01 junho, 2010

Estagios do Fascismo 


por Sara Robinson, no Blog For Our Future

Já chegamos lá?

Fonte: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/sara-robinson-a-ascensao-do-fascismo-nos-estados-unidos.html

Através da escuridão dos anos do governo Bush, os progressistas assistiram horrorizados ao sumiço das proteções constitucionais, à retórica nativista, ao uso do discurso de ódio transformado em intimidação e violência e a um presidente dos Estados Unidos que assumiu poderes só exigidos pelos piores ditadores da história. Com cada novo ultraje, o punhado de nós que tinha se tornado expert na cultura e na política da extrema-direita ouvia de novos leitores preocupados: Chegamos lá? Já nos tornamos um estado fascista? Quando vamos chegar lá?

E cada vez que essa pergunta era feita, gente como Chip Berlet e Dave Neiwert e Fred Clarkson e eu mesma olhava para o mapa como o pai que faz uma longa viagem e respondia com um sorriso confortador. “Bem… estamos numa estrada ruim, se não mudarmos de caminho poderíamos acabar lá em breve. Mas há muito tempo e oportunidades para voltar. Fique de olho, mas não se preocupe. Pode parecer ruim, mas não, ainda não chegamos lá”.

Ao investigar a quilometragem nesse caminho para a perdição, muitos de nós nos baseávamos no trabalho do historiador Robert Paxton, que é provavelmente o estudioso mais importante na questão de como os países adotam o fascismo. Em um trabalho publicado em 1998 no Jornal da História Moderna, Paxton argumentou que a melhor forma de reconhecer a emergência de movimentos fascistas não é pela retórica, pela política ou pela estética. Em vez disso, ele afirmou, as democracias se tornam fascistas por um processo reconhecível, um grupo de cinco estágios que identificam toda a família de “fascismos” do século 20. De acordo com nossa leitura de Paxton, ainda não estávamos lá. Havia certos sinais — um, em particular — em que estávamos de olho, e ainda não o reconhecíamos.

E agora o reconhecemos. Na verdade, se você sabe o que procura, repentinamente vê isso em todo lugar. É estranho que eu não tenha ouvido a pergunta por um bom tempo; mas se você me fizer a pergunta hoje, eu diria que ainda não chegamos, mas que já entramos no estacionamento e estamos procurando uma vaga. De qualquer forma, o futuro fascista dos Estados Unidos aparece bem grande diante do vidro do automóvel — e os que dão valor à democracia dos Estados Unidos precisam entender como chegamos aqui, o que está mudando e o que está em jogo no futuro próximo se permitirmos a essa gente vencer — ou mesmo manter o território.

O que é fascismo?

A palavra tem sido usada por tanta gente, tão erroneamente, por tanto tempo que, como disse Paxton, “todo mundo é o fascista de alguém”. Dado isso, sempre gosto de começar a conversa revisitando a definição essencial de Paxton:

“Fascismo é um sistema de autoridade política e ordem social que tem o objetivo de reforçar a unidade, a energia e a pureza de comunidades nas quais a democracia liberal é acusada de produzir divisão e declínio”.

Em outro lugar, ele refina o termo como “uma forma de comportamento político marcado pela preocupação obsessiva com o declínio da comunidade, com a humilhação e a vitimização e pelo culto compensatório da unidade, energia e pureza, na qual um partido de massas de militantes nacionalistas, trabalhando em colaboração desconfortável mas efetiva com as elites tradicionais, abandona as liberdades democráticas e busca através de violência redentora e sem controles éticos ou legais objetivos de limpeza interna e expansão externa”.

Não considerando Jonah Goldberg, é uma definição básica com a qual a maioria dos estudiosos concorda e é a que usarei como referência

Do proto-fascismo ao momento-chave

De acordo com Paxton, o fascismo surge em cinco estágios. Os dois primeiros estão solidamente atrás de nós — e o terceiro deveria ser de particular interesse para os progressistas nesse momento.

No primeiro estágio, um movimento rural emerge em busca de algum tipo de renovação nacionalista (o que Roger Griffin chama de palingenesis, o renascimento das cinzas, como a de fênix). Eles se reúnem para restaurar uma ordem social rompida, como sempre usando temas como unidade, ordem e pureza. A razão é rejeitada em favor da emoção passional. A maneira como a história é contada muda de país para país; mas ela sempre tem raiz na restauração do orgulho nacional perdido pela ressureição dos mitos e valores tradicionais da cultura e na purificação da sociedade das influências tóxicas de estrangeiros e de intelectuais, aos quais cabe o papel de culpados pela miséria atual.

O fascismo somente cresce no solo revolto de uma democracia madura em crise. Paxton sugere que a Ku Klux Klan, que se formou em reação à Restauração pós-Guerra Civil, pode ser o primeiro movimento autenticamente fascista dos tempos modernos. Quase todo país da Europa teve um movimento proto-fascista nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial (quando o Klan experimentou um ressurgimento nos Estados Unidos), mas a maior parte deles empacou no primeiro estágio — ou no próximo.

Como Rick Perlstein documentou em seus dois livros sobre Barry Goldwater e Richard Nixon, o conservadorismo moderno dos Estados Unidos foi construído sobre esses mesmos temas. Do “Despertar nos Estados Unidos” [tema de campanha de Ronald Reagan] aos grupos religiosos prontos para a Ruptura [os milenaristas], ao nacionalismo branco promovido pelo Partido Republicano através de grupos racistas de vários graus, é fácil identificar como o proto-fascismo americano ofereceu a redenção dos turbulentos anos 60 ao promover a restauração da inocência dos Estados Unidos tradicionais, brancos, cristãos e patriarcais.

Essa visão foi abraçada tão completamente que todo o Partido Republicano agora se define nessa linha. Nesse estágio, é abertamente racista, sexista, repressor, excludente e permanentemente viciado na política do medo e do ódio. Pior: não se envergonha disso. Não se desculpa para ninguém. Essas linhas se teceram em todo movimento fascista da História.

Em um segundo estágio, os movimentos fascistas ganham raízes, se tornam partidos políticos reais e ganham um lugar na mesa do poder.

Interessantemente, em todo caso citado por Paxton a base política veio do mundo rural, das partes menos educadas do país; e quase todos chegaram ao poder se oferecendo especificamente como esquadrões informais organizados para intimidar pequenos proprietários em nome dos latifundiários.

A KKK lutava contra os pequenos agricultores negros [do sul dos Estados Unidos] e se organizou como o braço armado de Jim Crow. Os “squadristi” italianos e os camisas-marrom da Alemanha reprimiam greves rurais. E nos dias de hoje os grupos anti-imigração apoiados pelo Partido Republicano tornam a vida dos trabalhadores rurais hispânicos nos Estados Unidos um inferno. Enquanto a violência contra hispânicos aumenta (cidadãos americanos ou não), os esquadrões da direita estão obtendo treinamento básico que, se o padrão se confirmar, poderão eventualmente usar para nos intimidar.

Paxton escreveu que o sucesso no segundo estágio “depende de certas condições relativamente precisas: a fraqueza do estado liberal, cujas inadequações condenam a nação à desordem, declínio ou humilhação; e a falta de consenso político, quando a direita, herdeira do poder mas incapaz de usá-lo sozinha, se nega a aceitar a esquerda como parceira legítima”.

Paxton notou que Hitler e Mussolini assumiram o poder sob essas mesmas circunstâncias: “Paralisia do governo constitucional (produzida em parte pela polarização promovida pelos fascistas); líderes conservadores que se sentiram ameaçados pela perda de capacidade para manter a população sob controle num momento de mobilização popular maciça; o avanço da esquerda; e líderes conservadores que se negaram a trabalhar com a esquerda e que se sentiram incapazes de continuar no governo contra a esquerda sem um reforço de seus poderes”.

E, mais perigosamente: “A variável mais importante é aceitação, pela elite conservadora, de trabalhar com os fascistas (com uma flexibilidade recríproca dos líderes fascistas) e a profundidade da crise que os induz a cooperar”.

Essa descrição parece muito com a situação difícil em que os congressistas republicanos estão nesse momento. Apesar do partido ter sido humilhado, rejeitado e reduzido a um status terminal por uma série de catástrofes nacionais, a maior parte produzida pelo próprio partido, sua liderança não pode nem imaginar governar cooperativamente com os democratas em ascensão. Sem rotas legítimas para voltar ao poder, sua última esperança é investir no que restou de sua “base dura”, dando a ela uma legitimidade que não tem, recrutá-la como tropa de choque e derrubar a democracia americana pela força. Se eles não podem vencer eleições, estão dispostos a levar a disputa política para as ruas e assumir o poder intimidando os americanos a se manterem silenciosos e cúmplices.

Quanto esta aliança “não santa” é feita, o terceiro estágio — a transição para um governo abertamente fascista — começa.

O terceiro estágio: chegando lá

Durante os anos do governo Bush, os analistas progressistas da direita se negaram a chamar o que viam de “fascismo” porque, apesar de estarmos de olho, nunca vimos sinais claros e deliberados de uma parceria institucional comprometida entre as elites conservadoras dos Estados Unidos e a horda nacional de camisas-marrom. Vimos sinais de flertes breves — algumas alianças políticas, apoio financeiro, palavras-de-ordem doidas da direita na boca de líderes conservadores tradicionais. Mas era tudo circunstancial e transitório. Os dois lados mantiveram uma distância discreta um do outro, pelo menos em público. O que acontecia por trás das portas, só dá para imaginar. Eles com certeza não agiam como um casal.

Agora, o jogo de advinhação acabou. Nós sabemos sem qualquer dúvida que o movimento do Teabag foi criado por grupos como o FreedomWorks do Dick Armey e o Americans for Prosperity do Tim Phillips, com ajuda maciça de mídia da Fox News [a TV de Rupert Murdoch, o magnata da mídia, é porta-voz da extrema-direita dos Estados Unidos].

Site da FreedomWorks

Site do Americans For Prosperity

[Nota do Viomundo: O movimento do Teabag foi um protesto em escala nacional, organizado pelos republicanos, com ampla cobertura da Fox, em que eleitores protestaram contra a cobrança de impostos e o tamanho do governo federal. Uma tentativa de trazer de volta a rebelião contra a cobrança de impostos que esteve na origem do movimento de independência dos Estados Unidos. Ver Boston Tea Party]

Vimos a questão dos birther [aqueles que acreditam que Barack Obama não nasceu nos Estados Unidos, mas no Quênia] — o tipo de lenda urbana que nunca deveria ter saído da capa do [jornal sensacionalista] National Enquirer — sendo ratificada por congressistas republicanos.

Vimos os manuais produzidos profissionalmente por Armey que instruem grupos de eleitores republicanos na arte de causar distúrbios no processo de governo democrático — e as imagens de autoridades públicas aterrorizadas e ameaçadas a ponto de requererem guarda-costas armados para sair de prédios [os protestos aconteceram durante audiências públicas para debater o novo sistema de saúde].

Um dos protestos aparece aqui

Vimos o líder da minoria republicana John Boehner aplaudindo e promovendo um vídeo de manifestantes e esperando por “um longo e quente agosto para os democratas no Congresso”.

Este é o sinal pelo qual estávamos esperando — o que nos diria que sim, crianças, chegamos. As elites conservadoras dos Estados Unidos jogaram abertamente seu futuro com o das legiões de descontentes da extrema-direita. Elas deram apoio explícito e poder às legiões para que ajam como um braço político nas ruas americanas, apoiando ameaças físicas e a intimidação de trabalhadores, liberais e autoridades que se neguem a defender seus [das elites] interesses políticos e econômicos.

Este é o momento catalisador em que o fascismo honesto, de Hitler, começa. É nossa última chance de brecá-lo.

O ponto decisivo

De acordo com Paxton, esse momento da aliança do terceiro estágio é decisivo — e o pior é que quando se chega a esse ponto, é provavelmente tarde para pará-lo. Daqui, há uma escalada, quando pequenos protestos se tornam espancamentos, mortes e a aplicação de rótulos em certos grupos para eliminação, tudo dirigido por pessoas no topo da estrutura de poder. Depois do Dia do Trabalho [Labor Day], quando senadores e deputados democratas voltarem a Washington, grupos organizados para intimidá-los vão permanecer na cidade e usar a mesma tática — aumentada e aperfeiçoada a cada uso — contra qualquer pessoa cuja cor, religião ou inclinação política eles não aceitem. Em alguns lugares, eles já estão tomando nota e preparando listas de nomes.

Qual é a linha do perigo? Paxton oferece três rápidas perguntas que nos ajudam a identificar:

1. Estão os neo ou proto-fascistas se tornando arraigados em partidos que representam grandes interesses e sentimentos e conseguem ampla influência na cena política?

2. O sistema econômico ou constitucional está congestionado, de forma aparentemente insuperável, pelas autoridades atuais?

3. A mobilização política rápida está ameaçando sair do controle das elites tradicionais, ao ponto que elas poderiam buscar ajuda para manter o controle?

Pela minha avaliação, a resposta é sim. Estamos muito perto. Muito perto.

O caminho adiante

A História nos diz que uma vez essa aliança [entre a elite e a tropa de choque] é formada, catalisada e tem sucesso em busca do poder, não há mais como pará-la. Como Dave Neiwert escreveu em seu livro recente, The Eliminationists, “se apenas podemos identificar o fascismo em sua forma madura — os camisas-marrom com passos de ganso, o uso de táticas de intimidação e violência, os comícios de massa — então será muito tarde para enfrentá-lo”.

Paxton (que anteviu que “um autêntico fascismo popular nos Estados Unidos será crente e anti-negros”) concorda que se uma aliança entre as corporações e os camisas-marrom tiver uma conquista — como a nossa aliança tenta agora [barrando a reforma do sistema de saúde proposta por Barack Obama] — pode rapidamente ascender ao poder e destruir os últimos vestígios de um governo democrático. Assim que ela conseguir algumas vitórias, o país estará condenado a fazer a feia viagem através dos dois últimos estágios, sem saída ou paradas entre agora e o fim.

O que nos espera? No estágio quatro, quando o dueto assumir o controle completo do país, lutas políticas vão emergir entre os crentes do partido dos camisas-marrom e as instituições da elite conservadora — igreja, militares, profissionais e empresários. O caráter do regime será determinado por quem vencer a disputa. Se os membros do partido (que chegaram ao poder através da força bruta) vencerem, um estado policial autoritário seguirá. Se os conservadores conseguirem controlá-los, um teocracia tradicional, uma corporocracia ou um regime militar podem emergir com o tempo. Mas em nenhum caso o resultado lembrará a democracia que a aliança derrubou.

Paxton caracteriza o estágio cinco como “radicalização ou entropia”. Radicalização é provável se o novo regime conseguir um grande vitória militar [Nota do Azenha: sobre a Venezuela, por exemplo], o que consolida seu poder e dá apetite para expansão e uma reengenharia social em grande escala (Veja a Alemanha). Na ausência do evento radicalizador, podemos ter a entropia, com a perda pelo estado de seus objetivos, o que degenera em incoerência política (Ver a Itália).

É fácil neste momento olhar para a confusão na direita e dizer que é puro teatro político do tipo mais absurdamente ridículo. Que é um show patético de marionetes. Que esse povo não pode ser levado a sério. Com certeza, eles estão com raiva — mas eles são minoria, fora do poder e reduzida a ataques de nervos. Os crescidos devem se preocupar com eles tanto quanto se preocupam com uma menina de cinco anos, furiosa, que ameaça segurar a respiração até ficar azul.

Infelizmente, todo o barulho e as ameaças obscurecem o perigo. Essa gente é tão séria quanto uma multidão linchadora e eles já deram os primeiros passos para se tornar uma. Eles vão se sentir mais altos e mais orgulhosos agora que suas tentativas de desobediência civil estão contando com apoio integral das pessoas mais poderosas do país, que cinicamente os usam numa última tentativa de garantir suas posições de lucro e prestígio.

Chegamos. Estamos estacionados exatamente no lugar onde nossos melhores especialistas dizem que o fascismo nasce. Todos os dias que os conservadores no Congresso, os comentaristas de extrema-direita e seus barulhentos seguidores conseguem segurar nossa capacidade de governar o país, é mais um dia em que caminhamos em direção à linha final, da qual nenhum país, mostra a História, conseguiu retornar.
Estagios do Fascismo
 
Estados Unidos fascistas: Já chegamos lá?

por Sara Robinson, no Blog For Our Future
 

Fonte: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/sara-robinson-a-ascensao-do-fascismo-nos-estados-unidos.html

Através da escuridão dos anos do governo Bush, os progressistas assistiram horrorizados ao sumiço das proteções constitucionais, à retórica nativista, ao uso do discurso de ódio transformado em intimidação e violência e a um presidente dos Estados Unidos que assumiu poderes só exigidos pelos piores ditadores da história. Com cada novo ultraje, o punhado de nós que tinha se tornado expert na cultura e na política da extrema-direita ouvia de novos leitores preocupados: Chegamos lá? Já nos tornamos um estado fascista? Quando vamos chegar lá?

E cada vez que essa pergunta era feita, gente como Chip Berlet e Dave Neiwert e Fred Clarkson e eu mesma olhava para o mapa como o pai que faz uma longa viagem e respondia com um sorriso confortador. “Bem… estamos numa estrada ruim, se não mudarmos de caminho poderíamos acabar lá em breve. Mas há muito tempo e oportunidades para voltar. Fique de olho, mas não se preocupe. Pode parecer ruim, mas não, ainda não chegamos lá”.

Ao investigar a quilometragem nesse caminho para a perdição, muitos de nós nos baseávamos no trabalho do historiador Robert Paxton, que é provavelmente o estudioso mais importante na questão de como os países adotam o fascismo. Em um trabalho publicado em 1998 no Jornal da História Moderna, Paxton argumentou que a melhor forma de reconhecer a emergência de movimentos fascistas não é pela retórica, pela política ou pela estética. Em vez disso, ele afirmou, as democracias se tornam fascistas por um processo reconhecível, um grupo de cinco estágios que identificam toda a família de “fascismos” do século 20. De acordo com nossa leitura de Paxton, ainda não estávamos lá. Havia certos sinais — um, em particular — em que estávamos de olho, e ainda não o reconhecíamos.

E agora o reconhecemos. Na verdade, se você sabe o que procura, repentinamente vê isso em todo lugar. É estranho que eu não tenha ouvido a pergunta por um bom tempo; mas se você me fizer a pergunta hoje, eu diria que ainda não chegamos, mas que já entramos no estacionamento e estamos procurando uma vaga. De qualquer forma, o futuro fascista dos Estados Unidos aparece bem grande diante do vidro do automóvel — e os que dão valor à democracia dos Estados Unidos precisam entender como chegamos aqui, o que está mudando e o que está em jogo no futuro próximo se permitirmos a essa gente vencer — ou mesmo manter o território.

O que é fascismo?

A palavra tem sido usada por tanta gente, tão erroneamente, por tanto tempo que, como disse Paxton, “todo mundo é o fascista de alguém”. Dado isso, sempre gosto de começar a conversa revisitando a definição essencial de Paxton:

“Fascismo é um sistema de autoridade política e ordem social que tem o objetivo de reforçar a unidade, a energia e a pureza de comunidades nas quais a democracia liberal é acusada de produzir divisão e declínio”.

Em outro lugar, ele refina o termo como “uma forma de comportamento político marcado pela preocupação obsessiva com o declínio da comunidade, com a humilhação e a vitimização e pelo culto compensatório da unidade, energia e pureza, na qual um partido de massas de militantes nacionalistas, trabalhando em colaboração desconfortável mas efetiva com as elites tradicionais, abandona as liberdades democráticas e busca através de violência redentora e sem controles éticos ou legais objetivos de limpeza interna e expansão externa”.

Não considerando Jonah Goldberg, é uma definição básica com a qual a maioria dos estudiosos concorda e é a que usarei como referência

Do proto-fascismo ao momento-chave

De acordo com Paxton, o fascismo surge em cinco estágios. Os dois primeiros estão solidamente atrás de nós — e o terceiro deveria ser de particular interesse para os progressistas nesse momento.

No primeiro estágio, um movimento rural emerge em busca de algum tipo de renovação nacionalista (o que Roger Griffin chama de palingenesis, o renascimento das cinzas, como a de fênix). Eles se reúnem para restaurar uma ordem social rompida, como sempre usando temas como unidade, ordem e pureza. A razão é rejeitada em favor da emoção passional. A maneira como a história é contada muda de país para país; mas ela sempre tem raiz na restauração do orgulho nacional perdido pela ressureição dos mitos e valores tradicionais da cultura e na purificação da sociedade das influências tóxicas de estrangeiros e de intelectuais, aos quais cabe o papel de culpados pela miséria atual.

O fascismo somente cresce no solo revolto de uma democracia madura em crise. Paxton sugere que a Ku Klux Klan, que se formou em reação à Restauração pós-Guerra Civil, pode ser o primeiro movimento autenticamente fascista dos tempos modernos. Quase todo país da Europa teve um movimento proto-fascista nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial (quando o Klan experimentou um ressurgimento nos Estados Unidos), mas a maior parte deles empacou no primeiro estágio — ou no próximo.

Como Rick Perlstein documentou em seus dois livros sobre Barry Goldwater e Richard Nixon, o conservadorismo moderno dos Estados Unidos foi construído sobre esses mesmos temas. Do “Despertar nos Estados Unidos” [tema de campanha de Ronald Reagan] aos grupos religiosos prontos para a Ruptura [os milenaristas], ao nacionalismo branco promovido pelo Partido Republicano através de grupos racistas de vários graus, é fácil identificar como o proto-fascismo americano ofereceu a redenção dos turbulentos anos 60 ao promover a restauração da inocência dos Estados Unidos tradicionais, brancos, cristãos e patriarcais.

Essa visão foi abraçada tão completamente que todo o Partido Republicano agora se define nessa linha. Nesse estágio, é abertamente racista, sexista, repressor, excludente e permanentemente viciado na política do medo e do ódio. Pior: não se envergonha disso. Não se desculpa para ninguém. Essas linhas se teceram em todo movimento fascista da História.

Em um segundo estágio, os movimentos fascistas ganham raízes, se tornam partidos políticos reais e ganham um lugar na mesa do poder.

Interessantemente, em todo caso citado por Paxton a base política veio do mundo rural, das partes menos educadas do país; e quase todos chegaram ao poder se oferecendo especificamente como esquadrões informais organizados para intimidar pequenos proprietários em nome dos latifundiários.

A KKK lutava contra os pequenos agricultores negros [do sul dos Estados Unidos] e se organizou como o braço armado de Jim Crow. Os “squadristi” italianos e os camisas-marrom da Alemanha reprimiam greves rurais. E nos dias de hoje os grupos anti-imigração apoiados pelo Partido Republicano tornam a vida dos trabalhadores rurais hispânicos nos Estados Unidos um inferno. Enquanto a violência contra hispânicos aumenta (cidadãos americanos ou não), os esquadrões da direita estão obtendo treinamento básico que, se o padrão se confirmar, poderão eventualmente usar para nos intimidar.

Paxton escreveu que o sucesso no segundo estágio “depende de certas condições relativamente precisas: a fraqueza do estado liberal, cujas inadequações condenam a nação à desordem, declínio ou humilhação; e a falta de consenso político, quando a direita, herdeira do poder mas incapaz de usá-lo sozinha, se nega a aceitar a esquerda como parceira legítima”.

Paxton notou que Hitler e Mussolini assumiram o poder sob essas mesmas circunstâncias: “Paralisia do governo constitucional (produzida em parte pela polarização promovida pelos fascistas); líderes conservadores que se sentiram ameaçados pela perda de capacidade para manter a população sob controle num momento de mobilização popular maciça; o avanço da esquerda; e líderes conservadores que se negaram a trabalhar com a esquerda e que se sentiram incapazes de continuar no governo contra a esquerda sem um reforço de seus poderes”.

E, mais perigosamente: “A variável mais importante é aceitação, pela elite conservadora, de trabalhar com os fascistas (com uma flexibilidade recríproca dos líderes fascistas) e a profundidade da crise que os induz a cooperar”.

Essa descrição parece muito com a situação difícil em que os congressistas republicanos estão nesse momento. Apesar do partido ter sido humilhado, rejeitado e reduzido a um status terminal por uma série de catástrofes nacionais, a maior parte produzida pelo próprio partido, sua liderança não pode nem imaginar governar cooperativamente com os democratas em ascensão. Sem rotas legítimas para voltar ao poder, sua última esperança é investir no que restou de sua “base dura”, dando a ela uma legitimidade que não tem, recrutá-la como tropa de choque e derrubar a democracia americana pela força. Se eles não podem vencer eleições, estão dispostos a levar a disputa política para as ruas e assumir o poder intimidando os americanos a se manterem silenciosos e cúmplices.

Quanto esta aliança “não santa” é feita, o terceiro estágio — a transição para um governo abertamente fascista — começa.

O terceiro estágio: chegando lá

Durante os anos do governo Bush, os analistas progressistas da direita se negaram a chamar o que viam de “fascismo” porque, apesar de estarmos de olho, nunca vimos sinais claros e deliberados de uma parceria institucional comprometida entre as elites conservadoras dos Estados Unidos e a horda nacional de camisas-marrom. Vimos sinais de flertes breves — algumas alianças políticas, apoio financeiro, palavras-de-ordem doidas da direita na boca de líderes conservadores tradicionais. Mas era tudo circunstancial e transitório. Os dois lados mantiveram uma distância discreta um do outro, pelo menos em público. O que acontecia por trás das portas, só dá para imaginar. Eles com certeza não agiam como um casal.

Agora, o jogo de advinhação acabou. Nós sabemos sem qualquer dúvida que o movimento do Teabag foi criado por grupos como o FreedomWorks do Dick Armey e o Americans for Prosperity do Tim Phillips, com ajuda maciça de mídia da Fox News [a TV de Rupert Murdoch, o magnata da mídia, é porta-voz da extrema-direita dos Estados Unidos].

Site da FreedomWorks

Site do Americans For Prosperity

[Nota do Viomundo: O movimento do Teabag foi um protesto em escala nacional, organizado pelos republicanos, com ampla cobertura da Fox, em que eleitores protestaram contra a cobrança de impostos e o tamanho do governo federal. Uma tentativa de trazer de volta a rebelião contra a cobrança de impostos que esteve na origem do movimento de independência dos Estados Unidos. Ver Boston Tea Party]

Vimos a questão dos birther [aqueles que acreditam que Barack Obama não nasceu nos Estados Unidos, mas no Quênia] — o tipo de lenda urbana que nunca deveria ter saído da capa do [jornal sensacionalista] National Enquirer — sendo ratificada por congressistas republicanos.

Vimos os manuais produzidos profissionalmente por Armey que instruem grupos de eleitores republicanos na arte de causar distúrbios no processo de governo democrático — e as imagens de autoridades públicas aterrorizadas e ameaçadas a ponto de requererem guarda-costas armados para sair de prédios [os protestos aconteceram durante audiências públicas para debater o novo sistema de saúde].

Um dos protestos aparece aqui

Vimos o líder da minoria republicana John Boehner aplaudindo e promovendo um vídeo de manifestantes e esperando por “um longo e quente agosto para os democratas no Congresso”.

Este é o sinal pelo qual estávamos esperando — o que nos diria que sim, crianças, chegamos. As elites conservadoras dos Estados Unidos jogaram abertamente seu futuro com o das legiões de descontentes da extrema-direita. Elas deram apoio explícito e poder às legiões para que ajam como um braço político nas ruas americanas, apoiando ameaças físicas e a intimidação de trabalhadores, liberais e autoridades que se neguem a defender seus [das elites] interesses políticos e econômicos.

Este é o momento catalisador em que o fascismo honesto, de Hitler, começa. É nossa última chance de brecá-lo.

O ponto decisivo

De acordo com Paxton, esse momento da aliança do terceiro estágio é decisivo — e o pior é que quando se chega a esse ponto, é provavelmente tarde para pará-lo. Daqui, há uma escalada, quando pequenos protestos se tornam espancamentos, mortes e a aplicação de rótulos em certos grupos para eliminação, tudo dirigido por pessoas no topo da estrutura de poder. Depois do Dia do Trabalho [Labor Day], quando senadores e deputados democratas voltarem a Washington, grupos organizados para intimidá-los vão permanecer na cidade e usar a mesma tática — aumentada e aperfeiçoada a cada uso — contra qualquer pessoa cuja cor, religião ou inclinação política eles não aceitem. Em alguns lugares, eles já estão tomando nota e preparando listas de nomes.

Qual é a linha do perigo? Paxton oferece três rápidas perguntas que nos ajudam a identificar:

1. Estão os neo ou proto-fascistas se tornando arraigados em partidos que representam grandes interesses e sentimentos e conseguem ampla influência na cena política?

2. O sistema econômico ou constitucional está congestionado, de forma aparentemente insuperável, pelas autoridades atuais?

3. A mobilização política rápida está ameaçando sair do controle das elites tradicionais, ao ponto que elas poderiam buscar ajuda para manter o controle?

Pela minha avaliação, a resposta é sim. Estamos muito perto. Muito perto.

O caminho adiante

A História nos diz que uma vez essa aliança [entre a elite e a tropa de choque] é formada, catalisada e tem sucesso em busca do poder, não há mais como pará-la. Como Dave Neiwert escreveu em seu livro recente, The Eliminationists, “se apenas podemos identificar o fascismo em sua forma madura — os camisas-marrom com passos de ganso, o uso de táticas de intimidação e violência, os comícios de massa — então será muito tarde para enfrentá-lo”.

Paxton (que anteviu que “um autêntico fascismo popular nos Estados Unidos será crente e anti-negros”) concorda que se uma aliança entre as corporações e os camisas-marrom tiver uma conquista — como a nossa aliança tenta agora [barrando a reforma do sistema de saúde proposta por Barack Obama] — pode rapidamente ascender ao poder e destruir os últimos vestígios de um governo democrático. Assim que ela conseguir algumas vitórias, o país estará condenado a fazer a feia viagem através dos dois últimos estágios, sem saída ou paradas entre agora e o fim.

O que nos espera? No estágio quatro, quando o dueto assumir o controle completo do país, lutas políticas vão emergir entre os crentes do partido dos camisas-marrom e as instituições da elite conservadora — igreja, militares, profissionais e empresários. O caráter do regime será determinado por quem vencer a disputa. Se os membros do partido (que chegaram ao poder através da força bruta) vencerem, um estado policial autoritário seguirá. Se os conservadores conseguirem controlá-los, um teocracia tradicional, uma corporocracia ou um regime militar podem emergir com o tempo. Mas em nenhum caso o resultado lembrará a democracia que a aliança derrubou.

Paxton caracteriza o estágio cinco como “radicalização ou entropia”. Radicalização é provável se o novo regime conseguir um grande vitória militar [Nota do Azenha: sobre a Venezuela, por exemplo], o que consolida seu poder e dá apetite para expansão e uma reengenharia social em grande escala (Veja a Alemanha). Na ausência do evento radicalizador, podemos ter a entropia, com a perda pelo estado de seus objetivos, o que degenera em incoerência política (Ver a Itália).

É fácil neste momento olhar para a confusão na direita e dizer que é puro teatro político do tipo mais absurdamente ridículo. Que é um show patético de marionetes. Que esse povo não pode ser levado a sério. Com certeza, eles estão com raiva — mas eles são minoria, fora do poder e reduzida a ataques de nervos. Os crescidos devem se preocupar com eles tanto quanto se preocupam com uma menina de cinco anos, furiosa, que ameaça segurar a respiração até ficar azul.

Infelizmente, todo o barulho e as ameaças obscurecem o perigo. Essa gente é tão séria quanto uma multidão linchadora e eles já deram os primeiros passos para se tornar uma. Eles vão se sentir mais altos e mais orgulhosos agora que suas tentativas de desobediência civil estão contando com apoio integral das pessoas mais poderosas do país, que cinicamente os usam numa última tentativa de garantir suas posições de lucro e prestígio.

Chegamos. Estamos estacionados exatamente no lugar onde nossos melhores especialistas dizem que o fascismo nasce. Todos os dias que os conservadores no Congresso, os comentaristas de extrema-direita e seus barulhentos seguidores conseguem segurar nossa capacidade de governar o país, é mais um dia em que caminhamos em direção à linha final, da qual nenhum país, mostra a História, conseguiu retornar.

O Jornalismo e as palavras do poder
  

  By Robert Fisk
O correspondente do jornal britânico The Independent no Oriente Médio, Robert Fisk, fez o seguinte discurso no quinto fórum anual da emissora árabe Al Jazeera, em 23 de maio:


Poder e mídia não são apenas relações amigáveis entre jornalistas e líderes políticos, entre editores e presidentes. Não são apenas sobre as relações parasitárias e de osmose entre repórteres supostamente honrados e o eixo do poder que existe entre a Casa Branca, o Departamento de Estado e o Pentágono, a Downing Street e os ministérios das Relações Exteriores e da Defesa [britânicos]. No contexto Ocidental, a relação entre poder e mídia diz respeito a palavras — é sobre o uso de palavras. É sobre semântica. É sobre o emprego de frases e suas origens. E é sobre o mau uso da História e sobre nossa ignorância da História. Mais e mais, hoje em dia, nós jornalistas nos tornamos prisioneiros da linguagem do poder.

Isso acontece porque não nos preocupamos com a linguística? É porque os laptops ‘corrigem’ nossa ortografia, ‘limpam’ nossa gramática de forma a que nossas sentenças frequentemente se tornem idênticas às de nossos líderes? É por isso que os editoriais de jornais hoje em dia soam como se fossem discursos políticos?

Deixem-me demonstrar o que quero dizer.

Por duas décadas as lideranças dos Estados Unidos e do Reino Unido — e dos israelenses e palestinos — tem usado as palavras “processo de paz” para definir o acordo sem futuro, inadequado e desonroso que permite aos Estados Unidos e a Israel fazerem o que bem entenderem com os pedaços de terra que deveriam ser dados a um povo sob ocupação.

Eu primeiro me perguntei sobre esta expressão e sobre a origem dela na época de Oslo [Nota do Viomundo: A capital da Noruega foi sede das negociações que resultaram num tratado entre israelenses e palestinos celebrado na Casa Branca com as presenças do presidente Bill Clinton, do líder palestino Yasser Arafat e do primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin, tratado que na prática fracassou] — embora a gente se esqueça facilmente que as rendições secretas de Oslo tenham sido, em si, uma conspiração sem qualquer base legal. Pobre e velha Oslo, sempre pensei! O que Oslo fez para merecer isso? Foi o acordo da Casa Branca que selou o tratado dúbio e absurdo — pelo qual os refugiados, as fronteiras, as colônias israelenses e mesmo o plano de metas foram adiados até que não pudessem mais ser negociados.

E como nos esquecemos facilmente do gramado da Casa Branca — embora, sim, lembremos das imagens — no qual Clinton citou o Corão e Arafat escolheu dizer: “Obrigado, obrigado, obrigado sr. presidente”. E como chamamos esse embuste depois? Sim, foi um ‘momento histórico’! Foi? Foi mesmo?

Vocês se lembram como Arafat se referia a ele? “A paz dos bravos”. Mas não me lembro que algum de nós tenha apontado que a frase “paz dos bravos” foi usada originalmente pelo general De Gaulle no fim da guerra [de independência] da Argélia. Os franceses perderam a guerra na Argélia. Nós não nos demos conta desta ironia extraordinária.

Vemos isso de novo, hoje. Nós, jornalistas ocidentais — usados outra vez mais pelos nossos líderes — temos noticiado como os felizes generais do Afeganistão tem dito que a guerra lá só pode ser vencida como parte de uma campanha “pelos corações e mentes” [dos afegãos]. Ninguém fez aos generais a pergunta óbvia: esta mesma frase não foi usada em relação aos civis vietnamitas na guerra do Vietnã? E nós não — nós, o Ocidente – não perdemos a guerra do Vietnã?

Ainda assim nós, jornalistas ocidentais, estamos usando — no Afeganistão — a frase “corações e mentes” em nossas reportagens, como se fosse uma frase nova no dicionário e não um símbolo de derrota usado pela segunda vez em quatro décadas, em alguns casos usada pelos mesmos soldados que venderam esta bobagem — quando eram mais novos — no Vietnã.

Olhem agora para as palavras que nós recentemente ‘adotamos’ vindas dos militares dos Estados Unidos.

Quando nós ocidentais descobrimos que “nossos” inimigos — a Al-Qaeda, por exemplo, ou o talibã — explodiram mais bombas e patrocinaram mais ataques do que o esperado, chamamos isso de “um pico de violência”. Ah, sim, um ‘pico’.

Um ‘pico’ de violência, senhoras e senhores, foi uma frase primeiro usada, de acordo com meus arquivos, por um general na Zona Verde de Bagdá em 2004 [inicialmente quartel-general da ocupação dos Estados Unidos no Iraque]. No entanto, nós usamos a frase agora, discutimos a partir dela, replicamos como se fosse nossa. Estamos usando, literalmente, uma expressão criada para nós pelo Pentágono. Um “pico”, naturalmente, significa algo que sobe rapidamente e que em seguida cai rapidamente. Um ‘pico’, assim sendo, evita o uso do terrível “aumento da violência” — já que um aumento, senhoras e senhores, pode não ser seguido por uma redução posteriormente.

De novo, quando os generais dos Estados Unidos se referem a um repentino aumento de suas forças para um ataque contra Fallujah ou o centro de Bagdá ou Kandahar — um movimento em massa de soldados trazidos para países muçulmanos aos milhares — eles chamam isso de ’surge’. E um ’surge’, como um tsunami ou qualquer outro fenômeno natural, pode ter efeitos devastadores. O que esses ’surges’ são, na verdade — para usar as palavras verdadeiras do jornalismo sério — são reforços. E reforços são mandados para as guerras quando os exércitos estão perdendo essas guerras. Mas nossos meninos e meninas nos jornais e nas emissoras de TV estão falando em ’surges’ sem atribuir isso ao Pentágono! O Pentágono ganha de novo.

Enquanto isso, o ‘processo de paz’ desabou. Assim nossos líderes — nós gostamos de chamá-los de ‘jogadores-chave’ — estão tentando de novo. Assim o processo tem de ser colocado ‘nos trilhos’. Era um trem, como vocês notaram. Os vagões tinham saído dos trilhos. E assim o trem tem de ser posto de novo ‘nos trilhos’. Foi o governo Clinton o primeiro a usar a frase, depois os israelenses, depois a BBC. Mas havia um problema quando o ‘processo de paz’ foi colocado de novo ‘nos trilhos’ — e ainda assim não andou. E então produzimos o ‘mapa do caminho’ — tocado por um quarteto liderado pelo nosso amigo de Deus, Tony Blair, ao qual — em uma obscenidade da História — agora nos referimos como ‘enviado da paz’.

Mas o ‘mapa do caminho’ não está funcionando. E agora, notem, o velho ‘processo de paz’ está de volta aos jornais e às telas de TV. Dois dias atrás, na CNN, um destes velhos chatos que os meninos e meninas da TV chamam de ‘experts’ — falarei deles em um momento — nos disse de novo que o ‘processo de paz’ está sendo colocado ‘nos trilhos’ por causa do início de ‘conversas indiretas’ entre israelenses e palestinos.

Senhoras e senhores, não são apenas clichês — isso é jornalismo absurdo. Não existe mais batalha entre o poder e a mídia. Através da linguagem, nós nos tornamos eles. Talvez o problema advenha de que a gente não pensa mais por conta própria por não ler livros. Os árabes ainda lêem livros — não estou falando aqui sobre a taxa de analfabetismo em países árabes — mas não estou certo de que no Ocidente a gente ainda leia livros. Eu geralmente mando mensagens por telefone e descubro que tenho de passar dez minutos repetindo à secretária algumas centenas de palavras. Elas não sabem soletrar.

Eu estava no avião um dia destes, voando de Paris a Beirute — um vôo de cerca de 3 horas e 45 minutos — e a mulher sentada ao lado estava lendo um livro em francês sobre a história da Segunda Guerra Mundial. Ela mudava de página depois de alguns segundos. Acabou o livro antes do pouso em Beirute! E de repente me dei conta de que ela não estava lendo o livro, estava surfando nas páginas! Tinha perdido a habilidade do que costumo chamar de ‘leitura profunda’. Meramente usamos as primeiras palavras que aparecem…

Deixe-me mostrar outro pedaço da covardia midiática que faz os meus dentes de 63 anos de idade rangerem depois de 34 anos comendo humus e tahina no Oriente Médio.

Somos informados, em tantas análises, que precisamos lidar no Oriente Médio com ‘narrativas que competem’. Que meigo. Não há justiça, nem injustiça, apenas algumas pessoas que nos contam histórias diferentes. ‘Narrativas que competem’ agora aparece regularmente na imprensa britânica. A frase é uma espécie — ou subespécie — da falsa linguagem da antropologia. Nega a possibilidade de que um grupo de pessoas — no Oriente Médio, por exemplo — seja ocupado, enquanto outro grupo de pessoas promove a ocupação. Novamente, não há justiça, injustiça, não-opressão ou opressão, apenas amigáveis ‘narrativas que competem’, um jogo de futebol, se quiserem, um campo neutro já que os dois lados estão — não estão? — ‘em competição’. E os dois lados merecem tempo igual em todas as reportagens.

E assim uma ‘ocupação’ pode se tornar uma ‘disputa’. E assim um ‘muro’ pode se tornar uma ‘cerca’ ou uma ‘barreira de segurança’. E assim a colonização israelense de terra árabe contrária a todas as leis internacionais se torna ‘acampamentos’ ou ‘postos’ ou ‘vizinhanças judaicas’.

Vocês não vão se surpreender ao descobrir que foi Colin Powell, em seu estrelato sem poder no posto de secretário de Estado de George W. Bush, que disse a diplomatas americanos no Oriente Médio que eles deveriam se referir à terra ocupada dos palestinos como ‘terra disputada’ — o que foi bom o suficiente para a maior parte da mídia americana.

Fiquem de olho na ‘narrativa que compete’, senhoras e senhores. Não há ‘narrativas que competem’, naturalmente, entre os militares dos Estados Unidos e o talibã. Quando houver, no entanto, vocês saberão que o Ocidente perdeu. Mas vou dar um exemplo pessoal para demonstrar como as ‘narrativas que competem’ evaporam.

No ano passado, fiz uma palestra em Toronto para marcar os 95 anos do genocídio armênio de 1915, o assassinato em massa deliberado de um milhão e meio de cristãos armênios por milícias e pelo exército otomano da Turquia. Antes da minha palestra, fui entrevistado na tv canadense, a CTV, que também é dona do jornal Toronto Globe and Mail. Desde o início, notei que minha entrevistadora tinha um problema. O Canadá tem uma grande comunidade armênia. Mas Toronto também tem uma grande comunidade turca. E os turcos, como o Globe and Mail sempre diz, ‘negam calorosamente’ que tenha havido genocídio. E assim a entrevistadora chamou o genocídio de “massacres mortais”.

Naturalmente que notei este problema específico de cara. Ela não podia chamar os massacres de ‘genocídio’ porque a comunidade turca se sentiria ultrajada. Mas, igualmente, ela sentiu que ‘massacre’ sozinho — especialmente com as fotos cruéis que serviam de cenário no estúdio, de armênios mortos — não seria suficiente para definir um milhão e meio de seres humanos assassinados. Daí os ‘massacres mortais’. Que estranho!!! Se existem massacres ‘mortais’, existem massacres que não são ‘mortais’, nos quais as vítimas saem com vida? Foi tautologia ridícula.

No fim, contei este pequeno caso de covardia jornalística na palestra, para minha audiência armênia, na qual também havia executivos da CTV. Uma hora depois de minha palestra, o armênio que promoveu o encontro recebeu uma mensagem de texto de um repórter da CTV. “Cagar na CTV não tinha nada a ver”, o repórter reclamou. Duvido, pessoalmente, que a palavra ‘cagar’ seja usada na CTV. Mas ‘genocídio’ também não é. Foi assim que as ‘narrativas que competem’ explodiram.

Sim, o uso da linguagem do poder — de suas palavras e frases — é comum entre nós. Quantas vezes ouvi de repórteres ocidentais sobre ‘combatentes estrangeiros’ no Afeganistão? Eles estão se referindo, naturalmente, a vários grupos árabes que supostamente ajudam o talibã. Ouvimos a mesma história no Iraque. Sauditas, jordanianos, palestinos, combatentes chechenos, naturalmente. Os generais os chamavam de ‘combatentes estrangeiros’. E assim, imediatamente, fizemos o mesmo. Chamá-los de ‘combatentes estrangeiros’ significava que são uma força de invasão. Mas nunca — nunca — ouvi uma estação de TV ocidental se referir ao fato de que existem pelo menos 150 mil ‘combatentes estrangeiros’ no Afeganistão. E que a maioria deles, senhoras e senhores, veste uniformes dos Estados Unidos e da Otan!

Da mesma forma, a frase perniciosa ‘Af-Pak’ — racista e politicamente desonesta como é — é usada por repórteres quando foi originalmente uma criação do Departamento de Estado, no dia em que Richard Holbrooke foi indicado mediador dos Estados Unidos no Afeganistão e no Paquistão. Mas a frase evita o uso da palavra ‘Índia’, cuja influência no Afeganistão e cuja presença no Afeganistão é parte vital da história. Além disso, ‘Af-Pak’ — ao apagar a Índia — eficazmente apaga toda a crise de Kashmir do conflito no sudeste da Ásia. E assim o Paquistão ficou sem qualquer papel na política dos Estados Unidos para Kashmir — afinal, Holbrooke foi nomeado para o ‘Af-Pak’, especificamente proibido de discutir Kashmir. E assim a frase ‘Af-Pak’, que nega totalmente a tragédia do Kashmir — muitas ‘narrativas que competem’, quem sabe? — significa que quando nós jornalistas usamos a mesma frase, ‘Af-Pak’ — que com certeza foi criada para nós — estamos fazendo o trabalho do Departamento de Estado americano.

Agora olhemos para a História. Nossos leitores amam História. Mais que tudo, eles amam a Segunda Guerra Mundial. Em 2003, George W. Bush pensou que era Churchill e George W. Bush. Na verdade, Bush gastou a guerra do Vietnã protegendo os céus do Texas dos vietcongs [Nota do Viomundo: Durante a guerra do Vietnã, Bush filho evitou sua convocação servindo à Força Aérea americana em uma base do Texas].

Mas agora, em 2003, Bush estava enfrentando os ‘apaziguadores’ que não queriam guerra com o Saddam que era, naturalmente, o “Hitler do [rio] Tigre”. Os ‘apaziguadores’ eram os britânicos que não queriam enfrentar a Alemanha nazista em 1938. Blair, naturalmente, também experimentou a casaca de Churchill. Ele não era ‘apaziguador’. Os Estados Unidos eram os aliados mais antigos do Reino Unido — Blair proclamou — e Bush e Blair lembraram aos jornalistas que os Estados Unidos estavam ombro a ombro com o Reino Unido quando este precisou de ajuda, em 1940.

Mas nada disso era verdade.

O mais antigo aliado do Reino Unido não foram os Estados Unidos. Foi Portugal, um estado fascista que ficou neutro durante a Segunda Guerra. Somente meu jornal, o Independent, notou isso.

Nem os Estados Unidos lutaram ao lado do Reino Unido na hora que os britânicos precisaram, em 1940, quando Hitler ameaçou invasão e a força aérea alemã bombardeou Londres. Não, em 1940 os Estados Unidos aproveitavam um período lucrativo de neutralidade — e não se juntaram à guerra do Reino Unido a não ser depois que o Japão atacou a base de Pearl Harbor em dezembro de 1941. Doeu!

Em 1956, li outro dia, Eden chamou Nasser de ‘Mussolini do Nilo’. Um erro. Nasser era amado pelos árabes, não odiado como Mussolini era pela maioria dos africanos, especialmente os líbios árabes. O paralelo com Mussolini não foi questionado pela mídia britânica. E todos sabemos o que aconteceu em Suez em 1956.

[Nota do Viomundo: Anthony Eden foi ministro britânico das Relações Exteriores mas, como notou o leitor Bico, era primeiro-ministro britânico durante a crise de Suez; Gamal Abdel Nasser, líder nacionalista do Egito; em 1956 Nasser nacionalizou o canal de Suez, ao que se seguiu um ataque militar de Reino Unido, França e Israel, que só fracassou politicamente por pressão de Estados Unidos e União Soviética]

Sim, quando se trata de História, nós jornalistas simplesmente deixamos que presidentes e primeiros-ministros nos dêem um balão.

Hoje, no momento em que estrangeiros tentam levar comida e combustível pelo mar a palestinos famintos em Gaza, nós jornalistas deveríamos relembrar nossos telespectadores e leitores de um dia faz-tempo quando os Estados Unidos e o Reino Unido sairam em socorro de um povo cercado, levando comida e combustível — foi assim que alguns de nossos próprios militares morreram — para uma população faminta.

Aquela população tinha sido cercada por uma cerca construída por um exército brutal que queria torná-los submissos pela fome. O exército era o russo. A cidade era Berlim. O muro viria mais tarde. O povo ajudado tinha sido nosso inimigo há apenas três anos. Ainda assim fizemos uma ponte-aérea para salvá-los. Agora olhem para Gaza. Que jornalista ocidental — e amamos paralelos históricos — já mencionou Berlim de 1948 no contexto de Gaza?

Olhem para exemplos mais recentes. Saddam tinha ‘armas de destruição em massa’ — dá para encaixar ‘WMD’ numa manchete — mas naturalmente, ele não tinha e a imprensa americana passou por momentos embaraçosos de auto-condenação. Como pudemos ser enganados, o New York Times se perguntou? O jornal concluiu que não tinha desafiado suficientemente o governo Bush.

E agora o mesmo jornal está suavemente — muito suavemente — batendo os bumbos de guerra no Irã. O Irã está trabalhando com ‘WMD’. E depois da guerra, se houver guerra, haverá de novo a auto-condenação, se não houver projetos de armas nucleares no Irã.

Ainda assim o lado mais perigoso de nosso uso da semântica de guerra, nosso uso das palavras do poder — embora não seja uma guerra, já que nós nos rendemos — é que isso nos isola de nossos telespectadores e leitores. Eles não são estúpidos. Eles entendem as palavras e, em muitos casos — temo — melhor que nós. Eles sabem que estamos afogando nosso vocabulário na linguagem dos generais e presidentes, das assim-chamadas elites, na arrogância dos experts do Brookings Institute, ou daqueles da Rand Corporation ou o que eu chamo de ‘tink thanks’. Então nós nos tornanos parte desta linguagem. Aqui estão, por exemplo, algumas palavras perigosas:

- power players
- ativismo
- atores não-estatais
- jogadores-chave
- jogadores geoestratégicos
- narrativas
- jogadores externos
- processo de paz
- soluções significativas
- Af-Pak
- agentes de mudanças (quem quer que sejam estas criaturas sinistras)

Não sou um convidado regular da Al Jazeera. Isso me dá liberdade para falar. Alguns anos atrás, quando Wadah Khanfar (agora diretor-geral da Al Jazeera) era o homem da emissora em Bagdá, os militares dos Estados Unidos começaram uma campanha de boatos contra o escritório de Wadah, alegando — mentirosamente — que a Al Jazeera fazia o jogo da Al Qaeda porque estava recebendo vídeos de ataques contra forças dos Estados Unidos. Fui a Fallujah para checar isso. Wadah estava 100% correto. A Al Qaeda estava entregando os vídeos de suas emboscadas sem qualquer aviso, colocando nas caixas de correio. Os americanos estavam mentindo. O Wadah, naturalmente, está pensando o que virá em seguida…

Bem, devo dizer a vocês, senhoras e senhores, que todas as ‘palavras perigosas’ que acabei de ler para vocês — de jogadores-chave a narrativas a processo de paz a Af-Pak — estão no programa de nove páginas da Al Jazeera para este forum. Não estou condenando a Al Jazeera por isso, senhoras e senhores. Porque este vocabulário não é adotado como resultado de aliança política. É uma infecção da qual todos sofremos. Eu mesmo usei ‘processo de paz’ algumas vezes, embora entre aspas, o que não dá para fazer na TV, mas sim, é um contágio.

E quando usamos estas palavras nós nos tornamos aliados do poder e das elites que mandam no mundo sem medo de serem desafiadas pela mídia. A Al Jazeera fez mais que qualquer rede de televisão que conheço para desafiar a autoridade, tanto no Oriente Médio quanto no Ocidente. (Não estou usando ‘desafio’ como ‘problema’, mas como ‘enfrento muitos desafios’, dito pelo general McCrystal).

Como escapamos desta doença? Fiquem de olho nos corretores de ortografia de seus laptops, nos sonhos dos subeditores com palavras de uma sílaba, parem de usar a Wikipedia. E leiam livros, com páginas de papel, que significam leitura profunda. Livros de História, especialmente.

A Al Jazeera está fazendo uma boa cobertura da frota — o comboio de barcos — que vai a Gaza. Não acredito que sejam um bando de anti-israelenses. Penso que este comboio internacional está a caminho porque as pessoas a bordo dos navios — de todo o mundo — estão tentando fazer o que líderes supostamente humanitários deixaram de fazer. Estão levando comida e combustível e equipamento hospitalar para aqueles que sofrem. Em qualquer outro contexto, os Obamas e os Sarkozys e os Camerons estariam competindo para mandar fuzileiros navais, marinheiros reais ou forças francesas com ajuda humanitária — como Clinton fez na Somália. O divino Blair não acreditava em ‘intervenção’ humanitária em Kosovo e Serra Leoa?

Em circunstâncias normais, o Blair colocaria o pé sobre a fronteira. Mas não. Não ousamos ofender Israel. E assim pessoas comuns estão tentando fazer o que os líderes não fizeram. Os líderes fracassaram. E a mídia? Estamos mostrando imagens de documentários da ponte aérea que salvou Berlim? Ou das tentativas de Clinton de resgatar pessoas que morriam de fome na Somália ou da ‘intervenção’humanitária de Blair nos Balcãs, simplesmente para relembrar nossos leitores e telespectadores — e aqueles pessoas naqueles barcos — que isso é hipocrisia em escala maciça?

O diabo que estamos! Nós preferimos ‘narrativas que competem’. Poucos políticos querem que a viagem até Gaza seja completada — seja o seu fim bem sucedido, uma farsa ou trágico. Nós acreditamos no ‘processo de paz’, no ‘mapa do caminho’. Mantenham a ‘cerca’ em torno dos palestinos. Deixem os ‘jogadores-chave’ encontrar uma solução. Senhoras e senhores, não sou seu ‘key-speaker’ nesta manhã. Sou seu convidado e agradeço pela paciência que tiveram em me ouvir.

  
Fonte: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/robert-fisk-o-jornalismo-e-as-palavras-do-poder.html
Original: http://english.aljazeera.net/focus/2010/05/201052574726865274.html