22 julho, 2008

Educação Fantasma

A crise da educação nos países industrializados ocidentais


Robert Kurz


Fez parte da história do colonialismo que o Ocidente se apresentasse a si mesmo como civilização superior na relação com o resto do mundo, não apenas no sentido técnico e econômico, mas também no cultural. As ideologias ocidentais do século 19 e da primeira metade do 20 falavam do "fardo do homem branco", encarregado de alegrar o mundo com suas bênçãos. Foi só após a Segunda Guerra Mundial que a intelligentsia ocidental deu início a uma crítica do "eurocentrismo". Descobriram-se as realizações culturais autônomas do "outro", depois de suas conquistas terem sido destruídas até a raiz ao longo de vários séculos. Foi um reconhecimento para o museu e a reminiscência culpada.


A descolonização não trouxe naturalmente nenhuma renovação das antigas culturas, há muito tempo naufragadas, ainda que sejam instrumentalizadas até hoje para uma fundação ideológica de identidades. Ao invés disso, os movimentos sociais pós-coloniais e os Estados do hemisfério Sul se orientaram em todos os aspectos pelo protótipo ocidental, começando pela categoria política de "nação" até chegar à forma jurídica burguesa moderna e a racionalidade da economia empresarial. Disso faz parte também a campanha de alfabetização e a instalação de um sistema escolar e educacional segundo os padrões ocidentais.


Justamente no caso da alfabetização e da ofensiva educacional se trata à primeira vista de uma grande conquista emancipadora. Quem iria contestar que a técnica cultural elementar da leitura e da escrita representa um pressuposto irrenunciável para o progresso civilizador? Como a transmissão de saber e a educação poderiam ser interpretadas de outra forma senão positivamente? Todavia são importantes também o conteúdo do saber e a forma da transmissão. E nesse aspecto o surgimento do sistema educacional ocidental não pode de modo algum ser entendido em linha reta no sentido emancipador. A alfabetização européia e a "escolarização" da sociedade não foram um presente civilizador generoso para as pessoas, mas parte do processo designado na literatura crítica pelo conceito de "colonização interna". A submissão externa do mundo por parte do Ocidente vem de par com uma flagelação interna do próprio homem ocidental para se converter em "material" da valorização capitalista. Nisso desempenhavam uma função não apenas as medidas de disciplinamento violento, mas também o adestramento espiritual e o aprendizado de parâmetros comportamentais com a finalidade de ajustar a práxis inteira da vida ao "trabalho abstrato" (Marx) e à concorrência universal. Tanto as formas institucionais da educação "para o povo" como os conteúdos transmitidos serviam em primeiro lugar a esse objetivo da "interiorização" de um perfil capitalista de requisitos.


Só aparentemente o processo era diferente para a formação "superior" da juventude da elite burguesa. A nova geração destinada aos escalões de liderança na economia, na política e na cultura deveria receber um saber o mais universal possível e ser capaz de reflexão filosófica para além das exigências práticas imediatas. Na Alemanha, Wilhelm von Humboldt (1767-1835) chegou a criar um ideal de formação neo-humanista, entendendo o desdobramento universal do espírito como fim em si mesmo, o qual não poderia ser degradado à mera "instrução", reduzida em termos funcionalistas, para fins dados. Mas ideais de formação dessa espécie não estavam dirigidos à crítica, mas antes à autofruição de uma burguesia que não havia delegado completamente sua autoconsciência aos mecanismos funcionais "do sistema", permitindo-se ainda o luxo de uma formação, pesquisa e auto-representação cultural supostamente "sem finalidade". Os Estados pós-coloniais do Sul reproduziram, junto com as instituições capitalistas restantes, as idéias ocidentais de educação, tanto aquela para o "povo", reduzida em termos funcionalistas, como aquela para as elites, mais elevada e "sem finalidade".


Mas, na mesma medida em que o paradigma da "modernização recuperadora" entrou em colapso desde os anos 1980 com o processo da globalização e com a crise mundial provocada pela terceira revolução industrial, a ofensiva educacional das nações do assim chamado Terceiro Mundo chegou a seus limites. Constata-se que um sistema educacional moderno, com escolas, universidades, institutos de pesquisa e instituições culturais, só pode ser financiado se a economia nacional correspondente é capaz de concorrer no mercado mundial. Em regiões cada vez maiores do globo, o sistema escolar e educacional se dissolve junto com a economia. Assim como há "fábricas fantasma" que só existem nominalmente e mal produzem alguma coisa ainda, há também "escolas fantasma" e "universidades fantasma" em que nada mais é realmente ensinado e pesquisado. Não é só no Afeganistão ou na Somália que o índice da alfabetização retrocede.


Esse destino o sistema educacional partilha com a maioria das outras infra-estruturas ou serviços públicos. Subjaz ao problema, que aqui se torna visível, uma determinada lógica econômica. Instituições infra-estruturais, como correio, abastecimento de água, sistema de saúde e, precisamente, a educação, não são, segundo sua essência, empresas de mercado, mas condições estruturais da sociedade inteira para a economia empresarial e de mercado.


Visto em termos econômicos, trata-se de custos gerais, custos indiretos, custos mortos ou "faux frais" (Marx) da reprodução capitalista. As empresas pressupõem determinadas qualificações nas forças de trabalho encontradas no mercado de trabalho; a mais elementar delas é naturalmente a capacidade de ler e escrever. Mas mesmo essa qualificação básica não surge por natureza (embora seja tratada pelas empresas como um recurso natural, sem custos); para tanto são necessárias despesas sociais.


As empresas só podem calcular seus custos econômicos imediatos; segundo sua natureza, elas não têm competência para custos da sociedade como um todo. Por esse motivo o Estado assumiu não só o funcionamento das infra-estruturas e, com isso, do sistema educacional, mas também os custos. Trata-se de um financiamento secundário, derivado: os rendimentos do mercado (lucros, salários, honorários) são taxados pelo Estado, para que possa executar os serviços públicos com esse dinheiro extraído.


Porém, nesse aspecto, o desenvolvimento das forças produtivas engendrou um contexto fatal, pouco refletido até o momento. Pois quanto mais a produção das empresas é cientificizada e, com isso, maior a porção de capital real (tecnologia), tanto mais sobe o grau de socialização e tanto maior se torna a importância da infra-estrutura, principalmente da formação e da instrução. Sob o ponto de vista do cálculo capitalista privado, esse desenvolvimento resulta em que o verdadeiro fim, a produção para o lucro, é de certo modo sufocado pelas condições estruturais da sociedade inteira. Isso significa por sua vez que os custos sociais indiretos ou (do ponto de vista da economia empresarial) os "custos mortos" aumentam desproporcionalmente. Desse modo, surge um problema de financiamento crônico das infra-estruturas, que crescem de maneira objetivamente necessária. Em outras palavras: o grau de socialização produzido pelo próprio capitalismo não é mais representável em termos capitalistas. Esse problema aparece como dimensão especial de um processo crise secular.


Com a terceira revolução industrial da microeletrônica, esse problema se exacerba no curso de uma crise estrutural dos mercados. No plano da economia empresarial, torna-se supérflua uma tamanha massa de força de trabalho, cuja reabsorção não é mais possível por meio de uma ampliação dos mercados. O Estado pode cada vez menos taxar salários e precisa, além disso, financiar o desemprego. Ao mesmo tempo, no processo de globalização, as empresas transnacionais fogem do alcance fiscal do Estado, indo parar nos "oásis" de países que taxam pouco ou não taxam de modo algum os investidores estrangeiros. O endividamento já há muito tempo precário do aparelho do Estado praticamente explode. Desse modo, o financiamento dos serviços públicos e das infra-estruturas é fundamentalmente posto em questão, embora as exigências objetivas a esses domínios continuem a crescer devido à mesma terceira revolução industrial. Ou seja, temos de lidar com uma contradição interna aguda do sistema.


Em um curso quase natural dessa crise, acabam se paralisando tanto as capacidades da produção, por falta de rentabilidade, como os setores públicos, por falta de "financiabilidade". O aparelho do Estado se reduz cada vez mais a uma administração restritiva das pessoas e dos recursos, ao seu papel de aparelho da violência. Os custos para a "segurança" interna e externa aumentam continuamente, ao passo que diminuem os custos para a sustentação infra-estrutural. Com outras palavras: o cerne anti-social, anticivilizador, bárbaro da modernidade vem à luz, enquanto o "excesso civilizador", como a medicina, a assistência médica, a educação, a cultura etc., vai desaparecendo sucessivamente.


Se o Ocidente produz, sob a liderança dos EUA, um novo colonialismo da crise e invoca ideologicamente a "salvação da civilização", ele se desmente a si próprio em suas próprias relações internas por conta do desenvolvimento anticivilizador. Hoje o sistema educacional e as instituições culturais decaem nos países ocidentais, já em completa semelhança com as regiões críticas do Sul. Geralmente os suportes da educação, da instrução e da cultura são os municípios e as Províncias; e justamente para esses níveis mais baixos da administração estatal a crise financeira no Ocidente progrediu tanto quanto para os Estados centrais do Terceiro Mundo.


Analfabetismo secundário


Nas escolas o reboco das paredes cai, os materiais didáticos estão envelhecidos, os subsídios para a instrução são cortados e setores inteiros da produção de nichos culturais são liquidados. Os discursos domingueiros dos políticos sobre a necessidade de uma ofensiva educacional no contexto da "concorrência global" estão em crassa contradição com a realidade. Mesmo de escolas de aperfeiçoamento e universidades saem jovens que não dominam técnicas culturais básicas e são incapazes de refletir para além dos dados imediatos. Nesse aspecto, há muito tempo já se fala de "analfabetos secundários", pessoas que podem ler e escrever em caso de necessidade, mas sem entender e elaborar o conteúdo. E, apesar do ensino obrigatório universal, até mesmo o analfabetismo primário, total, aumenta nos EUA e na Alemanha.


A política e a administração reagem às contradições críticas no sistema educacional de maneira estereotipada, com três medidas paradigmáticas. O primeiro paradigma se chama, como em todos os outros domínios, "privatização". No entanto escolas privadas, universidades privadas e outras instituições educacionais privadas, operadas como empresas de mercado, não são mais, naturalmente, infra-estruturas públicas; antes, elas estão orientadas para uma minoria de clientela solvente. Na mesma direção se vai quando se elevam as taxas nas escolas públicas e nas universidades e o material didático deixa de ser gratuito.


Está intimamente ligado a essa tendência o segundo paradigma, isto é, a propaganda reforçada para uma assim chamada educação de elite. Em termos práticos isso significa que as escolas e as universidades normais são conscientemente negligenciadas para que o fomento estatal se concentre em poucas instituições de elite. Essas condições, habituais nos EUA já faz muito tempo, se difundem agora no mundo ocidental inteiro. Mas, se a formação se torna dependente da solvência, o nível intelectual da sociedade como um todo declina forçosamente. Bolsas privadas não podem compensar a perda de serviços públicos que cobrem áreas inteiras. O reservatório social de talentos intelectuais deixa de ser esgotado.


Vai ainda mais fundo o alcance do terceiro paradigma da superação aparente da crise: a redução funcionalista da educação e da pesquisa à capacidade de valorização econômica imediata. Com força cada vez maior, as escolas e as universidades são atadas diretamente à "economia", guiadas segundo critérios da economia empresarial e, no plano dos conteúdos, dirigidas ao conformismo com o mercado. Por assim dizer, vale a divisa: "Não importa o que você estuda, é sempre economia empresarial!".


Inteligência subversiva


O totalitarismo econômico chegou ao sistema educacional. Mas isso significa que, junto com os últimos restos do ideal de formação de Humboldt, desaparece a autofruição cultural das elites capitalistas; elas mesmas se reduzem aos "idiotas funcionais do sistema". Desse modo se dissolve também a capacidade intelectual de tomar distância, que é, porém, pressuposta para a condução de processos complexos em geral. A nova "elite" se desmente a si mesma.


Mas o que acontece com o potencial intelectual da sociedade, posto de lado e não mais resgatável? Se a educação para a grande massa é desmantelada de maneira tão crassa, desaparece também sua função anterior de disciplinamento. Desse modo, porém, é desencadeado não apenas um "analfabetismo secundário", mas talvez também uma "inteligência subversiva" que não siga mais os princípios do totalitarismo econômico. Pode ser que a administração capitalista da crise educacional ponha a caminho, sem querer, uma nova contracultura intelectual.


Original alemão Sekundäre Analphabeten. Die Krise der Bildung in den westlichen Industrieländern. Deustch


Publicado na Folha de São Paulo, 11 de Abril de 2004, com o título O efeito colateral da educação fantasma


http://blog.controversia.com.br/2006/10/15/analfabetos-secundarios/

20 julho, 2008

Crise na Educação

por Robert Kurz


Mais uma vez correm abundantemente as lágrimas de crocodilo da classe política, dos media e do management. Desta vez o objecto de consternação é o estado de calamidade do ensino, como se ninguém fosse altamente responsável por isso. Mas tal "pensamento duplo", como George Orwell o descreveu na sua utopia negativa, é de qualquer modo necessário para poder suportar e exprimir enfaticamente as autocontradições, lamentando o modo de vida e de produção dominante, sem ter que declarar-se a si mesmo como doido.


Educação e ciência não são excepção. Por um lado a concorrência obriga à contínua inovação no uso dos conhecimentos científicos e das criações culturais; por outro lado, estes domínios constituem apenas "custos mortos", do ponto de vista da economia empresarial. Eles constituem um fundo de cujo conteúdo uma pessoa gostaria de servir-se no interesse da valorização do capital, mas pelo qual gostaria de pagar o mínimo possível. Na crise, quando até os lucros se evaporam, os rendimentos e a cobrança de impostos diminuem em paralelo e agrava-se esta contradição. Do jardim de infância ao instituto de pesquisa teórica, todo o sistema de educação, cultura, formação e ciência se arruina, exactamente como todos os outros domínios não directamente lucrativos. E quando as consequências do colapso se fazem sentir, retroagindo sobre a valorização, fica todo o mundo em ressaca e a exigir "mais esforço da educação".

Há muito que se impôs também na educação e ciência uma determinada lógica de administração da crise. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha foram pioneiros nesta orientação, porque foram os primeiros a executar todas as consequências da crise do capitalismo. Esta lógica integra dois elementos fortemente unidos um ao outro. O primeiro estabelece o postulado de uma "educação de elites". Educação e ciência devem ser alta e massivamente financiados "em cima", no resto pelo contrário devem ficar à míngua. É típico do novo espírito do tempo elogiar as escolas e universidades privadas pelos seus "altos talentos". A reivindicação de propinas pesadas pertence a esta linha, tal como a reivindicação de constituir universidades de elite ou a de voltar atrás na disponibilização do material escolar. À sobrelotação de escolas e universidades públicas corresponde um desempenho menos elevado. E espera-se colocar sob o mesmo chapéu reduções orçamentais drásticas e um ensino concorrencial.

O segundo elemento da administração de crise no âmbito da educação e ciência está na redução funcionalista, de acordo com critérios de possível valorização do capital. Estudos culturais, humanidades, ciências sociais, vistas como especializações em floreados, emagrecem até à invisibilidade; o mesmo acontece com a pesquisa teórica "sem objectivo" em ciências naturais. Pelo contrário, são unilateralmente fomentadas as "disciplinas valorizáveis" ou como tal consideradas: informática, engenharias, estudos de economia empresarial, etc. O ideal é o "cientista empresarial", a escola organizada sob o "ponto de visita da economia" ou o projecto científico administrado como uma empresa lucrativa. Para os estudantes a divisa é: Estudes tu o que estudares, é sempre economia empresarial.


Mas tal como em todos os outros domínios, também na educação nunca a contradição capitalista será bem administrada através da administração de crise restritiva e repressiva. A educação elitista unilateral assemelha-se a um cérebro de alto rendimento a que foi cortada a irrigação sanguínea. O filtro financeiro do acesso eleva aos lugares de comando os burros da classe alta arrivista, enquanto a massa dos talentos da sociedade definha ou se dedica (oxalá!) a objectivos subversivos. Donativos e sponsoring, bolsas de estudo e fundações, não podem substituir o sistema de educação em toda a sua extensão.

Ironicamente, acontece com a educação o mesmo que com a publicidade: só uma parte atinge o alvo, mas não se sabe qual é. Com a sujeição directa a critérios económico-empresariais, a lógica própria não económica da educação, ciência e cultura acaba por sufocar. Professores, biólogos, físicos, historiadores e sociólogos medíocres ou abaixo da média tornam-se hábito nas instituições de educação e ciência: é o melhor caminho para a desqualificação e abandalhamento continuado dos conteúdos. Quando em todo o lado já só restam vendedores em acção, já nada se consegue vender.


O sistemático apoio aos idiotas funcionais de vistas curtas serve da melhor maneira o objectivo de arruinar o capitalismo. Contava-se ironicamente acerca da monarquia K.u.K. (1) que o inimigo teria proibido os seus soldados de atirarem sobre os oficiais K.u.K. Talvez a crítica radical do capitalismo deva saudar com idêntica ironia as ideias elitistas da classe político-económica alemã-federal. Vendo bem, o governo vermelho-verde e até a respectiva oposição representam já o surgimento desta "elite" à Dr. Eisenbart (2).


Notas da tradutora:


(1) Monarquia K.u.K. (de Kaiserin und Kaiser, imperatriz e imperador, a partir da dupla Elisabeth/Sissi e Francisco José), refere-se ao império dos Habsburgos, 1848/1918, aqui como paradigma da decadência. Tal como em português, em alemão também há homofonia com cuco (Kuckuck).


(2) Médico alemão que viveu entre 1663 e 1727, cuja figura é explorada no turismo e no folclore como protótipo da charlatanice. Eisenbart quer dizer literalmente barba de ferro.


Original alemão Notstand für alle bei der Bildung em Neues Deutschland, 09.01.2004


Tradução de Ana Moura


Fonte: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz155.htm

01 junho, 2008

Extrema-direita e a "Conspiração" comunista

Muito se reclama sobre a "conspiração comunista" que teria tomado o mundo nos últimos anos (ou décadas). A direita conservadora acredita estar sozinha na defesa de sua posição ideológica, e a direita liberal ou moderada nao é considerada "direita" o bastante, sendo na verdade considerda, no máximo, traidores da esquerda, ou mesmo coniventes com a conspiração esquerdista.


Acontece que a direita nao está sob ataque. Mas perdeu varias frentes importantes em sua teorização ideológica nos últimos anos, devido às mudanças culturais que aconteceram. Premissas importantes de seu discurso foram por água abaixo. Vejam algumas:




O racismo


O racismo deixou de ser levado a sério. Ou foi jogado para debaixo do tapete, já que a maioria das pessoas considera as atrocidades cometidas através de idéias racistas como deploráveis. Desta maneira, os argumentos que se ancoravam na idéia de superioridade cultural ou racial foram desconsiderados pela maioria das pessoas. Ou , pelo menos, não puderam ser assumidos publicamente .




O Capitalismo


O capitalismo nao é visto como fonte de prosperidade pela maioria das pessoas. Por motivos óbvios: afinal, a maioria das pessoas não tem garantia de se beneficiar, e geralmente não se beneficia do capitalismo na forma como ele costuma ser aplicado. Por falta de políticas claras de estímulo à redistribuição dos recursos, à medida em que as economias melhoram, em vez das pessoas se beneficiarem, a desigualdade é que aumenta. As pessoas permaneçam na mesma condição, ou em condições piores, ou com pouca melhora. De maneira que o "estado mínimo" (para o povo) se torna somente isso: estado mínimo, ou reduzido ao papel de aparato policial. O status quo economico-social favorece o crescimento de uma pequena parte da sociedade e os macro-números dissolvem essas contradições nas estatísticas que , sendo mal-interpretadas, acabam disfarçando a situação da maioria das pessoas através de análises generalistas e pouco aprofundadas.




Religião


A religião é hoje em dia considerada algo individual, e o relativismo acabou com os argumentos também de superioridade moral/cultural de quaisquer religiões ou grupos étnicos-religiosos..






Estes três pilares do conservadorismo foram derrubados pelas mudanças culturais (benéficas) dos últimos anos. Nao existe conspiração de esquerda, apenas um conservadorismo que perdeu suas bases ideológicas-culturais.

28 maio, 2008

Luta Armada no Brasil - De falácias e má-fé

Por Celso Lungaretti em 27/5/2008



"Em um país sem memória, é muito fácil reescrever a história", afirmou Marco Antonio Villa, que leciona tal matéria na Universidade Federal de São Carlos, em seu artigo "Falácias Sobre a Luta Armada na Ditadura" (Folha de S.Paulo, 19/05/2008).

Confiante nessa facilidade, Villa não se deu sequer ao trabalho de reescrevê-la de com algum apuro, como se constata neste parágrafo, o mais revelador das intenções subjacentes à sua racionália tortuosa:

"Argumentam que não havia outro meio de resistir à ditadura, a não ser pela força. Mais um grave equívoco: muitos dos grupos existiam antes de 1964 e outros foram criados logo depois, quando ainda havia espaço democrático (basta ver a ampla atividade cultural de 1964-1968). Ou seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela participação no sistema político e a simpatia pelo foquismo guevarista antecedem o AI-5 (dezembro de 1968), quando, de fato, houve o fechamento do regime".

Que grupos praticantes da luta armada existiam antes de 1964, quando golpistas armados acabaram com a democracia no Brasil, destituindo o presidente legítimo, subjugando o Congresso, extinguindo partidos e entidades legais, cassando, caçando e torturando?

Conferência da Olas

Refere-se, talvez, às Ligas Camponesas de Francisco Julião, que buscavam timidamente e sem muita eficácia responder à violência desenfreada dos latifundiários. Ou aos "grupos dos 11" brizolistas, constituídos a partir da resistência ao golpe tentado em 1961 e que acabaram servindo apenas como espantalho útil para a propaganda direitista: nem desenvolveram ações características da luta armada, nem conseguiram evitar que a tentativa golpista seguinte fosse vitoriosa.

E quais foram os grupos de luta armada criados "logo depois" de instaurada a ditadura militar? A única ocorrência nessa linha se deu, na verdade, dois anos depois: o início de implantação de focos guerrilheiros por parte de militares expulsos das Forças Armadas, em Caparaó.

Descobertos em abril/1967, foram presos antes mesmo de entrarem em ação. Parafraseando Aparício Torelly, Caparaó foi a guerrilha que não existiu...

A luta armada começou a entrar verdadeiramente na pauta da esquerda brasileira a partir da conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade, em agosto de 1967. Mas, entre a conversão de Carlos Marighella a essa tese e as ações concretas, houve um hiato de vários meses.


Secundária, quase irrelevante

Então, a organização de esquerda que realmente desencadeou a luta armada acabou sendo a VPR, com um assalto a banco que teve toques de comédia de pastelão. No meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), reproduzi assim o relato que ouvi de um dos participantes, o marujo Cláudio de Souza Ribeiro (Matos):

"Nós, os ex-militares, estávamos todos sendo procurados, era difícil arrumar emprego. Chegou um ponto em que não havia mais como conseguir dinheiro para o dia-a-dia. Então, resolvemos expropriar um banco. Naquele momento foi por necessidade mesmo, não como uma opção política. Levamos duas ou três semanas preparando tudo, vigiando a agência, estudando cada detalhe. Adiamos várias vezes, sempre surgia algum imprevisto. Um dia não tínhamos dinheiro mais nem para comer, então decidimos: é hoje! Lá dentro deu tudo certo. Mas o pessoal estava tão afobado que quase foi embora me deixando pra trás. Tive de correr atrás do veículo..."

Segundo o Matos, alguns assaltos depois a VPR decidiu assumir essas expropriações, espalhando panfletos nos locais. E o exemplo foi seguido pelo grupo do Marighella.

O certo é que a luta armada foi secundária, quase irrelevante, ao longo de 1968. Alguns assaltos a bancos e roubo de armamentos, petardos de baixo poder destrutivo colocados na porta do consulado norte-americano e do jornal O Estado de S. Paulo, o carro-bomba lançado contra o QG do II Exército, a morte de um oficial norte-americano que cursava incógnito uma faculdade paulistana. Nem uma centena de militantes envolvidos.

Humilhações, tortura, prisões

Enquanto isso, as passeatas aconteciam no Brasil inteiro e a maior delas, no RJ, conseguiu reunir 100 mil manifestantes, além dos artistas e intelectuais mais ilustres da época. Os movimentos estudantil (principalmente) e operário é que deram a tônica da resistência à ditadura militar nesse ano de notável ascensão do movimento de massas.

Então, pelo menos em relação a 1968, Villa não está muito longe da verdade ao dizer que "a luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, seqüestros, ataques a instalações militares e só". Os militares preferiam minimizá-la e a opinião pública era-lhes indiferente.

Omite, entretanto, que o movimento de massas foi enfrentado com arbitrariedades e violência crescentes por parte da ditadura, começando pelo assassinato do jovem Edson Souto numa inofensiva passeata que tinha lugar num restaurante universitário do Rio de Janeiro.

Seguem-se a ocupação militar do município paulista de Osasco, como se o país estivesse em estado de sítio; a sexta-feira sangrenta no RJ, quando 23 pessoas foram baleadas pela repressão e quatro morreram; espancamentos e humilhações a que eram submetidos manifestantes do país inteiro; a generalização das torturas, cada vez mais brutais; a prisão dos cerca de 1.200 universitários que realizavam o congresso da UNE etc.

O "espaço democrático" entre 64 e 68

Além disso, a ditadura era conivente com a atuação dos grupos paramilitares de direita, que praticaram atentados contra instituições como a OAB e a ABI, seqüestraram a atriz Norma Bengell, espancaram os atores da peça Roda Viva e assassinaram um secundarista na batalha da rua Maria Antônia (quando agentes das polícias civil e militar que cursavam Direito na Universidade Mackenzie, utilizando armamento privativo de suas corporações, travaram luta desigual com estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que só tinham pedras e rojões para se defender).

O próprio AI-5 foi uma resposta ao discurso que o deputado Márcio Moreira Alves pronunciou numa sessão quase deserta da Câmara Federal e à recusa do Congresso em permitir que ele fosse processado (com medo de que esse precedente abrisse caminho para mais cassações).

É indiscutível que, durante todo o ano de 1968, os militares sempre usaram de força desproporcional aos desafios que recebiam, sendo eles os grandes responsáveis pela escalada de radicalização – e não os grupos guerrilheiros, cuja atuação passava quase despercebida.

Quanto à existência de um "espaço democrático" entre 1964 e 1968, é uma afirmação tão risível que faz lembrar a piada sobre meia-virgem – tão inexistente quanto a batalha de Itararé.


O "fechamento do regime"

Depois que se instalaram no poder com toda a truculência (vale lembrar a humilhação e tortura públicas do lendário dirigente comunista Gregório Bezerra, mundialmente repudiadas) e abusaram das arbitrariedades para adequarem o cenário político a seus desígnios, os golpistas sentiram-se seguros para se comportarem como déspotas esclarecidos por uns tempos. Mas, já na repressão bestial às setembradas de 1967 a máscara caiu.

Da mesma forma, as artes e o pensamento só foram poupados do obscurantismo enquanto os Torquemadas ainda não haviam aquilatado sua periculosidade. Quando a ficha lhes caiu, impuseram uma censura tão furibunda quanto ridícula (pelas intervenções desastradas em assuntos muito além de sua capacidade de compreensão).

O "fechamento do regime" – eufemismo para o estabelecimento no Brasil de um totalitarismo comparável ao da Alemanha nazista – criou, sim, uma situação em que "não havia outro meio de resistir à ditadura, a não ser pela força".


Reescrever a história requer talento

Com o Legislativo e o Judiciário de mãos atadas, a suspensão do direito de hábeas corpus e a licença para torturar durante 30 dias (prazo de incomunicabilidade que, aliás, os verdugos ultrapassavam a bel-prazer; no meu caso foram 75 dias), o trabalho de massas se tornou suicida para os que o realizavam de peito aberto; e inócuo, no caso dos cautelosos que recorriam a expedientes como o de deixar panfletos nos banheiros de cinemas, restaurantes e locais de trabalho, sem qualquer resultado concreto).

Então, militantes do movimento de massas que não se deixaram intimidar pelo terrorismo de Estado direcionaram-se maciçamente, a partir da assinatura do AI-5, para a luta armada, com os resultados trágicos que todos conhecemos.

Aquele famigerado 13 de dezembro foi um divisor de águas. Dali em diante, a ditadura passou a ter como derradeira adversária a vanguarda armada e nela concentrou seu poder de fogo imensamente superior até aniquilá-la com torturas e assassinatos (incluindo um sem-número de execuções de resistentes rendidos e indefesos).

A simplificação dessa história equivale à sua desfiguração – e o professor Villa sabe muito bem disso. Acreditou que ninguém percebesse a falácia por ele cometida ao estender aos contingentes que ingressaram na luta armada a partir do AI-5 as acusações que faz aos pioneiros.

E mesmo com estes foi injusto, ao omitir que os de origem militar foram privados de suas carreiras, perseguidos e levados ao desespero pelo arbítrio instaurado no país, não sendo de estranhar, portanto, que acabassem optando por ações desesperadas.

Até para reescrever a história é necessário algum talento. Apenas má-fé não basta.

Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=487MCH002

10 maio, 2008

Violência, Racismo e Democracia

VIOLÊNCIA, RACISMO E DEMOCRACIA

Pela Filósofa e professora da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP, Marilena Chauí.


1. Ética, violência e racismo

Numa perspectiva geral, podemos dizer que a ética procura definir, antes de mais nada, a figura do agente ético e de suas ações e o conjunto de noções (ou valores) que balizam o campo de uma ação que se considere ética. O agente ético é pensado como sujeito ético, isto é, como um ser racional e consciente que sabe o que faz, como um ser livre que decide e escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde pelo que faz. A ação ética é balizada pelas idéias de bom e mau, justo e injusto, virtude e vício, isto é, por valores cujo conteúdo pode variar de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma sociedade, mas que propõem sempre uma diferença intrínseca entre condutas, segundo o bem, o justo e o virtuoso.

Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e responsável e só será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo. A ação ética só é virtuosa se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma ordem, a um comando ou a uma pressão externos. Enfim, a ação só é ética se realizar a natureza racional, livre e responsável do agente e se o agente respeitar a racionalidade, liberdade e responsabilidade dos outros agentes, de sorte que a subjetividade ética é uma intersubjetividade. A ética não é um estoque de condutas e sim uma práxis que só existe pela e na ação dos sujeitos individuais e sociais, definidos por formas de sociabilidade instituídos pela ação humana em condições históricas determinadas.

A ética se opõe à violência, palavra que vem do latim e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar);2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar);3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar);4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito;5) conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror.

A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos em que demos a esta palavra. É sob este aspecto (entre outros, evidentemente), que o racismo é definido como violência. Não é demais lembrar quando essa idéia aparece.

De fato, não se sabe muito bem qual é a origem da palavra “raça” - os antigos gregos falavam em etnia e genos, os antigos hebreus, em povo, os romanos, em nação;e essas três palavras significavam o grupo de pessoas descendentes dos mesmos pais originários. Alguns dicionários indicam que, no século XII, usava-se a palavra francesa “haras” para se referir à criação de cavalos especiais e pode-se supor que seu emprego se generalizou para outros animais e para vegetais, estendendo-se depois aos humanos, dando origem à palavra “raça”. Outros julgam que a palavra se deriva de um vocábulo italiano, usado a partir do século XV, “razza”, significando espécie animal e vegetal e, posteriormente, estendendo-se para as famílias humanas, conforme sua geração e a continuidade de suas características físicas e psíquicas (ou seja, ganhando o sentido das antigas palavras etnia, genos e nação). Quando, no século XVI, para seqüestrar as fortunas das famílias judaicas da Península Ibérica, a fim de erguer um poderio náutico para criar impérios ultramarinos, a Inquisição inventou a expressão “limpeza de sangue”, significando a conversão dos judeus ao cristianismo. Com isso, a distinção religiosa, que separava judeus e cristãos, recebeu pela primeira vez um conteúdo étnico.

É interessante observar, porém, que a palavra “racial” surge apenas no século XIX, particularmente com a obra do francês Gobineau, que, inspirando-se na obra de Darwin, introduziu formalmente o termo “raça” para combater todas formas de miscigenação, estabelecendo distinções entre raças inferiores e superiores, a partir de características supostamente naturais. E, finalmente, foi apenas no século XX que surgiu a palavra “racismo”, que, conforme Houaiss, é uma crença fundada numa hierarquia entre raças, uma doutrina ou sistema político baseado no direito de uma raça, tida como pura e superior, de dominar as demais. Com isso, o racismo se torna preconceito contra pessoas julgadas inferiores e alimenta atitudes de extrema hostilidade contra elas, como a separação ou o apartamento total - o apartheid - e a destruição física do genos, isto é, o genocídio.

Seja no caso ibérico, seja no da colonização das Américas, seja no de Gobineau, seja no do apartheid, no do genocídio praticado pelo nazismo contra judeus, ciganos, poloneses e tchecos, ou o genocídio atual praticado pelos dirigentes do Estado de Israel contra os palestinos, a violência racista está determinada historicamente por condições materiais, isto é, econômicas e políticas. Em outras palavras, o racismo é uma ideologia das classes dominantes e dirigentes, interiorizada pelo restante da sociedade.

Ora, o fato de que no Brasil não tenha havido uma legislação apartheid, nem formas de discriminação como as existentes nos Estados Unidos, e que tenha havido miscigenação em larga escala, faz supor que, entre nós, não há racismo. O fato de que tenha sido necessária a promulgação da Lei Afonso Arinos e que o racismo tenha sido incluído pela Constituição de 1988 entre os crimes hediondos, deve levar-nos a tratar a suposição da inexistência do racismo num contexto mais amplo, qual seja, no de um mito poderoso, o da não-violência brasileira. Trata-se da imagem de um povo ordeiro, pacífico, generoso, alegre, sensual, solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo e o preconceito de classe, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por sua posição econômico-social nem por suas escolhas sexuais, etc.

2. O mito da não-violência brasileira

Por que mito? Porque:
a) um mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma solução imaginária, que torna suportável e justificável a realidade. Em suma, o mito nega e justifica a realidade negada por ele;
b) um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente;

c) um mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, idéias, comportamentos e práticas que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples pensamento, mas formas de ação;

d) um mito tem uma função apaziguadora e repetidora, assegurando à sociedade sua auto-conservação sob as transformações históricas. Isto significa que um mito é o suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, enfrentar as mudanças históricas e negá-las, pois cada forma ideológica está encarregada de manter a matriz mítica inicial. No nosso caso, o mito fundador é exatamente o da não-violência essencial da sociedade brasileira.

Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se. Se fixarmos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos mass media, observaremos que os vocábulos se distribuem de maneira sistemática:

- Fala-se em chacina e massacre para referir-se ao assassinato em massa de pessoas indefesas, como crianças, favelados, encarcerados, sem-terra;
- Fala-se em indistinção entre crime e polícia para referir-se à participação de forças policiais no crime organizado, particularmente o jogo do bicho, o narcotráfico e os seqüestros;
- Fala-se em guerra civil tácita para referir-se ao movimento dos sem-terra, aos embates entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aos homicídios e furtos praticados em pequena e larga escala, mas também para referir-se ao aumento do contingente de desempregados e habitantes das ruas, aos assaltos coletivos a supermercados e mercados, e para falar dos acidentes de trânsito;
- Fala-se em fraqueza da sociedade civil para referir-se à ausência de entidades e organizações sociais que articulem demandas, reivindicações, críticas e fiscalização dos poderes públicos;
- fala-se em debilidade das instituições políticas para referir-se à corrupção nos três poderes da república, à lentidão do poder judiciário, à falta de modernidade política;
- fala-se, por fim, em crise ética.

Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência. Chacina, massacre, guerra civil tácita e indistinção entre polícia e crime pretendem ser o lugar onde a violência se situa e se realiza;fraqueza da sociedade civil, debilidade das instituições e crise ética são apresentadas como impotentes para coibir a violência. As imagens indicam a divisão entre dois grupos: de um lado, estão os grupos portadores de violência, e de outro, os grupos impotentes para combatê-la. Essas imagens baseiam-se em alguns mecanismos ideológicos por meio dos quais se dá a conservação da mitologia.

Mecanismos ideológicos.

O primeiro mecanismo é o da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não-violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. "Eles" não fazem parte do "nós".
O segundo é o da distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, passageiro, uma "epidemia" ou um "surto" localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não-violenta.

O terceiro é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo e latrocínio). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os "agentes violentos" (de modo geral, os pobres e, entre estes, os negros) e legitimar a ação da polícia contra a população pobre, os negros, as crianças de rua e os favelados. A ação policial pode ser, às vezes, considerada violenta, recebendo o nome de "chacina" ou "massacre" quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata da proteger o "nós" contra o "eles".

Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem não-violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural fragilidade feminina, proteção inclui a idéia de que as mulheres precisam ser protegidas de si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino de provocação e sedução;o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural inferioridade dos negros, os quais, como todos sabem, são indolentes e safados;a repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos valores sagrados da família e, agora, da saúde e da vida de todo o gênero humano ameaçado pela Aids, trazida pelos degenerados, etc..

No caso desse mecanismo de inversão, foi sintomática a reação de uma parte da classe média diante do Prouni. De fato, muitos disseram, pasmem!, que se tratava de “opressão racial contra os brancos”, no momento da entrada na universidade, e de “estímulo ao ódio contra os negros”, durante a permanência universitária. Em suma, o Prouni seria a criação do racismo no Brasil!

Mais clara e ainda mais paradigmática do mecanismo da inversão é o que acaba de ocorrer com a Ministra Matilde Ribeiro pela entrevista concedida à BBC: para puni-la por todas as políticas de ações afirmativas e de criação democrática de direitos sociais, econômicos e culturais, para puni-la por sua luta contra a violência racial, os meios de comunicação de massa tentam transformá-la em agente da violência. Ora, ao isolar suas palavras do contexto, os defensores da “não-violência” praticam uma ato de violência psíquica, intelectual e política, pois deformam e traem o que ela disse. Usando essa violência, declaram que não há racismo no Brasil, a não ser este que, segundo eles, ela teria instituído. E, suprema ironia, um dos jornais atacantes e pretensamente não racista costumava referir-se a FHC como “presidente mulatre”!

Em resumo, no Brasil, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira, que, em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o mito da não-violência.

3. Uma sociedade violenta

Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é determinada pelo predomínio do espaço privado (ou os interesses econômicos) sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades, que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade.

As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade;e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Há, assim, a naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas (consideradas desigualdades raciais entre superiores e inferiores), religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas formas visíveis e invisíveis de violência.

A violência está de tal modo interiorizada nos corações e mentes que alguém pode usar a frase "um negro de alma branca" e não ser considerado racista. Pode referir-se aos serviçais domésticos com a frase "uma empregada ótima: conhece seu lugar” e considerar-se isento de preconceito de classe. Pode dizer, como disse certa vez Paulo Maluf, “a professorinha não deve gritar por salário, mas achar um marido mais eficiente” e não ser considerado machista.

Podemos resumir, simplificadamente, os principais traços de nossa violência social considerando a sociedade brasileira oligárquica, autoritária, vertical, hierárquica, polarizada entre a carência e o privilégio e com bloqueios e resistências à instituição dos direitos civis, econômicos, sociais e culturais.

Nossa sociedade conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor (de escravos)-cidadão, e concebe a cidadania com privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidirem. O caso da mídia contra a Ministra Matilde exprime exatamente essa idéia de cidadania concedida e retirada ao sabor dos interesses dos dominantes. Pelo mesmo motivo, no caso das camadas populares, os direitos, em lugar de aparecerem como conquistas dos movimentos sociais organizados, são sempre apresentados como concessão e outorga feitas pelo Estado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante.
Em nossa sociedade, as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades, e estas, em relação de hierarquia, mando e obediência. Os indivíduos se distribuem imediatamente em superiores e inferiores, ainda que alguém superior numa relação possa tornar-se inferior em outras, dependendo dos códigos de hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Todas as relações tomam a forma da dependência, da tutela, da concessão e do favor. Isso significa que as pessoas não são vistas, de um lado, como sujeitos autônomos e iguais, e, de outro, como cidadãs e, portanto, como portadoras de direitos. É exatamente isso que faz a violência ser a regra da vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o paternalismo e o clientelismo, considerados naturais e, por vezes, exaltados como qualidades positivas do "caráter nacional".

Nela, as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos e deveres concretos e compreensíveis para todos. Essa situação é claramente reconhecida pelos trabalhadores quando afirmam que "a justiça só existe para os ricos". O Poder Judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social. Para os grandes, a lei é privilégio;para as camadas populares, repressão. A lei não figura o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca define direitos e deveres dos cidadãos porque, em nosso país, a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas - situação violenta que é miticamente transformada num traço positivo, quando a transgressão é elogiada como “o jeitinho brasileiro”.

Em nossa sociedade, não existem nem a idéia nem a prática da representação política autêntica. Os partidos políticos tendem a ser clubes privados das oligarquias locais e regionais, sempre tomam a forma clientelística na qual a relação é de tutela e de favor. É uma sociedade, conseqüentemente, na qual a esfera pública nunca chega a constituir-se como pública, pois é definida sempre e imediatamente pelas exigências do espaço privado (isto é, dos interesses econômicos dos dominantes). A indistinção entre o público e o privado não é uma falha acidental que podemos corrigir, pois é a estrutura do campo social e do campo político que se encontra determinada por essa indistinção.

É uma sociedade que por isso bloqueia a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: os mass media monopolizam a informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância ou atraso.

As disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável são resolvidas pelas armas e pelos assassinatos clandestinos. As desigualdades econômicas atingem a proporção do genocídio. Os negros são considerados infantis, ignorantes, safados, indolentes, raça inferior e perigosa, tanto assim, que numa inscrição gravada até há pouco tempo na entrada da Escola de Polícia de São Paulo dizia: "Um negro parado é suspeito;correndo, é culpado". Os índios, em fase final de extermínio, são considerados irresponsáveis (isto é, incapazes de cidadania), preguiçosos (isto é, mal-adaptáveis ao mercado de trabalho capitalista), perigosos, devendo ser exterminados ou, então, "civilizados" (isto é, entregues à sanha do mercado de compra e venda de mão-de-obra, mas sem garantias trabalhistas porque "irresponsáveis"). Os trabalhadores rurais e urbanos são considerados ignorantes, atrasados e perigosos, estando a polícia autorizada a parar qualquer trabalhador nas ruas, exigir a carteira de trabalho e prendê-lo "para averiguação", caso não esteja carregando identificação profissional (se for negro, além de carteira de trabalho, a polícia está autorizada a examinar-lhe as mãos para verificar se apresentam "sinais de trabalho" e a prendê-lo caso não encontre os supostos "sinais"). Há casos de mulheres que recorrem à Justiça por espancamento ou estupro, e são violentadas nas delegacias de polícia, sendo ali novamente espancadas e estupradas pelas “forças da ordem". Isto para não falarmos da tortura, nas prisões, de homossexuais, prostitutas e pequenos criminosos. Numa palavra, as classes populares carregam os estigmas da suspeita, da culpa e da incriminação permanentes. Essa situação é ainda mais aterradora quando nos lembramos de que os instrumentos criados durante a ditadura (1964-1975) para repressão e tortura dos prisioneiros políticos foram transferidos para o tratamento diário da população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a qual a miséria é causa de violência, as classes ditas "desfavorecidas" sendo consideradas potencialmente violentas e criminosas.

É uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantação da agroindústria criaram não só o fenômeno da migração, mas figuras novas na paisagem dos campos: os sem-terra, volantes, bóias-frias, diaristas sem contrato de trabalho e sem as mínimas garantias trabalhistas. Bóias-frias porque sua única refeição - entre as três da manhã e as sete da noite - consta de uma ração de arroz, ovo e banana, já frios, pois preparados nas primeiras horas do dia. E nem sempre o trabalhador pode trazer a bóia-fria, e os que não trazem se escondem dos demais, no momento da refeição, humilhados e envergonhados.

É uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um "centro" e uma "periferia", o termo periferia sendo usado não apenas no sentido espacial-geográfico, mas social, designando bairros afastados nos quais estão ausentes todos os serviços básicos (luz, água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto de atendimento médico). Condição, aliás, encontrada no "centro", isto é, nos bolsões de pobreza, os cortiços e as favelas.

População cuja jornada de trabalho, incluindo o tempo gasto em transportes, dura de 14 a 15 horas, e, no caso das mulheres casadas, inclui o serviço doméstico e o cuidado com os filhos.

É uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita das contradições, justamente porque leva as divisões e desigualdades sociais ao limite e não pode aceitá-las de volta, sequer através da rotinização dos "conflitos de interesses" (à maneira das democracias liberais). Pelo contrário, a classe dominante exorciza o horror às contradições produzindo uma ideologia da indivisão e da união nacionais, a qualquer preço. Por isso recusa perceber e trabalhar os conflitos e contradições sociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Contradições e conflitos não são ignorados e sim recebem uma significação precisa: são considerados sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar.

Nela vigora o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se observa no uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de "Doutor" quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior ("doutor" é o substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza);ou como se observa na importância dada à manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento de prestígio e de status, etc..

A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos "miseráveis". A existência de crianças de rua é vista como "tendência natural dos pobres à criminalidade". Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham (se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais) são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas são tidas como degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.

A sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia.

4. Democracia: criação de direitos
De fato, uma sociedade é democrática quando institui algo profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos. Essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática realiza-se socialmente como luta social e, politicamente, como um contra-poder social que determina, dirige, controla, limita e modifica a ação estatal e o poder dos governantes. Fundada na noção de direitos, a democracia está apta a diferenciá-los de privilégios e carências.
Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que desemboca numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias).
Uma das práticas mais importantes da política democrática consiste justamente em propiciar ações capazes de unificar a dispersão e a particularidade das carências em interesses comuns e, graças a essa generalidade, fazê-las alcançar a esfera universal dos direitos. Em outras palavras, privilégios e carências determinam a desigualdade econômica, social e política, contrariando o princípio democrático da igualdade, de sorte que a passagem das carências dispersas em interesse comuns e destes aos direitos é a luta pela igualdade. Avaliamos o alcance da cidadania popular quando tem força para desfazer privilégios, seja porque os faz passar a interesses comuns, seja porque os faz perder a legitimidade diante dos direitos e também quando tem força para fazer carências passarem à condição de interesses comuns e, destes, a direitos universais.
É neste contexto que a práxis da ministra Matilde precisa ser percebida e compreendida. É inconcebível que seu papel na instituição da democracia no Brasil possa ser diminuído ou contestado seja lá por quem for e muito menos pelos agentes da violência institucionalizada neste país.

Marilena Chauí é filósofa e professora da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH)

11 janeiro, 2008

Cidadania x Dominação

Cidadania

Por Benedito Carvalho em 8/1/2008


Contra o Poder – 20 anos de Jornal Pessoal: Uma paixão amazônica, de Lúcio Flávio Pinto, 288 pp., Edição do Autor, Belém, 2007; reproduzido do Jornal Pessoal nº 408, 1ª quinzena de janeiro/2008, título original "Os donos do poder descerão à rinha?"; intertítulos da Redação do OI


O último livro do jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, Contra o Poder – 20 anos de Jornal Pessoal: Uma paixão amazônica, me causou espanto, indignação e, por que não dizer, náusea. O que mais me impressionou no livro de Lúcio, que somente dá seqüência ao seu livro anterior, não foram as denúncias bem apuradas e fundamentadas dos personagens, muitos deles freqüentadores das colunas sociais dos jornais locais, mas a demonstração inequívoca e inquestionável do seqüestro da coisa pública por atores privados. Apropriação de terras, do dinheiro público, do poder para fortalecer os interesses particulares em uma região.

Em um Estado paupérrimo, onde, como demonstra o jornalista, "apenas 23 mil pessoas num Estado que tinha 3,4 milhões de habitantes, dos quais pouco mais de um milhão eram considerados economicamente ativos, ganhavam acima de 20 salários mínimos por mês" (p. 212); onde as grandes mineradoras, apoiadas pelos sucessivos governos, convivem e não se responsabilizam pela população onde implantam seus projetos, isentos de tributos nos seus enclaves coloniais, como o caso de Oriximiná e outras províncias minerais, é perfeitamente compreensível a razão da classe dominante local (e seus aliados internacionais) ser denominada de predadora.

O livro fornece dados fartos que justificam esse adjetivo. É espantoso como no Estado, no Pará e na maioria dos Estados brasileiros, a coisa pública seja apropriada como coisa privada, fenômeno que não pode ser atribuído somente à herança caudilhesca de Magalhães Barata, mas à própria cultura das classes dominantes, desde a colônia, como já nos advertia Caio Prado Junior no clássico livro História Econômica do Brasil.

Posições de classe

A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária como formação social. Não só por suas origens escravistas, pois muitos países, dentre eles os Estados Unidos, tiveram uma origem escravista e, apesar disso, existe cidadania. Na Idade Média européia também existiu escravismo e lá a cidadania se constituiu. O que aconteceu no Brasil é que a estrutura escravista da sociedade patriarcal passa pelo interior da vida republicana e nós vamos ter sempre repúblicas oligarquias, e não res publica.

O Estado é um patrimônio privado de determinados grupos e determinadas famílias (o que nos mostra o livro com toda clarividência e sem rodeios). Isso faz com que as relações sociais no Brasil nunca se estabeleçam a partir de princípios antigos, que não são princípios revolucionários, mas princípios puros e simples do liberalismo, dentre os quais a noção de cidadania é uma delas. A cidadania pressupõe como condição que, do ponto de vista das relações sociais e políticas, os indivíduos sejam vistos como iguais, mesmo que sejam desiguais do ponto de vista econômico.

Ora, isso nunca se estabeleceu no Brasil. Aqui todas as relações sociais se estabelecem entre um inferior e um superior, entre um mandante e um mandado. As relações são sempre de obediência, de submissão, de silêncio cúmplice porque a maioria depende do poder do coronel de plantão, como ocorre no Pará. São relações que aparecem evidentes na família, na escola, no trabalho, na rua. Uma expressão muito comum entre nós é a famosa frase: sabe com quem está falando?

Quando você faz essa pergunta ao outro está dizendo para ele que você é superior a ele. Na expressão norte-americana, correspondente à nossa, por exemplo, o interlocutor diz: quem é que você pensa que é para fazer isso comigo? A primeira frase não estabelece relações horizontais de simetria, de reconhecimento da igualdade, dos direitos e das diferenças. É por isso que no Brasil nunca surge a figura do cidadão. Isso transparece com muita clareza, por exemplo, na nossa dificuldade de considerar que os nossos governantes – seja no poder executivo, seja no poder legislativo – são nossos representantes e que estão lá para realizar a nossa vontade e não a deles.

No Brasil a relação não se dá entre o representante e o representado. Basta você eleger alguém para que ele se sinta numa posição de poder, estabelecendo relações de favor e clientela. Você passa a ser cliente pedinte de um favor. Isso torna impossível o surgimento do espaço público, pois esses espaços são apropriados privadamente.

Lúcio se interroga estarrecido por que o "distinto público", como muitas vezes ele denomina os cidadãos paraenses, ficam apáticos diante de fatos tão estarrecedores que acontecem diante de seus olhos. Em uma charge no Jornal Pessoal, o jornalista publicou uma caricatura de uma mulher num pelourinho, juntamente com cidadãos trafegando indiferentes ao seu brutal sofrimento (referia-se o caso da adolescente de Abaetetuba).

Cidadania, cidadãos, assim como a noção de "povo", como já dizia o velho Osny Duarte Pereira, num livrinho publicado pela Editora Civilização Brasileira, é um conceito sociologicamente ambíguo, pois coloca no mesmo rol situações e posições de classe que vivem cotidianamente de maneira radicalmente diferente, tanto no plano econômico como no simbólico.

Convite à reflexão

O livro Contra o Poder – 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica é, inegavelmente, um obra preciosa e imprescindível para compreender os ardilosos e tortuosos caminhos do poder, sem descambar para o denuncismo panfletário, como estamos acostumados a ver em determinado tipo de imprensa. O jornalismo, ao revelar um fato, checa com rigor o que apura no meio da selva de desinformação e achismos que encontra diante de si, coisas que ele aprendeu com os grandes jornalistas brasileiros e do exterior.

A grande resistência que ele encontra no meio da chamada elite paraense e seus patrões, que têm seus negócios na Amazônia, não está no que mostra para o "distinto público", mas na impossibilidade que eles têm de contestar os fatos que narra com provas. Esse talvez seja o maior ódio de seu leitor enraivecido, que, mesmo enfurecido, lê com assiduidade o Jornal Pessoal, porque encontra ali informações que, muitas vezes, lhe são úteis para enfrentar a feroz concorrência, pois a elite age disputando o poder com ferozes inimigos que se digladiam entre si.

Nas páginas iniciais de seu livro, Lúcio Flávio expõe claramente sua opção com seu jornalismo:
"Numa região como a amazônica, cuja condição colonial é resultante de sua impossibilidade (ou incapacidade) de tomar as rédeas da sua história, o diagnóstico das elites é uma chave elucidativa. Com ela têm mais condições materiais de percepção e antecipação dos fatos, no momento mesmo em que elas ocorrem (ao menos em tese), se forem provocadas para descer da rinha, talvez consiga ajustar o tempo ao da consciência histórica, disfarçada de cotidiano (geralmente insosso e sem glamour)".
Pergunto: quem são e onde estão essas chamadas elites, capazes de provocar os novos coronéis para "descer da rinha"? A decadente classe média do Pará, que vive num bovarismo de um passado imaginário, cooptada pelos seus novos donos do poder? Essa elite sem poder, ou com um poder meramente simbólico, que vemos freqüentemente nas inumeráveis colunas sociais dos coronéis de asfalto?

O velho Marx nos lembrava com seu brilhante sarcasmo que quem escreve a história são os vencedores, e, portanto, a "história dominante é a história da classe dominante". Não vislumbro no momento nenhum movimento social capaz de fazer com que eles desçam à rinha. A história das lutas sociais, os ideais chamados republicanos, tão em moda nesse glamour de pós-modernidade, condenou os ideais à cadáveres para a felicidade dos donos do poder. Michel Focault lembrou que a relação saber e poder nem sempre são simétricas, mas quem os possui sabe capitalizar em seu favor.

É importante abrir essa polêmica. O livro do jornalista é um convite à reflexão. O distinto público que se manifeste. Já está mais que em tempo.