito dessa maneira; é a maneira como o ofício foi projetado para funcionar. Ao escrever ficção e roteiros para o cinema, eu aprendi muito em termos de criar cenas e eu os considero totalmente legítimos como ferramenta para um livro de não-ficção. E, quando encontro algo que considero uma grande cena - por exemplo, uma das que eu mais gostei no meu livro foi o ataque à mesquita em Meca em 1979, e entrevistei dezenas de pessoas porque bin Laden foi preso logo depois e foi a família bin Laden que construiu a mesquita. Era muito significativo. Então, passei muito tempo falando com pessoas para criar a cena. E ela também introduziu um dos personagens principais, o príncipe Turki al-Faisal. Gostei muito de ver o seu artista trabalhando aqui. Percebi que tinha uma porção de cores diferentes para escolher na paleta quando pintei essa cena. Gosto de usar personagens, gosto de desenvolver histórias humanas individuais a fim de fazer avançar minha narrativa, porque faz a experiência ficar mais pessoal para o leitor. Uma tragédia de tão vastas proporções quanto o 11 de setembro tem de adquirir uma escala humana. Decidi contar a história através das vidas de três indivíduos, Ayman al-Zawahiri, o médico egípcio que é o cérebro da Al Qaeda; Osama bin Laden, claro; e John O'Neal, chefe de contraterrorismo do FBI de Nova Iorque, morto em 11 de setembro; e, finalmente, o príncipe al-Faisal, chefe do serviço secreto saudita, que trabalhou com bin Laden. Esses quatro homens, dois terroristas e dois contraterroristas, e como as suas vidas se entrelaçaram, contariam a história no meu livro.

Norma Couri: Eu queria perguntar para o Wright uma coisa que o Fisk já respondeu, que é: como é que você vê o Tony Blair como mensageiro daquela região?

Robert Fisk: [risos]

Norma Couri: E eu queria perguntar para os dois se é possível uma Palestina existir um dia, como emergiu uma Bósnia, um Kosovo, ou um Timor Leste? [após, respectivamente, as guerras da Bósnia (1992-1995), de Kosovo (fase aguda em 1999) e de Timor Leste (ocupado pela Indonésia de 1976 a 1999 e vítima de duas guerras sangrentas em 1976 e 1999)]

Lawrence Wright: Para começar, desejo boa sorte ao sr. Blair, espero que seja bem-sucedido. O mandato dele é muito limitado. Como figura política, parece que cometeu um erro. Por outro lado, é um momento de grande movimentação no Oriente Médio. A proposta da Liga Árabe é um plano real para a paz em muitos aspectos. Infelizmente, ele surgiu em um momento em que a liderança em Israel e na Palestina nunca esteve tão fraca, nem mais dividida. Então, é quase como navios que passam. Ainda acho que este é um bom momento para fazer um esforço em obter pelo menos uma paz parcial. Por exemplo, a criação de um segundo Estado palestino. Não sei se isso é possível em Gaza agora [provável referência à crise gerada, naquele momento, pela vitória do grupo palestino Hamas, acusado de terrorismo pelas potências ocidentais, nas eleições legislativas palestinas, em janeiro de 2006]. E não faço idéia de como Gaza irá se encaixar no arranjo final. Mas, se a solução é haver dois Estados, é um momento possível para estruturar nisso. O nosso secretário de Estado parece pensar que não é possível e espero que o sr. Blair tenha uma visão mais otimista.

Robert Fisk: A indicação do sr. Blair é um ato de absoluta insensatez e, da parte dele, de total auto-indulgência. Ele mentiu repetidamente para o seu próprio povo. Então, com certeza, mentirá para todos no Oriente Médio. Ele é visto com muita desconfiança no Oriente Médio, onde as pessoas sabem que ele foi a favor da Guerra do Iraque e, pior ainda, recusou-se a apoiar o cessar-fogo no Líbano [em agosto de 2006, após a guerra entre Israel e o Hezbollah, sediado no sul do Lìbano] e permitiu que centenas de civis morressem em 2006 vítimas de bombardeios israelenses [na mesma guerra], porque apoiou a idéia absurda do presidente Bush de que os israelenses venceriam e limpariam a sua barra – o que eles jamais conseguiriam. [O Hezbollah sobreviveu à guerra, o que foi considerado por muitos, inclusive por parte da opinão pública israelense, como uma derrota do Exército de Israel] Blair é muito desacreditado. É um ato de total auto-indulgência aceitar essa tarefa, mas ele é um homem muito auto-indulgente. Nunca vi tanta falta de esperança no Oriente Médio e acho que, [com ênfase] se as forças israelenses não recuarem de fato, se não saírem dos assentamentos e se não os fecharem, se não se estabelecer a parte leste de Jerusalém como a capital dos árabes e a parte oeste de Jerusalém como a capital dos israelenses, não há nenhuma esperança! Podemos até dizer: "é um momento ruim, porque o governo israelense está enfraquecido e Mahmoud Abbas [presidente da Autoridade Nacional Palestina, que governa a parte autônoma dos territórios palestinos] é fraco". Mahmoud Abbas não venceu a eleição, foi o Hamas e nem falamos com eles. É um absurdo! A situação no Oriente Médio está explosiva mais ainda do que em 11 de setembro e ainda dizemos: "Talvez possa acontecer a solução com dois Estados" e "Tony Blair está vindo". É insensatez até pensar nisso. Estamos bem em cima do limite e ninguém está falando em termos reais. Esse é o verdadeiro problema.

Lázaro de Oliveira: Mr. Fisk, o escritor português [na verdade, moçambicano] Mia Couto, um africano, ele diz que o terrorismo - desculpe usar esta palavra, mas é a palavra que ele usou - disse o seguinte: que o terrorismo seria um grito para chamar a atenção sobre determinadas situações. O povo árabe, desde a criação do Estado de Israel, que não deixou criar o Estado Palestino, desde então vem provocando esses atos de terrorismo - mais uma vez, perdão pelo “ato de terrorismo”. Tem dado certo, isso? Qual seria um outro movimento do povo palestino para poder resolver essa questão?

Robert Fisk: Darei um exemplo: Tom Friedman é amigo meu, mas considero os seus artigos sobre o Oriente Médio ridículos. Ele disse: "Por que os palestinos não fazem como o Mahatma Gandhi [Mohandas Gandhi (1869-1948), que liderou a independência da Índia por meio de um movimento de resistência pacífica e da pregação da não-violência e da verdade] e fazem tudo pacificamente?" Quando [os israelenses] fizeram o muro, palestinos e outros Estados árabes foram ao [Tribunal Internacional de] Haia [na Holanda] e o Tribunal Internacional decidiu a favor deles, disse que o muro era ilegal. Foi tudo pacífico, sem terror e Israel disse: "Danem-se, não ligamos, construiremos o muro". E acabou-se o progresso pacífico dos palestinos. Se eu fosse palestino, o que concluiria? Que as tentativas para uma paz real não funcionam! Para os palestinos, a invasão materializada com os assentamentos é um ato de terrorismo na terra deles. Você diz: "Para os palestinos. E para os israelenses?" Em minha opinião, os palestinos cometem erros terríveis. O sistema de homens-bomba é imoral, eles são carrascos, matam crianças e sabem disso. Não há desculpa para os homens-bomba. Mas, se você não pode progredir na sua demanda moral por uma terra que lhe pertence, protegê-la, tê-la e criar um Estado pacificamente, o que acontecerá? Haverá uma explosão. E o que dirão? "É terror! É terror, é terror!" Se me mudar para a sua casa e deixar a sala para você, mas tomar dois quartos e a sua cozinha, e eu disser que quero o seu quintal ou os fundos da casa, e você se zangar, e eu disser "não se zangue", e você jogar uma pedra, direi: "você é terrorista!" Esse é o problema...

Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo, voltamos em um instante com este programa que faz parte da Edição Especial do Roda Viva na Festa Literária Internacional de Parati. A gente volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, que entrevista, hoje, uma dupla de jornalistas e escritores: Robert Fisk, do jornal inglês The Independent, e Lawrence Wright, da revista The New Yorker. Eles vieram para a Festa Literária Internacional de Parati, no litoral do Rio de Janeiro, onde nós montamos este cenário para a série especial de programas. Eu queria perguntar aos dois, começando pelo Lawrence, o seguinte: o jornalista, o correspondente de guerra é um personagem mitificado, na minha visão, e muito valorizado. E cada dia menos presente no cenário. A gente vê em filmes, em livros, em romances, sempre aquele sujeito tomando um uísque caubói depois de uma extenuante batalha. Mas a realidade hoje é outra. São os jornalistas inseridos dentro das tropas que mal conseguem ver aquilo que se passa. Esse é o primeiro ponto. E o segundo: com impossibilidade de trafegar de um lado para o outro - porque as batalhas e as posições ficam tão radicalizadas que você não tem essa possibilidade que, em uma guerra mais convencional, talvez fosse possível - a pergunta que eu faço é se resta alguma função para esse jornalista correspondente de guerra nas guerras de hoje.

Lawrence Wright: É uma pergunta interessante. Acho que a sua observação é muito boa porque, até certo ponto, as guerras mudaram e os exércitos nunca quiseram um correspondente livre, sempre quiseram ter um certo controle. Mesmo durante a Guerra Civil nos Estados Unidos [1861-1865], havia oficiais de informação que controlavam o fluxo de notícias. E, até certo ponto, o trabalho da imprensa é driblar o controle e descobrir o que acontece. Não sou contra ter repórteres inseridos [embedded] no meio dos soldados, porque eles obtêm informações - nem todas, mas pelo menos algumas. E você tem um repórter em campo no momento em que as batalhas estão acontecendo. Então, dou muito valor... É difícil para um repórter, sem esse tipo de proteção, movimentar-se em um campo de batalha. Mas o truque é sempre achar uma maneira de driblar a fonte oficial de informações. E, assim, você consegue falar com os dois lados.

Robert Fisk: Primeiro, eu não sou correspondente de guerra, mas do Oriente Médio. Não é minha culpa que façam guerra para resolver problemas. Não apóio a inserção de correspondentes com as tropas porque no fim do dia, quer estejam de farda ou não, têm uma obrigação para com os exércitos, fazem amizade com os soldados, e isso é inevitável, dependem dos exércitos para ter comida, água, proteção, segurança e comunicação. Então, não serão muito rudes em relação aos soldados. E o fato de aceitarem estar "inseridos" [embedded], que é uma frase horrível [um dos sentidos de embedded é "na mesma cama"], me surpreende. Eu acho possível se deslocar sem se envolver no sistema. Na Guerra do Golfo, em 1991, eu me deslocava na Arábia Saudita e no Kuwait sem nenhum apoio militar. Geralmente, eu me juntava aos soldados do Kuwait que gostavam da minha companhia, mas eu não dependia deles para me comunicar. Viajei muito pelo Iraque, durante bombardeios dos Estados Unidos, na invasão de 2003. Não era perfeito, eu não podia ir para onde quisesse, mas... Na Sérvia, viajei muito sozinho sob o ataque aéreo da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] [o ataque aconteceu em 1999, para forçar as tropas da Sérvia a deixarem Kosovo] porque, depois de um tempo, os iugoslavos se deram conta de que eu não era um espião. Eles não querem necessariamente impedir que você relate a verdade, como gostariam, só ter certeza de que o repórter não é um espião – e, infelizmente, às vezes, eles são. Depois que têm certeza de que você não é espião, você tem mais liberdade, mesmo que não gostem do que escreve. Mas você tem de continuar, não pode parar e dizer: "não me deixam escrever, estou sendo censurado." Quando tentam, mostro a versão censurada e publico a minha. E, se ficam zangados depois, problema deles. O problema é que nosso trabalho é desafiar o nosso próprio pessoal, assim como o inimigo. A grande jornalista israelense Amira Haas, da Haaretz, disse que o dever de um correspondente internacional é monitorar os centros de poder, não o exército, que se desloca. [levanta a voz] Monitorar os centros de poder e desafiar as autoridades, especialmente quando vão à guerra. Mesmo que o chamem de antipatriota e subversivo, desafie a autoridade! Não costumamos fazer isso. Veja as coletivas de imprensa de 2003 do quartel-general "aliado" do Catar [pequeno país do Golfo Pérsico alinhado com os Estados Unidos]. Eram patéticas! Em vez de dizer: "Por que vocês dizem que mataram toda essa gente em uma tentativa de bombardear Saddam Hussein?", a pergunta foi: "Que tipo de bombas usou, general?" Eles foram específicos, se ativeram ao detalhe militar e não à questão moral. E o nosso trabalho é desafiar a autoridade. Se tivéssemos feito isso antes da guerra, teríamos exposto as armas de destruição em massa como mito. Mas escolhemos aceitar a versão do New York Times, que disse que eram reais. Mas não eram. É o nosso trabalho e devemos fazer o mesmo com os Saddams, Assads [referência aos ditadores Saddam Hussein e Hafez Al-Assad, este presidente da Síria de 1971 a 2000], os Mubaraks [referência a Hosni Mubarak, presidente do Egito desde 1981], os reis da Jordânia, Arábia Saudita, o rei de Barein e todos os outros emirados que chamamos de "moderados", e a quem apoiamos, e com aqueles a quem não apoiamos. Mas não fazemos isso, aceitamos tudo e nos satisfazemos em dizer: "Não seremos preconceituosos, mostraremos este lado e aquele lado” e “que tipo de bomba eram, general?" Existe uma questão moral. A guerra não é uma questão de vitória ou derrota. É fundamentalmente o fracasso total do espírito humano e nós aceitamos isso para aumentar a circulação pela emoção, pelas imagens. Por que, sempre que vemos uma guerra no Oriente Médio e vemos a CNN ou a Fox e há uma manchete dourada enorme, como no filme Ben-Hur: [cantarolando o tema principal do filme] bam bam, bam bam... "Guerra no Golfo: Parte 15". Isso é absolutamente imoral, não é jornalismo.

Josélia Aguiar: Pelas críticas que o senhor faz, a impressão é que o senhor acha que a imprensa americana é a pior do mundo. É a pior do mundo? E eu queria também perguntar o que o senhor acha da imprensa árabe. Se o senhor acompanha, enfim, se há diferenças entre os países árabes...

Robert Fisk: Sim, acompanho. A imprensa árabe, com exceção do Líbano, é insondável, bajuladora, subornada, apavorante, horrorosa, não-confiável e mentirosa. Não vou medir palavras. O problema da imprensa dos Estados Unidos é que ela ainda mantém essa reputação de ser corajosa, de insistir na queda de governos, Watergate [caso de corrupção nos Estados Unidos que levou, após uma investigação do jornal The Washington Post, à renúncia do presidente Richard Nixon em 1974] e etc, quando, na realidade, é um peixe enorme e gordo que fica parado lá, temendo ofender o poder. Quando leio o New York Times - algo que procuro evitar, mas quando estou em Nova Iorque, não tenho muitas opções - e leio a sua cobertura do Oriente Médio, essa versão subserviente e dessemantizada da realidade... O Oriente Médio do New York Times é incompreensível porque eles morrem de medo. Seymour Hersh, um velho amigo, que é nova-iorquino, um dos grandes repórteres investigativos dos Estados Unidos - e estou certo que Lawrence concorda -, Seymour Hersch me disse outro dia, quando nos encontramos em Manhattan: "Não se ganha pontos adicionais no Times por chatear o governo com um furo". E essa é de Seymour Hersch, que cresceu como repórter de rua no Chicago Tribune. Ele não fez faculdade, não se formou em Harvard e foi para o New York Times. Ele estava lá, escavando, para descobrir a história e ainda faz isso. Mas, no geral, nos principais jornais diários dos Estados Unidos - e Lawrence pode ou não concordar comigo -, você não tem isso, ou só tem quando é algo como a posição terrível dos imigrantes mexicanos que cruzaram a fronteira. Mas, quando o assunto são questões internacionais, a não ser que os Estados Unidos queiram revelar algo, não se tem uma investigação. E é por isso que, mesmo quando dois acadêmicos universitários queiram publicar, mesmo nos Estados Unidos, uma grande reportagem sobre o lobby israelense nos Estados Unidos, foi uma publicação do meu país, The London Review of Books, uma revistaria literária comparativamente pequena, que se dispôs a publicar mais ou menos a versão integral. A imprensa americana é bem insondável. A britânica não é fantástica, mas a européia está muito à frente da americana.

Marcos Strecker: Eu queria perguntar para o Robert Fisk dois aspectos. Primeiro, eu reli, antes de vir para cá, aquele famoso artigo que você escreveu quando estava no avião, no dia dos ataques, em setembro de 2001. E me chamou muito a atenção que parecia quase uma justificativa dos ataques. Eu acho que é o risco deste seu discurso - quer dizer, que você quase pode estar justificando os ataques, sempre tentando ver o lado mais fraco. E uma segunda pergunta é: em toda guerra, todo mundo sabe que a primeira vítima é a verdade. Você não corre o risco de ser manipulado? Por exemplo, quando você faz uma entrevista com o bin Laden ou com alguém da rede dele, você não está correndo o risco de estar reproduzindo um dos lados? Quer dizer, na verdade você pode estar sendo manipulado...

Robert Fisk: Todos tentam nos manipular, os bin Ladens, os Zawahiris [Ayman Al-Zawahiri, um dos principais líderes da Al Qaeda], os Bushs e Blairs - e não são todos iguais, mas todos tentam manipular, é claro. Em 11 de setembro, a bordo daquele avião, vi que nenhuma autoridade perguntaria por quê. E precisávamos fazer a pergunta, tínhamos de saber o motivo desse crime internacional contra a humanidade. E sugerir os motivos é o dever do jornalista. Não significa que damos aos outros o direito de jogar aviões em prédios. Já convivi com mais violência do que você jamais verá em toda sua vida e sou totalmente contra qualquer violência e guerra, independente do motivo. E isso inclui a violência de bin Laden. Mas este é o âmago da questão: se, como jornalistas, não fazemos perguntas difíceis porque temos medo que digam: "Está sendo manipulado"... Mas não deveríamos estar com medo nessa ocasião. Nem quando dizem: "Está dando viabilidade aos assassinos". Isso é ridículo! Sou manipulado por bin Laden? Nunca pedi para vê-lo, ele pede para me ver e, toda vez, espero um mês. Não permito que estale os dedos e chame o The Independent. Eu não aceito isso. Ele tem de esperar. Mas, quando vou lá, faço perguntas bem difíceis e ele não gosta. Mas ele acredita que represento o que ele diz sem aquela moldura terrorista de sempre. Suponho que seja o motivo, estou imaginando isso, não sei, ele nunca me disse. E ele pediu para me ver depois de 11 de setembro, que seria uma entrevista terrível. Mas, infelizmente, não pude vê-lo no Afeganistão, porque houve um ataque aéreo dos Estados Unidos e os talibãs, que supostamente são mártires, tiveram medo demais para seguir comigo. Escutem, vamos tentar entender os nossos inimigos ou não? Como eu disse, Montgomery, na Segunda Guerra Mundial, viajava com uma foto de seu inimigo mortal no trailer porque queria saber como funcionava o cérebro do general Rommel, da Wehrmacht [as Forças Armadas nazistas]. E nós precisamos saber como o cérebro de bin Laden funciona. Se não vamos vê-lo por medo de sermos acusados de sermos "manipulados", não saberemos nada, não saberemos como ele pensa. E precisamos saber. Vou voltar ao que disse antes. [ouve-se, ao fundo, um barulho forte do motor de um barco próximo, que é mostrado logo após, nas imagens] A história da Al Qaeda é essa: estamos preparados para trazer justiça a todos os povos do Oriente Médio? E isso inclui a segurança de Israel. Estamos preparados para fazer isso ou não? Ou vamos nos envolver só porque queremos controlar a área militarmente? Existe um problema agora. Deixamos bin Laden falar das Cruzadas. Eu ri dele da primeira vez que falou das Cruzadas. Antes do Natal de 2006, eu escrevia um artigo para a nossa revista The Independent on Sunday e calculei que, por cabeça, nós, ocidentais, temos 22 vezes mais tropas ocidentais na região muçulmana do Oriente Médio do que os cruzados tinham em 1187, quando da queda de Jerusalém. Temos algum tipo de tropa no Uzbequistão, Cazaquistão, Afeganistão, Paquistão, Jordânia, Turquia, Egito, Argélia - Forças Especiais dos Estados Unidos - estamos no sul do Saara, estamos no Qatar, em Bahrein, no Kuwait, na Arábia Saudita, em Omã, estamos no Iêmen... Meu Deus! O que estamos fazendo lá? O que estamos fazendo? Os árabes me perguntam isso. E eu não sei! Mas o que você pensaria ao ouvir como nos preocupamos com a manipulação de jornalistas ou com as pessoas perguntando porque há árabes chateados ou porque usam aviões nesses ultrajantes, repulsivos crimes contra a humanidade? Precisamos pensar nisso. O que fazemos lá? Precisamos olhar isso do outro lado da prisão, perguntar "por que" e não queremos fazer isso. E enquanto não fizermos isso, continuaremos dizendo: "Lutaremos contra o terror, e não importa o custo, prevaleceremos". Bush até disse, depois de 11 de setembro: "A guerra contra o terror pode durar para sempre". Isso é totalmente... Há uma palavra em francês – enfantilisme - e não quer dizer "infantil", mas "coisa de bebê". O que isso significa? Essa é a herança dos nossos filhos, netos e bisnetos? Precisamos levar justiça a essa região! E se não estamos prontos para isso, temos de sair! E não queremos sair. E não saímos. E mandamos mais soldados, mais Humvees [sigla para Veículo Multipropósito de Alta Mobilidade com Rodas, carro militar], mais helicópteros Apaches, mais espadas e mais cavalos para lá. É um problema.

Norma Couri: A pergunta é para os dois: se vocês acham que há uma saída honrosa para o Bush do Iraque, uma saída que não seja tão vergonhosa quanto a do Vietnã. Um. E dois: se vocês acreditam que o Bush vai invadir o Irã em 2008. [referência à crise entre Estados Unidos e Irã, acusado pelos estadunidenses de estar desenvolvendo um programa nuclear com fins militares; as tentativas de inspeção das instalações nucleares iranianas por funcionários da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) lembram, para muitos, as dificuldades da AIEA de inspecionar as instalações nucleares iraquianas, que precederam a invasão dos EUA ao Iraque em 2003]

Lawrence Wright: Não, ele não invadirá o Irã. Ele não tem as tropas e não tem a autoridade política para fazer isso. Se você acha que isso vai acontecer, é um blefe. Pode ser um blefe bom ou ruim, mas a verdade é: o povo americano não agüenta mais. Até o partido de Bush o está abandonando na questão do Iraque. Não irão segui-lo para o Irã. Então, não devemos nos preocupar com o Irã. Em relação ao Iraque, esse é um desastre não-partidário. Nenhuma figura política nos Estados Unidos propôs uma solução que tenha encontrado eco entre os americanos sobre o que devemos fazer. Até mesmo aqueles que defendem a retirada imediata reconhecem que pode ser uma decisão catastrófica. E os que gostariam de ficar reconhecem que podemos não vencer – e, por "vencer", quero dizer “preservar um Iraque unificado de maneira estável”. Pode não ser possível. Mas é nossa obrigação moral. Tendo cometido o erro de invadir o Iraque, temos a obrigação moral de fazer o possível para ajudar o povo iraquiano a manter as coisas unidas pelo tempo necessário, a criar um país estável? Em minha opinião, sim. Mas podemos não conseguir. E acho que todo americano sente que estamos em uma encruzilhada não só no Iraque, como no mundo.

Robert Fisk: Em um mundo perfeito, no qual infelizmente não moramos, o sr. Bush devia fazer o que Blair deveria ter feito, que é renunciar envergonhado e pedir desculpas aos americanos, como Blair aos britânicos, pelos erros terríveis, que incluem numerosas mentiras. Mas não vivemos nesse mundo perfeito. Acho que os israelenses podem ser induzidos a bombardear o Irã e talvez a Força Aérea dos Estados Unidos ou forças navais com aviões podem ser induzidas a isso, mas, no momento, Washington não tem estômago para isso. Iraque: os americanos devem sair, eles sairão e eles não podem sair. Essa é a equação que transforma areia em sangue. Há menos de quatro meses, um dos maiores grupos insurgentes me mandou a sua lista de exigências em Beirute para permitir a partida dos americanos: negociações públicas com o embaixador americano; negociações públicas com o comandante americano; a negação total de todas as leis estabelecidas por Paul Bremer, o segundo procônsul dos Estados Unidos no Iraque [ou seja, chefe da administração estadunidense no país]; a negação de todas as leis que tiram do povo iraquiano o controle sobre os campos e as reservas de petróleo; e para o governo dos Estados Unidos negarem a legitimidade do atual governo do presidente [na verdade, primeiro-ministro, Nouri Al-] Maliki - e é claro que os Estados Unidos nunca farão isso agora. Mas foi assim que as negociações começaram entre a insurgência na Argélia [guerra pela independência de 1954 a 1962] e os franceses, com [o presidente da França, Charles] de Gaulle em 1960, 1961 e 1962 [e que levou à independência do país nesse último ano]. Pode-se negociar quanto a isso. Mas existe outra questão, que Lawrence levantou: como isso será apresentado ao povo dos Estados Unidos - e já há sinais. David Brooks, no New York Times, e Raph Peters, ex-oficial do Exército, do USA Today, já escrevem artigos que ganham espaço, dizendo: “Os iraquianos não valem o nosso sacrifício, não estão à altura do nosso nível de civilização. Achávamos que sim, queríamos ajudá-los, mas não nos querem. Voltarão às lutas tribais. Eles não nos merecem.” Diminuímos o povo iraquiano ao nível de animais para não sermos mais culpados! “Fizemos o máximo, seguimos as ordens, mas não deu certo. Não nos culpem.” E suspeito que essa será a base no chão do deserto que permitirá a saída dos nossos tanques.

Paulo Markun: Vamos fazer mais um rápido intervalo e, daqui a instantes, nós voltamos com outro bloco desta edição especial do Roda Viva na Festa Literária Internacional de Parati 2007. A gente volta já, já.

[intervalo]

Paulo Markun: Voltamos com o Roda Viva na Festa Literária Internacional de Parati 2007. Nossos convidados são, hoje, os jornalistas Robert Fisk, correspondente do jornal britânico The Independent e Lawrence Wright, jornalista da revista americana The New Yorker. Eles são escritores, têm dedicados livros e artigos aos conflitos armados no mundo, em especial no Oriente Médio. Bem, Lawrence, eu queria que você retomasse a questão que você estava debatendo durante o intervalo, porque, como a gente não estava gravando, eu acho que é justo termos isso ao vivo.

Lawrence Wright: Fiz uma pergunta a Robert, porque o cenário que você [dirigindo-se a Robert Fisk] pintou foi o da retirada covarde.

Robert Fisk: Só a retirada. Toda retirada, por natureza, é covarde.

Lawrence Wright: Mas parece que você a estava condenando e estou imaginando se, em sua opinião, as forças ocidentais devem permanecer no Iraque.

Robert Fisk: O projeto, esse projeto ridículo do Iraque e do Oriente Médio acabou. O Iraque virou um inferno e precisamos sair. E a única coisa que nós podemos fazer – nós: o Ocidente, a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e quem nos apóia - é negociar diretamente com os insurgentes. E, de certo modo, já estamos fazendo isso. Os Estados Unidos já estão armando insurgentes sunitas para combater a Al Qaeda [isto é identificado por muitos analistas como a principal causa da diminuição da violência no Iraque desde agosto de 2006] Nós não podemos combater a Al Qaeda; caberá aos iraquianos, depois que partirmos. Em algum momento, teremos de falar com Muqtada al-Sadr [um dos principais líderes da resistência xiita à ocupação estadunidense no Iraque e ao governo iraquiano; sua milícia sustenta uma trégua desde agosto de 2007]. E falaremos. Nós dizemos: "Não pode haver influência iraniana". [tanto o Iraque quanto o Irã têm governos xiitas] O governo iraquiano é controlado pelo Irã! Eles cresceram no Irã; o partido deles, o Dawa, foi formado no Irã. Para nós, acabou. Precisamos negociar uma saída rapidamente. Você diz: "Precisamos reparar o nosso erro de entrar ficando e pensando em como ajudar os iraquianos." [olhando para Lawrence Wright] E cometer outro erro ao ficar? Não, temos de sair! Eles nos querem longe de lá! O Oriente Médio, como povo, quer que vamos embora. Eles estão felizes por ter o que acham uma relação madura e podem não tratar as mulheres e ter a democracia que queremos. Lamento, mas eles querem que a gente saia.

Lawrence Wright: Mas... E se não concordarem com os termos um do outro? Quero dizer...

Robert Risk: Os Estados Unidos escolherão os melhores termos de retirada e sairão. Acabaram-se os dias de "queremos negociar". Os franceses, no fim, saindo da Argélia, diziam: "Não queremos sair dos desertos da Argélia porque ainda queremos o petróleo e usar o deserto para testar armas nucleares." Os argelinos disseram: "Fora, fora, fora!" E os franceses saíram sem nada. E será o mesmo com os Estados Unidos. Eles não podem ficar, não ficarão, não dará certo. Acabou. E você diz: "Vamos negociar". Negociaremos com quem for possível. E aceitaremos qualquer proposta, gostando ou não. Não é uma questão moral, mas militar. Como você disse muito bem, os Estados Unidos não têm como sustentar isso e os britânicos também não. Já recuamos para uma base aérea no deserto em Basra para não sermos mortos. Estamos fora! Estamos acabados, acabou. Precisamos partir da premissa de que acabou e dizer: "Como tiramos essa gente?"; "Não queremos deixar os iraquianos na mão". Já os estamos deixando na mão desde 2003, quando os invadimos ilegalmente. Pelo amor de Deus, deixem-nos em paz!

Bruno Torturra Nogueira: Sr. Fisk, o senhor vive e cobre uma região onde a fé é uma questão de vida ou morte. Eu queria saber se o senhor acredita em Deus e se isso de alguma maneira afeta seu trabalho?

Robert Fisk: Escute, vivo em uma região onde a fé ainda existe. Na maior parte do mundo, ela desapareceu. Uma das coisas que os muçulmanos me dizem, no Iraque e no Afeganistão, é como podemos continuar nos metendo em seus países quando eles mantiveram a fé e nós a perdemos. Não é por acaso que os nossos artigos se chamam: "Os muçulmanos e o Ocidente" e não "Os muçulmanos e os cristãos". Porque não restam muitos cristãos, não é? Esse é um dos nossos maiores problemas atuais. Então, moro em um lugar onde as pessoas têm fé e eu não tenho que ser muçulmano.

Lawrence Wright: Eu moro no Texas... Então, posso afirmar que...

Robert Fisk: Sim, já estive no Texas [risos] e em alguns outros lugares, inclusive na Geórgia [estado dos EUA]. Restam alguns cristãos no Texas, já entendemos.

Lawrence Wright: Nos Estados Unidos, 98% do país acredita em Deus.

Robert Fisk: E 98% da Grã-Bretanha não acredita. Aí está. Se acredito em Deus? O meu motorista e o meu mediador... O meu mediador é xiita e o meu motorista é sunita. Fui criado como cristão e não sei o que sou agora. Estávamos nas montanhas do Líbano recentemente e perguntei: "Há vida depois da morte?" O motorista, sunita, disse: "Não, é o fim. O mundo continua sem você". E o mediador, xiita, disse que não sabia e perguntou: "Sr. Robert, há vida após a morte?" E eu disse: "Olhe as montanhas, são lindas e brancas e vemos as árvores no inverno diante delas e o céu azul claro, e falamos na língua dos anjos. Não me diga que isso surgiu porque duas nuvens de gás chocaram-se uma contra a outra há seis bilhões de anos". Mas só vou dizer isso. Chega. Acabou.

Lázaro de Oliveira: Mr. Wright, na entrevista que o senhor deu ao programa Metrópolis, você acabou respondendo, no final, à seguinte questão: por que os jornalistas encontram Osama bin Laden e os Estados Unidos, não? Você deixou na dúvida, provavelmente que não interessa aos Estados Unidos. E, agora, eu me refiro ao mr. Fisk, que diz o seguinte: que o Paquistão tem talvez hoje a pior situação hoje com os extremistas. Com o fim do Osama bin Laden, o Paquistão pega fogo?

Lawrence Wright: Uma das minhas perguntas no momento é: "Sabemos onde bin Laden está e decidimos não pegá-lo?" Não digo que sabemos exatamente onde está, mas, em termos gerais, parece que está nas Áreas Tribais [região conturbada do Paquistão, vizinha à fronteira com o Afeganistão], que são relativamente pequenas, montanhosas e difíceis - mas há satélites patrulhando a área constantemente, há aviões Predator filmando a área o tempo todo, há soldados das Operações Especiais lá. É realmente concebível que, após cinco anos e meio, ele esteja nesse local e não sabemos como achá-lo? Também é possível que saibamos onde está, mas que o custo de pegá-lo seria tão alto em termos de desestabilização do Paquistão, que temos medo de pagar esse preço? A minha opinião é esta: acho que o Paquistão não é tão instável quanto se gosta de mostrar. É um país que tem armas nucleares e isso preocupa o Pentágono, mas já tiveram um presidente islâmico extremista e nada aconteceu. É um país cujo exército é dono de quase tudo que tem valor e isso oferece uma certa estabilidade antidemocrática. Mas o exército não permitirá que o Paquistão se acabe, porque é a pensão deles, os hotéis e imobiliárias e existe um aspecto democrático nisso, porque você pode entrar para o exército. Então, há muitos paquistaneses no exército proprietários de muitas coisas importantes no Paquistão. Então, acho que é um país muito mais estável do que os estrategistas militares dos Estados Unidos imaginam.

Robert Fisk: Ha ha! Eu acho que o Paquistão é o estado muçulmano mais perigoso que existe no planeta hoje. Está cheio de gente que apóia o Talibã, o ISI [Direção de Inteligência “Inter-Service”], que é o serviço secreto do Paquistão, que supostamente trabalha para o presidente, ainda apóia os talibãs, simpatiza com bin Laden e pode ser que bin Laden ainda esteja no Paquistão. Se estiver em Karachi, a maior e mais perigosa cidade da área, deve estar seguro. E o Paquistão tem uma bomba [nuclear]! E estamos preocupados com a crise no Irã, que, aparentemente, sequer tem uma arma nuclear agora. A crise real está no Paquistão, mas, como [Pervez] Musharraf [ditador do Paquistão de 1999 a 2008] é aliado na guerra contra o terror, tudo bem. [indicando Lawrence Wright com a mão aberta:] Dizer que é uma democracia porque você pode se alistar no Exército... Você pode se alistar no exército de Saddam e isso não faz do Iraque uma democracia, não é? O Paquistão é um perigo, mas o Irã, não. E, porque temos o "Eixo do Mal", a fantasia na Casa Branca entre [o vice-presidente Dick] Cheney e Bush, suponho - porque não sobraram muitos -, devemos acreditar nisso. Estou falando do Paquistão faz um ano e três meses, bem antes da loucura da Mesquita Vermelha [ocupada por insurgentes contra o governo, a Mesquita Vermelha, em Islamabad, foi invadida em julho de 2007 pelas Forças Armadas paquistanesas, o que resultou na morte de cerca de 154 pessoas], dos sintomas dos profundos males do Paquistão. Democracia? Nunca haverá democracia no Paquistão. É um Estado totalmente corrupto e corrompido, como você deu a entender. Como Estado, está acabado. O perigo é o Paquistão, não é o Irã, não é a Síria, nem a Jordânia, nem o Líbano, nem o Hezbollah, é o Paquistão. É a notícia mais perigosa, e mais importante, no sudoeste do mundo muçulmano asiático - não no Oriente Médio, no sudoeste do mundo muçulmano asiático. E ainda assim, se ler a Folha de S. Paulo e os outros jornais amanhã, será “Irã, Irã, Irã”, e não “Paquistão, Paquistão, Paquistão”, em sua grande maioria.

Paulo Markun: Vocês trabalham para publicações impressas e usam o livro como instrumento de divulgação das suas idéias, das suas reportagens, enfim, do seu trabalho jornalístico, em um outro patamar. Mas nós vivemos em um mundo em que a internet é cada dia mais presente. E, na internet, existem muitos - milhares, talvez milhões - de “jornalistas” que não são jornalistas, escrevendo momentaneamente, diariamente, instantaneamente, em blogs, em outro tipo de publicação. No caso da Coréia do Sul, existe um jornal que chegou a eleger um presidente da República sendo produzido cooperativamente [refere-se ao Oh my News!, publicação eletrênica cujo lema é "todo cidadão é um repórter"]. Como é que vocês enxergam este cenário do "novo" jornalismo, esse “novo” em que nós, jornalistas, temos menos papel preponderante e muito mais gente para escrever?

Lawrence Wright: Certo. Estou dividido com relação a isso. Por um lado, acho que é a melhor coisa do mundo: eu amo a internet e amo o poder que ela traz às pessoas comuns. Acho ótimo que as pessoas entrem em discussões públicas. Isso é ótimo, todas essas coisas são maravilhosas e vêm em um momento em que os jornais estão entrando em colapso no mundo todo. E vejo esse fenômeno claramente nos Estados Unidos: jornais metropolitanos diários estão dispensando repórteres. Então, o establishment jornalístico não é tão potente quanto antes. E hoje, há mais gente do que nunca lendo jornais nos Estados Unidos, mas estão lendo online e os jornais não faturam com isso. Então, ocorrem demissões. O que me preocupa é que as tradições do jornalismo, a checagem dos fatos, a responsabilidade, estão sendo sacrificadas em uma época em que essa onda enorme de blogs, que não têm obrigações, está vindo e levando tudo. Então, não há resistência suficiente na comunidade jornalística neste momento para arbitrar [no original, arbitrate, que também pode ser entendido como mediar acordo entre partes] sobre esses fatos. Eu amo a internet, acho ótima, mas também amo a imprensa e ela precisa ser fortificada, porque está enfraquecida.

Robert Fisk: Está fazendo essa pergunta a alguém que não tem endereço de e-mail, não usa a internet e não tem a intenção de fazê-lo. Todos os meus arquivos estão em papel, como antigamente. E o meu jornal, que está online, me telefona e me pede para checar algo sobre o Oriente Médio porque deve estar nos meus papéis, eles não têm arquivado. De muitas maneiras, a internet virou uma comunidade de ódio. Há acusações homicidas contra a minha pessoa e o incentivo à minha morte na internet, que sou incapaz de impedir! É ultrajante, não há nenhum senso de responsabilidade, não há como verificar - e mais perigoso ainda é o fato de que a internet, para muitos, é uma total perda de tempo. Um cara do Boston Globe veio me ver em Beirute recentemente. Ele disse: "Robert, deveria se conectar à internet! Antes do meio-dia, li o Los Angeles Times" - lá vamos nós novamente - "li o Washington Post, o New York Times, o Jerusalem Post, o Daily Star, o Daily...". Eu disse: "Até o meio-dia, já fiz três entrevistas e estou mandando uma história para o meu jornal! Por que perde o seu tempo com essa coisa sem sentido?” Eu acho que o problema real da internet é a total falta de responsabilidade. Você não pode acreditar no que lê. Em um jornal, você sabe que se mentir há grandes chances de acabar em um tribunal e pagar uma fortuna à pessoa sobre quem mentiu. Na internet, você pode dizer o que quiser, pode ser um molestador sexual, pedir a morte de alguém. Houve uma situação em que John Malkovich - o ator - afirmou que queria atirar em mim. Ele disse isso no Oxford Union, na Grã-Bretanha. Que coisa ultrajante para se dizer. Imediatamente, na internet, vieram os blogs das pessoas. Londres me enviou cópias. Diziam: "Está furando a fila." Havia sangue caindo em mim e uma pessoa batendo na minha cabeça. Por que devo gostar disso? Tudo graças à internet. Eu não acho que a internet seja uma alternativa para os jornais. O fato das pessoas a usarem é um sinal da pobreza informativa dos jornais. Não fôssemos tão covardes ao falar sobre o Oriente Médio, por exemplo, as pessoas nos leriam, não apelariam para a internet. Nesse aspecto, internet é um sinal do nosso fracasso. Mas como instituição, enquanto contiver tanto ódio, tanta imprecisão e tanta irresponsabilidade, como jornalista, eu acho que não presta.

Norma Couri: Bom, eu queria perguntar sobre o Líbano. Que vivia uma democracia admirável, étnico-religiosa, e as coisas foram...

Robert Fisk: Sim, eis o ponto...

Norma Couri: E, depois, as coisas foram piorando, principalmente depois do assassinato do Rafik Hariri [ex-primeiro-ministro do Líbano, contrário à presença de tropas sírias no país; o episódio, em 2005, desencadeou grandes manifestações populares (a Revolução dos Cedros), que resultou na saída das tropas no mesmo ano]. O que vai acontecer ali, naquela região explosiva - Líbano, Palestina, Israel, conflito território-religião, ninguém quer ceder nada... ? O que vai acontecer ali? O senhor mora ali há quarenta anos, é isso?

Robert Fisk: 31.

Norma Couri: O senhor fala árabe? Eu já li que o senhor fala muito bem árabe e que o senhor não fala árabe, eu não sei...

Robert Fisk: Eu cometo erros, mas alegra-me dizer que os árabes, também.

Norma Couri: E o senhor escreve?

Robert Fisk: Sim, sei escrever. Olhe... A guerra no Líbano é entre os Estados Unidos e o Irã. Americanos usam israelenses, iranianos usam o Hezbollah e também os sírios, e os Estados Unidos apóiam o governo democraticamente eleito de Fuad Siniora e é por isso que o pobre Siniora agora é chamado "chefe do governo apoiado pelos Estados Unidos". Que coisa terrível para ser chamado no Oriente Médio. Toda crise no Líbano é pior do que a anterior e cada batalha é mais custosa. Está em queda livre. Mas você levantou a questão da democracia sectária e este é o problema: para o Líbano tornar-se um Estado moderno e sobreviver precisa abandonar o confessionalismo no qual o presidente deve ser maronita cristão, o primeiro-ministro sempre deve ser muçulmano sunita e o porta-voz sempre deve ser muçulmano xiita. Mas o problema é que não será mais o Líbano se abandonar o confessionalismo, será outro Estado, que ninguém reconhecerá. Então, contanto que seja confessional, como deve, não será realmente democrático. E vocês sabem que, nas eleições, no sistema de listas, um juiz diz que só tantos por cento de membros do parlamento podem ser de tal religião. Não é assim que fazem no Brasil, eu acho, nem na Grã-Bretanha, nem nos Estados Unidos. É uma democracia fraudulenta, apesar de parecer real, e eu prefiro esta à versão síria. Mas o Líbano não está em estado de guerra, apesar da guerra civil, e não merece essa tragédia terrível. Mas ela está piorando. Eu estava a quatrocentos metros de Hariri quando foi morto. Eu conhecia Hariri, eu o vi queimando vivo. Eu corri até lá e eu vi a polícia plantando evidências na cratera depois para fingir que foi outro veículo que explodiu. E presumo que o policial trabalhava para os sírios. Tem havido muitos assassinatos desde então e, agora, temos esse novo grupo tipo Al Qaeda, que não deve ter conexão com a Al Qaeda, que luta contra o exército libanês. São gente suicida. Quando o exército invadiu Trípoli e subiu em um prédio para retomá-lo deles, fui junto. Um soldado morreu ao meu lado e atiraram em um cara, que caiu 15 andares em um estacionamento em chamas e lá um guerrilheiro ferido tentava carregar a arma. Soldados jogaram uma granada e explodiram o braço dele e ele morreu na minha frente. Quem acreditaria que esse é o Líbano onde eu achava que poderia morar pelos próximos dez anos? Bem, terei de morar lá pelos próximos dez anos. Mas é uma tragédia terrível, e só está piorando. Neste momento, 15 membros do parlamento libanês estão em férias permanentes fora do país para não morrer. Você queria ver uma democracia no Líbano? Essa é a minha resposta.

Paulo Markun: Bem, nosso programa está chegando ao fim e eu queria fazer uma última pergunta - tem que ser rápida, a resposta - portanto, é uma pergunta não muito complicada, também. E a pergunta é... já foi feita por milhares de jornalistas, para milhares de colegas, eu faço para vocês: qual é a notícia que vocês ainda não noticiaram e que gostariam de noticiar?

Robert Fisk: Notícia?

Paulo Markun: Sim.

Robert Fisk: Que os jornalistas estão falhando, que o Ocidente está falhando no Oriente Médio, que a nossa situação é pior do que pensamos, que toda manhã, quando me viro na cama, e ouço as palmeiras e o mar fora do meu apartamento, eu digo: "Onde será a explosão de hoje?”

Paulo Markun: Lawrence?

Lawrence Wright: Acho que vivemos em uma época de perigo e que o terrorismo será um câncer nas sociedades por muito tempo, mas acho mais importante considerar a natureza das nossas sociedades e em meu país. Acho que comprometemos as nossas liberdades civis. O país é diferente daquele antes de 11 de setembro e isso é mais perigoso do que o terrorismo, porque tornou-se algo que não podemos apoiar. E, se existe uma lição nisso para os outros países, seria cuidar das coisas a que você realmente dá valor em sua vida, e não abrir mão delas por medo.

Paulo Markun: Eu queria agradecer muito a presença dos dois jornalistas e escritores, Robert Fisk e Lawrence Wright, bem como da nossa bancada de entrevistadores. Agradecemos também a sua atenção especial e aos que nos acompanharam nesta série especial realizada na Festa Literária Internacional de Parati 2007, lembrando que o Roda Viva estará de volta na próxima segunda-feira às 10:40 da noite. Até lá e uma ótima semana a todos.
Fonte: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia_busca/336/robert%20fisk/entrevistados/lawrence_wright_e_robert_fisk_2007.htm