27 novembro, 2012

Eleições americanas: exemplo para quem?

“Temos de parar de dizer que somos a maior democracia do mundo. Sequer somos uma democracia. Somos uma república militarizada.”
- Gore Vidal

Ainda quando os EUA consagravam o apartheid, quando os negros não podiam dividir com os brancos o mesmo banco de ônibus, o mesmo  banheiro público ou a mesma calçada, coisa de pouco mais de 40 anos passados, dizia-se, aqui e em todo o mundo, que a norte-americana era ‘a maior democracia do Ocidente’. Essa democracia deixou de consagrar o racismo, é verdade, mas se curva tanto à ausência de povo quanto à predominância do poder econômico.

São duas as suas principais características de hoje, a abstenção da cidadania, e a presença sufocante do grande capital, seu maior protagonista.

O grande público brasileiro, mesmo os apenas leitores dos jornalões e das revistonas, terá percebido que a grande crise dos EUA é política. Naturalmente imperceptível às análises dos ‘cientistas’ midiáticos, essa crise é alimentada pelo rotundo fracasso de sua democracia representativa, corroída por um sistema eleitoral arcaico, venal, mercantilizado e corrupto, e por um presidencialismo artificialmente bipartidário, que imobiliza as forças políticas e constrói os impasses que paralisam Congresso e Casa Branca em

face dos problemas mais cruciais.


Trevon Robinson deposita o primeiro voto de sua vida em Las Vegas, no Estado de Nevada, em 6 de novembro. Obama teve vantagem de

mais de 20 pontos entre as pessoas de 18 a 29 anos. Foto: David Becker/Getty Images/AFP

A propósito, o primeiro mandato de Obama foi uma corrida de obstáculos, em que a reforma do sistema de saúde foi simplesmente um

episódio. Diferente não será este segundo, haja vista, por exemplo, o conflito entre um Executivo democrata e uma Câmara dos

Representantes de sólida maioria republicana. Com quais forças políticas o Presidente pode dialogar no Congresso, para, por

exemplo, enfrentar o abismo fiscal (fiscal cliff), que ameaça os EUA com o espectro da recessão representada por uma promessa de

queda do PIB entre 3 e 6%, se não houver acordo até janeiro?

Esse mesmo bipartidarismo que divide ideologicamente a sociedade norte-americana, constrói o fosso do presidencialismo e aprofunda

a divisão do país entre pobres e ricos.

Salve o nosso criticado ‘presidencialismo de coalizão’ que, democrático, consagra o entendimento político; salve nosso pluralismo

partidário, que enseja a sobrevivência das minorias e a expressão do mais vasto mosaico ideológico e, sempre, a alternativa do

entendimento político; salve nosso sistema proporcional que impede a ditadura das maiorias ocasionais, fruto do voto distrital,

pelo qual tanto anseiam, entre nós, a direita consequente e os liberais alienados.

As recentes eleições demonstraram que a democracia norte-americana renega a si mesma quando, como hoje, é dominada pelo dinheiro,

pelo poder das grandes corporações que, financiando as campanhas, escolhem os futuros eleitos e comandam o processo eleitoral –

desde as primárias, uma farsa dentro da farsa maior. Nem mesmo o mais obtuso dos néscios terá tido dúvida sobre quem seria o

candidato dos democratas ou dos republicanos nessa e em qualquer eleição presidencial dos EUA. No entanto, antecipando-se, à

eleição propriamente dita, foram gastos milhões de dólares nessa fantasia e o grande concurso passou a ser quem arrecadaria mais.

É a festa dos lobbies – inclusive da direita militarista-expansionista israelense –, de Wall Street e das corporações definindo,

de fato, com o aporte financeiro, o conteúdo dos mandados dos eleitos, a saber, a defesa de seus interesses. As eleições são

decididas fora do espaço eleitoral-legal, cabendo ao eleitorado, como lembrava Gore Vidal, “escolher entre o analgésico A e o

analgésico B. Mas ambos são aspirinas”.

Assim se vê que, contra a ideia liberalóide de democracia universal e intemporal, a realidade constrói o conceito de democracia

historicamente determinado. Nesta hipótese podemos adotar o conceito expresso por Bresser-Pereira em recente artigo na FSP

(5.11.12). A ‘democracia’ norte-americana é ‘uma democracia parada no tempo’.

Essa democracia – que tem muito a invejar ao sistema eleitoral do Brasil e – isto mesmo – da Venezuela (a lisura do processo

eleitoral venezuelano foi elogiada, inclusive, pelo Instituto Carter) – é um confuso processo indireto, sobre o qual incidem

diversas legislações, pois cada Estado pode ter seu próprio sistema. O povo não elege seu presidente, mas delegados a um Colégio

que pode escolher o Presidente contra a vontade da maioria do eleitorado expressa nas urnas. Trata-se de processo arcaico, no qual

sobrevivem, contemporaneamente, voto em cédulas de papel e apuração manual, ao lado de um sistema de urnas e totalização

eletrônicas. Lembram-se das apurações na primeira eleição de Bush? O sistema majoritário faz com que o candidato que tiver obtido

o maior número de votos em um Estado carregue consigo todos os votos a que a unidade federativa tem direito no Colégio, qualquer

que tenha sido a diferença (em outros termos: o eleitor pode votar no candidato A e ter seu voto contabilizado para o candidato

B), assim, aquele candidato que tiver o maior número de votos em todo o país não é necessariamente o eleito, como ocorreu com Al

Gore, em 2000.

O processo brasileiro

A crítica ao processo norte-americano é bom pano de fundo para uma discussão, sempre bem-vinda, sempre necessária, sobre nossa

própria experiência, nesses poucos anos de democracia representativa pós ditadura militar. O qual vem avançando, positivamente, a

cada eleição. Um dos méritos a destacar são os programas anuais gratuitos de rádio e de televisão, e, principalmente, os

programas, igualmente gratuitos para os partidos (mas, como aqueles, pagos, pelo Erário, às emissoras) do período eleitoral.

Contrastando com a estadunidense, que enseja a hegemonia do poder econômico, nossa experiência é exitosa, barateando o custo das

campanhas e assegurando um mínimo de acesso dos candidatos aos veículos eletrônicos, ainda que gozando de tempos abusivamente

díspares (eis um ponto a ser aperfeiçoado). Mas a questão fundamental, é o financiamento público exclusivo das campanhas em todos

os níveis, que se pode completar com outras medidas, como a unificação dos pleitos, e a exigência de renúncia ao mandato do

parlamentar que aceitar cargo no Executivo.

Esta pode ser uma boa pauta para o Congresso pós-Cachoeira.

As prioridades deles

Ao escolher a periferia da China como cenário de sua primeira viagem internacional, o Obama reeleito dá eloquente indicador

daquela que será a prioridade da Casa Branca até pelo menos 2017: a Ásia Oriental, para onde já deslocara navios de sua Marinha de

guerra. Ao desafio auto-imposto de contrapor-se à influência da China (agora com um Partido Comunista renovado e esfingético),

Obama terá de administrar a crescente crise do Oriente, onde os dirigentes de Israel, de quem os EUA são guarda-costas atômicos,

hoje como ontem, parecem não ter limites em sua ação genocida. Essas notícias, porém, trazem boas novas para a América Latina e o

Brasil. Preocupados com outros objetivos, maiores, os EUA não terão tempo de voltar-se para nosso Continente que, assim, poderá

continuar em paz, em desenvolvimento e avançando em seu processo democrático.

Aproveitemos.http://www.cartacapital.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-exemplo-para-quem/

25 novembro, 2012

Drogas - O cultivo da Ignorância

"Epidemia do Crack" - O cultivo científico da ignorância

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 20/11/2012 na edição 721






O jornalista vive mergulhado em sua rotina, ouvindo as fontes autorizadas de sempre, treinadas para falar o que se encaixa nas concepções prévias das pautas cotidianas. Está tão acostumado que passa a agir automaticamente, como se não fosse capaz de pensar.

De repente, se dá conta: não, as coisas não são tão simples assim.

E agora?

O depoimento da repórter Laura Capriglione, da Folha de S.Paulo (transcrito ao final deste artigo), num debate sobre a repressão aos usuários de crack, merece atenção especial pela rara coragem da autocrítica, muito reveladora sobre a formação – e as deformações – do jornalista e sobre as possibilidades de ruptura do círculo vicioso que se forma entre repórteres e fontes.

Antes de chegarmos a ele, tentemos apresentar as bases que sustentam esse questionamento.

A demonização das drogas

A enxurrada de reportagens sobre o uso do crack, que nos últimos anos volta e meia ganham capa e suítes nos principais jornais do país, converge para o sentido comum de aceitação e reverberação do discurso das autoridades: trata-se de uma epidemia que se espalha pelo país, que é extremamente letal e por isso exige intervenção imediata e articulada da polícia e da medicina, com a combinação de dois tipos de violência: a repressão a quem consome a droga nas ruas e a internação compulsória dos usuários.

O discurso terrorista contra o uso de drogas – certas drogas, que se alternam conforme a conjuntura – é recorrente ao longo da história e obedece a interesses políticos muito específicos, como a socióloga Rosa del Olmo apontou num precioso livrinho lançado no Brasil em 1990 (A face oculta da droga, Editora Revan). Não se trata de negar que as drogas fazem mal – evidentemente que sim, embora nunca devamos esquecer que as guerras do ópio, no século 19, foram travadas justamente em defesa do comércio dessas substâncias, considerando os interesses em jogo.

Drogas fazem mal, drogas ilícitas mais ainda, tendo em vista seus danos colaterais de corrupção e violência, tantas vezes fatal. O trabalho alienado faz um mal enorme, e disso pouca gente se lembra, embora estejamos todos voltados para a busca da felicidade e estimulados, permanentemente através da mídia, aos apelos para uma “mudança de estilo de vida” que, estranhamente, ignora os constrangimentos estruturais que nos levam a viver como vivemos, e às tentativas tantas vezes frustradas de escapar da infelicidade pelos mais diversos meios.

Demonizar as drogas é o melhor caminho para sedimentar a ignorância confortavelmente instalada na sala de estar. “Não ofenda, não contorne, não surpreenda o senso comum: enquanto as pessoas acreditarem que as drogas são um mal em si, mantém-se a zona de segurança”, escreveu neste Observatório o professor Luis Fernando Tófoli (ver “A imprensa entorpecida“), ao criticar uma edição do Jornal Nacional em que o âncora-símbolo da emissora arrematava uma reportagem sobre o crack e a internação compulsória dos usuários com o comentário de que “todo mundo diz que crack basta experimentar uma vez só e a pessoa fica viciada”:

“Mesmo com as fantasias apocalíptico-epidêmicas associadas ao crack, ainda assim é necessário corrigir a informação do jornalista e alertar ao leitor que ‘todo mundo’, nesse caso específico, está errado. Não existe uso de droga sem usuário e sem contexto. Por mais que uma substância possa ter, por sua farmacologia, um maior ou menor potencial para induzir dependência, não existem drogas com propriedades ‘mágicas’. É a combinação entre a substância, o momento de vida da pessoa e o contexto de consumo que causam ou impedem a adição. Nenhuma droga vicia por si e nem instantemente, e isso vale tanto para o crack e a heroína quanto para uma das drogas de maior potencial de dependência, o tabaco.”

As próprias reportagens deveriam sugerir alguma dúvida quanto a essa mistificação. Pois não é raro lermos sobre pessoas que “venceram o vício” ou que foram resgatadas das ruas após anos usando essa droga (ver aquie aqui). Além do mais, se o crack vicia ao primeiro contato e condena o indivíduo à morte em pouco tempo – quanto tempo, nunca se diz –, deveríamos estar assistindo a uma sucessão de cadáveres sendo carregados diariamente em carroças – mais ou menos como no tempo da gripe espanhola –, dada a quantidade de maltrapilhos aglomerados em determinadas regiões das grandes cidades que passam os dias se drogando.

Pelo contrário, o recente episódio de repressão no Parque União, uma das favelas da Maré, à beira da Av. Brasil, em 9/11 (ver aqui), mostrou gente muito ágil e lúcida, capaz de serpentear entre o tráfego intenso da via expressa para fugir da “acolhida” das autoridades. A corrida alucinada deveria sugerir alguma indagação sobre o motivo por que essas pessoas rejeitam tão desesperadamente a hipótese de ir para algum abrigo.

A construção do inimigo

Em uma passagem de A sociedade excludente, Jock Young sintetiza a funcionalidade do processo de demonização do “outro”, que recorrentemente se associa ao tema-tabu dos entorpecentes:

“A demonização é importante porque permite que os problemas da sociedade sejam colocados nos ombros dos ‘outros’, em geral percebidos como situados na ‘margem’ da sociedade. Ocorre aqui uma inversão costumeira da realidade causal: em vez de reconhecer que temos problemas na sociedade por causa do núcleo básico de contradições na ordem social, afirma-se que todos os problemas da sociedade são devidos aos próprios problemas. Basta livrar-se dos problemas e a sociedade estará,ipso facto, livre deles! Assim, em vez de sugerir, por exemplo, que grande parte do uso deletério de alto risco de drogas é causado por problemas de desigualdade e exclusão, sugere-se que, se nos livramos deste uso de drogas (diga não’, trancafiem os traficantes), não teremos mais nenhum problema."

A demonização das drogas, e desta droga em particular – que é mais simples porque seus viciados estão mais expostos, visíveis e identificáveis pela sua degradação física –, facilita a articulação do discurso clássico da repressão violenta a um discurso supostamente científico que legitima essa violência ao dizer que não há saída senão a internação compulsória. No domingo (18/11), O Globo repete a ideia ao reproduzir declaração do secretário de Segurança do Rio sobre essa gente que “perdeu a condição cidadã. Sem discernimento, vive miseravelmente entre ratos e baratas, abandonado e em situação deplorável. Basta olhar para perceber que ele precisa de acolhimento”.

Se não soubéssemos do que se tratava, poderíamos até imaginar que o secretário descrevia algum mendigo, esse personagem tão antigo quanto a própria história das cidades, desde a Idade Média.

O risco da adoção do discurso da internação compulsória – e nem vamos aqui discutir a ausência de estrutura para abrigar e tratar tanta gente – é precisamente este: sugere que o foco é um universo restrito de indivíduos e não demora a alcançar todos os que, por qualquer motivo, são incômodos ao convívio social. É o processo típico de construção do inimigo, que o jurista argentino Raúl Zaffaroni analisou em O inimigo no direito penal, apontando sua mais remota origem no conceito de hostis (o “inimigo” ou o “estranho”) do direito romano, que nunca desapareceu da realidade operativa do poder punitivo nem da teoria jurídico-penal: atravessa as épocas, “de cara limpa ou com mil máscaras”, e abrange desde o prisioneiro escravizado da Antiguidade até o imigrante ilegal – e potencialmente “terrorista” – dos dias de hoje, o traficante ou o drogado que vive em bandos. O processo é sempre o mesmo: retirar-lhes a condição de pessoas e classificá-los como entes perigosos ou daninhos para apresentá-los como inimigos da sociedade, de modo que a eles não se apliquem as garantias comuns aos demais cidadãos.

Zaffaroni contesta o argumento de que esse hostis contemporâneo possa ser submetido à contenção “apenas na estrita medida da necessidade” porque “a estrita medida da necessidade é a estrita medida de algo que não tem limites, uma vez que esses limites são estabelecidos por quem exerce o poder”:

"Como ninguém pode prever exatamente o que algum de nós – nem sequer nós mesmos – fará no futuro, a incerteza do futuro mantém aberto o juízo de periculosidade até o momento em que quem decide quem é o inimigo deixa de considerá-lo como tal. Com isso, o grau de periculosidade do inimigo – e, portanto, da necessidade de contenção – dependerá sempre do juízo subjetivo do individualizador, que não é outro senão o de quem exerce o poder."

Pensemos, só por hipótese, nos interesses de quem detém o poder e precisa limpar uma determinada região para “revitalizá-la” através de milionários projetos imobiliários.

De repente, a luz

No início do ano, o governo de São Paulo deflagrou uma espetacular operação de repressão à cracolândia instalada na região da Luz. Orientava-se pelo princípio de “dor e sofrimento” – quem sabe inspirado no “choque e pavor” da última guerra de George W. Bush –, que impediria os usuários de se fixarem em algum ponto da cidade, cortaria o fornecimento da droga e, ao provocar a síndrome da abstinência, os levaria “logicamente” a buscar o serviço de saúde.

No debate sobre “Mídia, Drogas e HIV“ promovido pelo Centro de Convivência É de Lei na quarta-feira (14/9), a jornalista Laura Capriglione relatou que foi durante a cobertura dessa operação que ela e outros colegas, antes acostumados ao conforto da apuração por telefone e ao discurso médico aparentemente coerente, se viram confrontados com uma realidade que desconheciam. Presenciaram a violência, começaram a andar junto com as pessoas obrigadas a circular, conversaram com elas e aos poucos foram desconstruindo a imagem preconcebida do usuário de crack como alguém desprovido de inteligência e capacidade de discernimento e vontade própria.

A rigor, não fizeram nada diferente do que deveriam fazer como repórteres: estar no local dos acontecimentos. Em outros tempos, era comum repórteres saírem às ruas sem pauta definida, para descobrirem coisas sobre o cotidiano da cidade. No caso da cracolândia, tão flagrantemente exposta há tanto tempo, o que os teria impedido de se aproximar daquela gente?

Talvez o preconceito, que Laura citou recorrentemente em seu depoimento. A facilidade de aceitação acrítica do discurso da autoridade – mais impositivo porque aparentemente científico – e a naturalização do viciado como uma não-pessoa, um “nóia”, um zumbi, que eventualmente poderia se tornar perigoso, como nas ocasiões em que ameaçavam os jornalistas e apedrejavam os carros de imprensa.

“Quantas vezes a gente viu aquela cena do carro da imprensa, do carro da televisão, sendo apedrejado pelos craqueiros violentíssimos? A gente viu essa cena um milhão de vezes, um zilhão de vezes... mas ninguém parou pra se perguntar por que é que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa. A maior parte apedrejava os carros da imprensa pelo único e acho que legítimo motivo que essas pessoas têm direito à própria imagem, coisa que não passava pela cabeça de alguém que julgava os caras desumanos demais.”

(Bem a propósito, em junho de 2011 o tema do direito à imagem chegou a ser discutido porque a Folha publicou na capa uma sequência de fotos de um homem grisalho e bem vestido, usando a droga e depois se afastando do local. “A gravata na cracolândia” não correspondia ao estereótipo do viciado em crack. Na crítica em sua coluna semanal, a ombudsman Suzana Singer rejeitou o argumento de que “sempre fizemos assim” com pessoas que se drogavam publicamente, o que apenas reiterava a falta de sensibilidade da redação no trato desse tema. Porém, como comentei aqui à época (ver “Alguém como nós na Cracolândia“), a cena só chamou a atenção porque ali estava exposto “alguém como nós”. O direito à imagem dos marginalizados nunca foi motivo de preocupação).

O monopólio da fala

“Quem, durante muito tempo, teve o monopólio da fala sobre os craqueiros foi exatamente a turma dos médicos, a turma dos psiquiatras, a turma das clínicas”, disse Laura Capriglione, apontando a articulação de interesses: “a maior parte dessas pessoas são também donas de clínicas, donas de entidades e são contratadas pelo poder público, são entidades que têm clínicas, convênios com a Secretaria da Saúde”. E este, segundo ela, era “um pequeno detalhe que passava totalmente despercebido da imprensa, que entrevistava médicos que o tempo inteiro estavam disponíveis para falar sobre os efeitos devastadores do crack na experiência de um dependente químico”.

Essa disponibilidade permanente é parte da estratégia de construção de um consenso no qual o repórter entra como um autômato, alguém a simplesmente reproduzir o discurso da fonte: “Se você ligar para eles à meia-noite e meia eles atendem o telefone e falam, olha, os efeitos são devastadores, e fazem aquela cara: de-vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente escreve, devastadores...”.

Por que o repórter não é capaz de questionar? Talvez porque seus preconceitos estejam tão arraigados que bloqueiem a perspectiva da dúvida. Mas nada justifica a falta de percepção da solidariedade de interesses entre certas fontes e as autoridades do Estado.

O recurso a fontes alternativas

Laura reconhece que estava, como a maioria dos colegas, “contaminada por esse discurso médico”, mas ao mesmo tempo argumenta que a contrapartida custa a aparecer. O que é uma forma de atribuir às fontes a responsabilidade pelo sentido do noticiário, como se tudo se resumisse a um problema de “falta de comunicação” ou de preparo adequado para lidar com a imprensa.

Fontes alternativas, entretanto, não faltam. No caso, a Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, é uma delas, muito bem qualificada e estruturada, responsável, aliás, pela revista que trouxe a síntese do debate de que Laura participou (ver aqui).

O problema talvez esteja na própria formação dos jornalistas, acostumados ao reino das aparências e a reproduzir o senso comum que fantasia soluções simples para questões complexas.

Mas a boa formação é apenas o começo. Porque a melhor formação do mundo é impotente diante de determinada orientação editorial. E, mesmo que a orientação editorial seja crítica, será sempre preciso levar em conta os preconceitos do público, especialmente no caso de estigmas como o do consumo de drogas. Quebrá-los é tão necessário quanto difícil, porque a ignorância é sempre mais confortável: a simplificação maniqueísta é apaziguadora, enquanto a dúvida nos perturba e nos obriga a um esforço incômodo de reflexão.

***

Transcrição do depoimento da jornalista Laura Capriglione no debate promovido pelo Centro de Convivência É de Lei sobre “Mídia, Drogas e HIV” (14/9/2012)

Eu queria agradecer o convite e a oportunidade de estar aqui com vocês. Cabe a mim falar sobre um lado delicado dessa história toda que é o lado da cobertura da imprensa. Eu digo que é um lado delicado porque a imprensa, se por um lado ela joga luzes, ela também pode muito bem, e com a melhor das intenções, reforçar o maior dos preconceitos. (...) Essa cobertura desse evento [a operação na cracolândia] foi pra nós (...) uma experiência extremamente reveladora do que é o universo do crack. Digo isso porque não sei se vocês se lembram quando o crack apareceu, há 20 anos, uma das primeiras matérias que se veiculou foi na Veja, do Elio Gaspari, muito bem escrita como sempre, e a matéria dele começava com um tuiiiimmm, e com esse “tuiiiimmm” a pessoa tava morta, tava frita, “tuiiiimmm” era o suposto “tuiiiimmm” que a droga deflagrava nos sistemas neuronais e aí vinha um linguajar supostamente científico pra dizer exatamente aquilo que o meu colega da mesa mencionou, pra construir a ideia de uma droga que tinha alguns efeitos devastadores, aliás a palavra devastador nunca foi tão utilizada quanto na cobertura do crack, pra dizer o mínimo se diz que o crack é uma experiência devastadora. Mas ele faz muito mais que isso, ele queima os neurônios – tô citando coisas que apareceram na imprensa – ele queima os neurônios, uma tragada vicia inevitavelmente, ele destrói a família, destrói os laços, ele enfim desumaniza a pessoa que deixa de ser um cidadão como nós e passa a ser uma pessoa que precisa de uma intervenção total, e essa intervenção pode ser policial, por que não?, mas pode ser uma internação forçada, compulsória, como a gente ouviu de novo ser mencionado agora na cobertura da cracolândia, essa foi uma das vias que mais acolhimento tiveram... qual a saída? Internação compulsória, isso foi defendido por autoridades, governo do estado...

Pra nós, eu que trabalho na Folha, que é aqui no Centro, quase mergulhada na cracolândia, a gente tem cracolândia de um lado, de outro, na frente e atrás, e pra nós, felizmente ou infelizmente, essa proximidade, quando a gente ouvia as balas, ouvia os tiros, a redação saía, foi muito bom porque a gente tava ali do lado, e a Folha conseguiu flagrar os tiros de bala de borracha, as bombas de efeito moral, isso virou matéria, virou TV Folha, virou um monte de coisa. (...) Isso foi uma experiência muito rica pros profissionais que estavam ali envolvidos. (...) “os craqueiros são pessoas sem o menor discernimento, estão com o cérebro queimado, a droga destruiu qualquer traço de humanidade, generosidade, inteligência”, quem durante muito tempo teve o monopólio da fala sobre os craqueiros foi exatamente a turma dos médicos, a turma dos psiquiatras, a turma das clínicas, essa turma que acabou tendo o monopólio e hoje a gente pode, as pessoas começam a perceber cada vez mais, esse discurso longe de ser científico é um discurso interessado, porque a maior parte dessas pessoas são também donas de clínicas, donas de entidades e são contratadas pelo poder público, são entidades que têm clínicas, convênios com a secretaria da saúde, enfim... só que isso era um pequeno detalhe que passava totalmente despercebido da imprensa, que entrevistava médicos que o tempo inteiro estavam disponíveis pra falar sobre os efeitos devastadores do crack na experiência de um dependente químico.

O que essa experiência da invasão, da disputa do território da cracolândia, fez foi obrigar os jornalistas, que ficaram muito tempo, quase vinte anos, no conforto dessa conversa por telefone na maior parte das vezes, longe da cracolândia, e eu queria só lembrar quantas vezes a gente viu notícias nos jornais, particularmente na televisão, de repórteres muito bem intencionados, por isso eu digo que o problema não foi falta de boas intenções, o problema é um pouquinho maior, tem a ver com preconceito e uma série de coisas, quantas vezes a gente viu aquela cena do carro da imprensa, do carro da televisão, sendo apedrejado pelos craqueiros violentíssimos? A gente viu essa cena um milhão de vezes, um zilhão de vezes, com a melhor das boas intenções. Mas ninguém parou pra se perguntar, só que hoje a gente para pra se perguntar, por isso eu digo que foi um momento que a gente teve de chegar perto do problema, ninguém parou pra se perguntar por que é que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa. A maior parte apedrejava os carros da imprensa pelo único e acho que legítimo motivo que essas pessoas têm direito à própria imagem, tem direito a preservar a própria imagem, coisa que não passava pela cabeça de alguém que julgava os caras desumanos demais pra defender a própria imagem, que essas pessoas tinham esse direito. Por que eles tinham de ser expostos, e isso não é uma prerrogativa, diga-se de passagem, de usuários de crack, qualquer população que vive nessas situações limites são pessoas que ficam extremamente constrangidas com essa exposição na mídia. (...) mas essa imagem dos carros de imprensa sendo apedrejados pelos craqueiros era a mão na luva, era perfeito pra provar a tese que os craqueiros eram não-pessoas, eram animais, pior que animais, que a droga tinha desumanizado esses caras e que eles não mereciam nenhuma consideração a não ser uma intervenção total.

Os jornalistas foram pra cracolândia (...), e tomaram um choque com o que viram lá e com as situações que acabaram presenciando. Eu queria dizer que, entre outras coisas, como a gente tava naquela ideia de que alguma coisa precisa ser feita pra salvar essas pessoas de si mesmas, dessa droga que aliena as pessoas de si mesmas, logo no começo parecia que tudo podia, a secretária [dizia que] com gentileza não dá pra tratar, e ela não tava falando sozinha, ela tava dialogando com uma ideia que a sociedade tinha dessa população. E vocês podem ter certeza que teve um apoio enorme a essa intervenção da secretária, e dentro da Folha.com tem um espaço de comentários (...) e era esse mesmo, tira todo mundo, limpa a rua.

Foi muito importante a presença da Defensoria Pública com aquele panfletinho simplíssimo, que falava de direitos, o cara não tem direito de andar na rua, não tem o direito de ficar parado, de sentar na calçada?, parecia uma coisa normal que ele não tivesse... pra se ver o grau de preconceito que tinha, as premissas com que a gente foi pra rua eram as mais nefastas possíveis. Bom, aí teve jornalista da Folha que saiu andando com os meninos pra medir quanto que esses caras tinham que andar por dia por conta dessas abordagens da polícia e desse impedimento da polícia de que essas pessoas ao menos sentassem. Então se começou a andar junto com as pessoas, começou a conversar com as pessoas, e o que a gente pode ver foi exatamente a desconstrução desses mitos que cercavam os usuários de crack.

Eu tenho certeza que a gente é melhor hoje do que era antes, por incrível que pareça, se essa cobertura, se essa guerra insana que a polícia, que o governo do estado, que a prefeitura moveram, insana mesmo porque a gente vê que os efeitos disso foram simplesmente uma espécie de castigo a essa população que já é tão castigada pela vida, mas um segundo efeito foi aproximar a gente de uma realidade que a gente ignorava solenemente. Porque a gente tava contaminada por esse discurso médico.

Vou dar alguns exemplos, são coisas bestas, bobas, agora recentemente a TV Folha fez uma matéria, a Folha foi atrás de uma velhinha que tava procurando a Desirée, que tava grávida, ela virou personagem porque estava grávida e tava na cracolândia e a sogra dela queria que ela voltasse pra casa porque a Desirée tava ali naquela vida louca. A Desirée é uma das que tá presa, acusada de tráfico, e teve o filho na cadeia. Muito tempo depois, agora, ela teve o filho, ela tá na cadeia, não tá usando crack, tá linda, tá maravilhosa. Fizeram um TV Folha com a Desirée (http://www.youtube.com/watch?v=oG9fIPJCkrI) (...), ela tá com o filho e quer continuar com o filho. Quando o pessoal da TV Folha tava editando o material, veio uma menina muito legal e perguntou, Laura, por que vai sair uma matéria dessas agora, pra pegar e mostrar o quê, isso parece novela do SBT, pra que serve essa matéria?

Bom, quando a gente tava fazendo matéria sobre as mães do crack eu fui até os conselhos tutelares, a pauta foi encaminhada com uma única razão, coitadinhas das crianças que são geradas e nascem numa situação como essa. O poder público tem que tirar essas crianças das mães, o objetivo da pauta era esse. Tem que tirar essas crianças dessa situação absurda e tal. Fui lá no conselho tutelar, qual a posição do conselho tutelar? Tira, tira já, tira já! A posição do conselho tutelar daqui, da Praça da República, é tirar já as crianças dessa situação de risco que as crianças não tem nada a ver com a vida da mãe, não sei que. Eu vou falar francamente que achei que não era tão louco isso, não era tão louca essa posição, que de repente podia até ser, e de repente apareceu na minha frente uma mulher dependente de crack, que não era mais dependente de crack, que tava livre, e que disse, olha, eu só saí do crack por causa do meu filho, a minha única ponte com a vida foi meu filho. Se eu perdesse naquela hora o meu filho eu provavelmente não saía nunca mais. Bom, não sei se não saía mais ou não, mas tornou muito mais difícil aquela equação, não podia ser mais simplesmente assim, a mulher tá no crack, arranca o filho dela. O caso da Desirrée, por mais que parecesse uma novela do SBT, mostrava uma outra coisa, que não era uma via de mão única, que precisa ser visto a situação particular de cada uma das mulheres, não pode ser uma norma geral, você tinha que olhar praquele ser humano, não podia ser uma norma extra tudo, que se impusesse pra supostamente salvar a criança. O quê que começou a acontecer, e é isso que eu queria dizer pra encerrar, aquilo que antes tava tudo muito claro, pra todo jornalista: o craqueiro era um bicho, o filho do craqueiro ou da craqueira tinha que ser arrancado deles, a internação compulsória a gente não gosta muito disso mas também pode mesmo ser a única saída então vamo nessa – pode ser, não: é a única saída –, a gente teve de deixar de lado isso pra começar olhar pra cada um daqueles seres humanos sofridos de uma outra maneira.

Eu acho que a gente errou muito e ainda vai errar muito também. Mas eu acho que aquela experiência da cracolândia, às vezes a gente era, junto com a Defensoria, os únicos que estavam ali, pra falar com eles, pra ouvir as reclamações deles, pra flagrar a viatura da polícia passando duas vezes em cima da cabeça dum menino que foi atropelado numa dessas abordagens (...), de fato a gente teve de começar a se relacionar com uma gente que a gente desconhecia completamente. Eu acho que as coberturas de crack tendem a melhorar, tendem a ser menos preconceituosas, mas eu queria dizer também que esse contradiscurso médico em relação a essa posição que é a favor da internação, que só com drogas pesadas... isso aí precisa melhorar muito, essa comunicação precisa melhorar muito, desse outro lado, o outro jeito de lidar com a coisa, porque de novo: os adeptos dessas medidas totais eles estão sempre disponíveis, se você ligar pra eles à meia-noite e meia eles atendem o telefone e falam, olha, os efeitos são devastadores, e fazem aquela cara: de-vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente escreve, devastadores... é preciso que o outro discurso seja feito também, que outras experiências sejam mostradas. Por exemplo, esse vídeo aí [mostrado pela Defensoria], com esse cara aí falando, é incrível, se queimou os neurônios desse menino e ele falando desse jeito, eu tô querendo também esse negócio... (risos) eu fui numa clínica que era mantida em São Bernardo que aplica esse princípio dos doze passos e que é de um dos médicos mais disponíveis pra dar entrevista, falando que a única saída é a internação, não sei quê. Bom, aí tinha nessa clínica tratava de dependência de álcool e drogas então tinha álcool e o resto tudo era crack ali. E tava todo mundo sem nada, sem fumar, sem nada, e teve uma mesa-redonda, todo mundo falando... A vivacidade daqueles caras acabou com qualquer ideia que eu tivesse sobre esses efeitos arrasadores, o curto-circuito neuronal, pega fogo no cérebro e aquela coisa toda, acabou, eu vi que a gente precisava aprender tudo de novo sobre crack.

***

 [Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed721_o_cultivo_cientifico_da_ignorancia
Memórias da Separação da Palestina

A Ilusão fatal de uma mentalidade de gueto.


Artista plástico que chegou à Palestina em 1935 diz que é preciso acabar 'com essa história de Israel grande' e derrubar 'o muro

da vergonha'
25 de novembro de 2012 | 2h 14
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PAULA SACCHETTA - O Estado de S.Paulo

Toco a campainha da casa em Santana algumas vezes, mas com a música clássica em alto e bom som, que dá pra escutar do lado de

fora, ele certamente não deve ouvir meu chamado. É o ateliê de Gershon Knispel, artista plástico, de 80 anos. Telefono e ele vem

abrir a porta. Vai logo baixando o som, "desse jeito não dá nem pra conversar, mas a música é minha inspiração, sem ela não

consigo trabalhar". Ele mora em um apartamento em Higienópolis com a namorada, mas passa o dia no ateliê.

Veja também:
Peregrinos e sionistas
Um elenco renovado

Paula Saccheta/Estadão
Gerson Knispel. Artista plástico, radicado em SP desde 1995


De origem judaica, Gershon nasceu em Köln, na Alemanha, em 1932 e, aos 3 anos, mudou-se para a Palestina. Muitos acreditaram que

Hitler não duraria tanto, mas seu pai sabia que aquele que havia chegado ao poder pelo Partido Nacional-Socialista em 1933 seria

uma ameaça à família. E assim, na Palestina, entre árabes e judeus, começa a vida e a formação do simpático velhinho que hoje

afirma ser "um pintor de protesto". Tudo que viveu permeia nossa conversa e nos rodeia em pinturas e gravuras espalhadas pelo

sobrado de tijolo iluminado por luz natural. Entre quadros e aquários, ele me recebe com uma camiseta preta na qual dá para

enxergar a etiqueta para fora com letras em hebraico. No momento está organizando sua obra para um livro que deve sair em abril,

mas diz que odeia tudo que o faz parar de pintar. Humanista e humanitário, afirma que sua rotina é reagir. Um dos pioneiros na

chegada dos judeus à "terra prometida", explica como testemunha da história a origem dos conflitos de hoje, nos quais judeus e

árabes continuam se matando entre mísseis, homens-bomba e assassinatos seletivos.

A hostilidade de um gueto
"O grande erro naquela terra foi que os primeiros judeus que chegaram, russos e poloneses principalmente, vieram com uma cultura

de gueto. Chegaram sentindo-se ameaçados e assim se isolaram. Cercaram suas casas com muros de madeira, pedras, sacos de areia.

Compravam terras dos fazendeiros árabes endinheirados, os efêndis, que não avisavam os camponeses que nelas trabalhavam e iam

embora para a Europa. Nelas, os judeus faziam os kibutzim (kibutz no plural), com muros, todos cercados. E foram, aos poucos,

criando uma atmosfera hostil. Construíam torres, diziam que era para a caixa d'água, mas eram torres de vigilância. Tiravam as

pedras e as usavam para cercar e delimitar o território de cada um. Expulsavam camponeses que trabalhavam nas terras e as

cercavam. Esses pioneiros chegaram sem disposição para criar qualquer vínculo com aqueles que já moravam ali. Os alemães, que

chegaram pouco depois, eram mais abertos, mas aí já era tarde.

Um outro povo na terra
"A partir desse choque e desse antagonismo foi surgindo um nacionalismo árabe. Os judeus recém-chegados tinham sindicatos e

organizações, e os árabes, que começaram a se sentir mais fracos, queriam organizar-se também - e o fizeram. Além disso, a língua

falada nas ruas passou a ser o hebraico e até o iídiche foi liquidado, pois era preciso fortalecer uma espécie de orgulho

nacional. Toda uma cultura forte que existia na região foi ignorada e praticamente desapareceu. Quando cheguei à Palestina não

conseguia falar hebraico direito. Falava alemão na rua e era chamado de nazista pelas outras crianças judias. Já com os vizinhos

árabes a coisa era diferente: as casas deles estavam sempre com as portas e janelas abertas, não tinham muitos móveis, mas eram

cheias de tapetes e almofadas onde podíamos nos encostar e deitar. As casas tinham mosaicos de azulejos coloridos e fontes no

quintal. Era diferente da minha própria casa, onde a gente entrava com os pés sujos de lama e tomava bronca da mãe. Eles recebiam

bem quem chegasse. Eu me comunicava com eles em árabe, o pouco que aprendi na rua com as outras crianças. Para mim já era claro:

não haveria futuro se nos fechássemos. E eu queria me adaptar. Minha família se estabeleceu em Haifa, uma cidade portuária, de

pequenas praias, e como meus pais não tinham muito dinheiro, ficamos na parte mais pobre da cidade. Todos os meus vizinhos eram

árabes. Quando chegamos já havia outro povo na terra, não era um deserto. Tinha um povo que era nosso irmão e precisávamos

respeitá-lo. E também eram donos daquela terra.

Dividir para reinar
"Nos anos 1930, judeus intelectuais da Palestina fundaram uma organização política, a Brit Shalom, que pregava a coexistência

pacífica entre judeus e árabes. Era a primeira tentativa de negociação de paz na região. Pregavam que o maior inimigo era o

mandato britânico e que os palestinos, árabes e judeus, precisavam se juntar pela paz permanente e tirar os ingleses da terra.

Lutavam pelo estabelecimento de um Estado binacional onde árabes e judeus tivessem direitos iguais. Abdicavam do sonho sionista da

criação de um Estado puramente judeu. Mas não conseguiram, pois já estava enraizada toda uma infraestrutura para tornar Israel um

Estado judeu. O Grande Levante Árabe de 1936, que chega até nós, hoje, como um levante contra o povo judeu, era contra a

Inglaterra e seu mandato na Palestina, contra o domínio colonial. Para piorar a situação, David Ben Gurion, que viria a ser o

primeiro primeiro-ministro de Israel, inventou o conceito de 'trabalho judaico'. Os camponeses expulsos de suas terras e sem

trabalho nas cidades, já que judeus só empregariam judeus, começaram a sentir mais raiva ainda. Os conflitos começaram a se

aprofundar e a Inglaterra, obviamente, usava isso a seu favor. Dividindo os povos, poderia dominar mais facilmente. Em vez de nos

juntarmos, nos separamos. Ben Gurion chegou à Palestina em 1908, e os judeus alemães, mais 'abertos' à convivência com os

palestinos, só nos anos 1920 e 30.

O primeiro choque
"Sou da chamada 'geração de 1948'. Participei de cinco guerras como oficial do Exército, mas foi em 1953 que tive meu maior

choque, que foi a morte de todo aquele idealismo pra mim. Aos 12 fui morar em um kibutz socialista ao norte de Israel. Meus pais

ficaram em Haifa e fui recebido por Shlomo e Tzilla Rozen. Eu era do Mapam, o partido socialista sionista em 1953, quando um amigo

me levou para visitar Nazaré. Passamos por um hotel para peregrinos que se chamava Casa Nova. Fiquei horrorizado. O hotel era

sujo, tinha um cheiro horrível de urina e muita gente e colchões amontoados nos quartos. Comecei a andar pelos corredores e vi que

conhecia a gente que estava ali. Eles eram de Maalul, um dos centenas de vilarejos tirados do mapa e apagados por Israel depois de

1948. Eles confirmaram que eram de lá, também me conheciam e estavam esperando, me disseram. Estavam naquela situação havia mais

de cinco anos. Esperando o quê? Nas guerras contra o mandato britânico seus vizinhos do kibutz, o mesmo onde eu morava, os tiraram

da aldeia para protegê-los, disseram. Eles ficariam longe de casa durante a guerra, mas voltariam depois, sãos e salvos. Cinco

anos haviam se passado e eles continuavam esperando. Fiquei com raiva. Voltei ao kibutz e perguntei a Shlomo o que significava

aquilo. Contei tudo que havia visto em Nazaré. Ele ficou branco e me respondeu: 'Você conhece Ben Gurion? Ele é impossível. Não

deixa que devolvamos as aldeias aos árabes'. Mas essas aldeias ainda existem?, perguntei. E ele: 'Não vamos entrar em detalhes'.

Mas por que então ele fazia parte do governo de Ben Gurion (Shlomo era ministro da Imigração)? 'É melhor assim porque sem ele

ficaremos pior', respondeu. Rasguei a carteira do partido na cara dele e saí sem me despedir. Entrei no Partido Comunista logo

depois.

Brasil, um painel e um passaporte
"Em 1958, Nina, que tinha sido minha namorada em Israel e veio para o Brasil com a família, me avisou de um concurso promovido

pela TV Tupi para a execução de um mural no prédio deles. Eu já era artista plástico. Me inscrevi, mandei os croquis e venci. O

painel ainda está lá: são índios de 7,5 metros de altura, no lugar mais alto de São Paulo, no Sumaré, onde hoje funciona a MTV.

Uma vez no Brasil, me juntei ao pessoal do CPC, Centro Popular de Cultura, o Guarnieri, o Juca de Oliveira, o Augusto Boal e,

entusiasmado com eles, fui ficando. Fiz uma gráfica para imprimir gravuras. O Brasil se tornou minha pátria também. Me juntei ao

Partido Comunista com Mário Schenberg, Villanova Artigas e Oscar Niemeyer, que se tornou um amigo próximo. O prédio da MTV foi

tombado recentemente, recebi a notícia com muita alegria. É uma garantia de que aquilo será preservado. Em 1964, no dia seguinte

ao golpe militar, já comecei a ser procurado. Estava envolvido demais com o Partido Comunista e o CPC, era perigoso para eles.

Peguei um cachimbo, tabaco, um passaporte e um talão de cheques e fui atrás de gente do Mapam, aquele mesmo partido do qual eu

havia rasgado a carteirinha, em São Paulo. Tínhamos divergências, mas numa hora dessas eles precisavam me ajudar. Me transferiram

para o Rio, onde ficava a Embaixada de Israel. Fiquei lá alguns dias e arranjaram um voo para Israel. De 1964 a 1986 morei em

Haifa e trabalhei como conselheiro de arte da prefeitura. Em 1986, virei presidente do conselho dos artistas plásticos de Israel.

Em 1987, 20 anos depois da Guerra dos Seis Dias, fizemos uma exposição com 67 artistas, metade árabes e metade judeus, contra a

ocupação israelense de terras palestinas. Voltei ao Brasil em 1995 e fiquei.

Reféns de um Estado distante
"O problema é que a política do Estado de Israel, desde sempre, foi de derrubar tentativas de negociação de paz, pois eles não

queriam um Estado palestino ou um Estado binacional. Nós, da geração de 1948, chegamos à conclusão de que a grande euforia por um

Estado não levou em conta que iríamos nos tornar um país ocupante e, com o tempo, um país baseado nos princípios fascistas mais

radicais. Temos agora uma bomba atômica e um muro de 650 quilômetros de extensão e 8 metros de altura. Nos jornais dos últimos

dias, senti uma tristeza enorme ao ver fotos de israelenses procurando abrigo nas ruas das cidades bombardeadas. Afinal, os

mísseis e foguetes que saíram de Gaza não passaram por cima do muro? Então para que ele serve? Serve para separar famílias, tornar

o caminho dos palestinos mais difícil, e eles já estão fartos disso. Um pacifista israelense, Gershon Baskin, disse que o

assassinato de Ahmed Jabari, líder militar do Hamas, foi um 'erro estratégico'. Não foi um erro estratégico, é a estratégia de

sempre. A estratégia é não querer a paz. Yitzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel em 1974-1977 e 1992-1995) e Yasser Arafat

(líder da Autoridade Palestina) representavam os maiores perigos para Israel, pois eram capazes de estabelecer uma paz de fato na

região. Rabin foi morto por um judeu ortodoxo de extrema direita e Arafat terá seu corpo exumado ainda este mês porque suspeita-se

que ele tenha sido morto por exposição a substâncias radioativas pelo serviço secreto israelense. Quando começaram esses últimos

ataques jovens saíram às ruas aqui em São Paulo, na Av. Paulista, para protestar contra o Hamas. Eu me pergunto, o que eles estão

fazendo? Aqui, por serem judeus, ficam reféns de um Estado que pratica essas atrocidades. Não têm o direito de votar lá, mas

assumem, aqui, os crimes deles.

A ilusão final
"Manter Israel como é mantido hoje, como uma coisa única e completa, é suicídio. Hannah Arendt, em seu relato sobre o julgamento

de Adolf Eichmann, nazista executado nos anos 1960, criticou a tendência dos israelenses de fazerem uma expansão desenfreada,

criando uma situação em que todos os esforços se concentram em armas, transformando a cultura e o Estado 'modelo' que eles queriam

em uma ilusão fatal. Quanto tempo, perguntou ela, vai durar um Estado que só sobrevive à base da força? Precisamos acabar com essa

história de Israel grande, precisamos devolver os territórios ocupados e derrubar o muro da vergonha. Nossa geração, que achava

que estava libertando o Oriente Médio do colonialismo, percebeu que aquilo era uma ilusão. Em 1956, na Guerra do Suez, eu era

paraquedista e fui enganado. Derrubamos o projeto do Nasser para nacionalizar o Canal de Suez, que era legítimo. Achei que estava

ajudando, mas foi uma aventura colonialista ao lado da Inglaterra e da França. Hoje somos usados de novo: Israel é o maior

parceiro das aventuras imperialistas norte-americanas no Oriente Médio. E eu não paro de falar, escrever e pintar. Não paro porque

é um bom jeito de ficar vivo."http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,memorias-de-uma-ilusao-fatal,964901,0.htm

18 outubro, 2012

A saída para a crise
Gilles Lapouge - O Estado de S.Paulo
18 de outubro de 2012 | 3h 11

O presidente francês, François Hollande, teve uma ideia e a confiou numa entrevista coletiva concedida aos seis maiores jornais europeus.

"Estamos perto, muito perto da saída da crise do euro... O pior ficou para trás." Nada mal...

Sob esse título retumbante, Hollande explicou. Está se conseguindo resolver de maneira definitiva a situação da Grécia que fez muitos esforços e deve ter assegurada sua permanência na zona do euro. Ao mesmo tempo, responderam-se às demandas dos países que fizeram as reformas esperadas e devem poder se financiar com taxas razoáveis.

Enfim, a Europa criou a União Bancária.

E para os que poderiam duvidar do otimismo de Hollande, este prosseguiu dando garantias. Essas garantias, na verdade, são o próprio Hollande. Ele  fala com frequência, na primeira pessoa, como se fosse madame Angela Merkel: "Quero que todas as questões relativas à União Bancária sejam acertadas até o fim do ano (...) Eu quis que a Europa assumisse a prioridade do crescimento, sem recolocar em questão a seriedade orçamentária...".

No embalo, ele deu suas instruções aos dirigentes dos países da zona do euro: "Os países que estão com superávit devem estimular sua demanda

interna com um aumento dos salários e uma redução das deduções". E, ao contrário, teve um pensamento para os países que sofrem com a austeridade:

"Não se deve infligir uma pena perpétua a nações que já fizeram sacrifícios consideráveis se os povos não constatarem, em algum momento, o  resultado de seus esforços". Não é difícil perceber, por trás desses "retratos falados", primeiro a Alemanha, e depois a Grécia, a Espanha, a Itália, a Irlanda...

Aqui e ali, percebem-se críticas à Alemanha, mas sem acrimonia. Sobre a chanceler Merkel, ele disse: "Ela é clara. Ela diz as coisas. Isso faz  ganhar tempo. Eu tenho a mesma abordagem. Em seguida, de nossos pontos de partida, nós procuramos encontrar o melhor ponto de chegada. É mais fácil com esses pontos de partida explícitos do que com pontos de partida ambíguos. E ninguém pode dizer que madame Merkel é ambígua."

Essas declarações são duplamente importantes. De um lado, Hollande se mostra um belo otimista. Ele é o primeiro "vigia" que nos anuncia que o céu se desanuviará e que um dia os bons tempos voltarão. De outro, esse homem que, com frequência, pintamos como indeciso, um pouco apagado, se apresenta como um chefe. E como um dos arquitetos da Europa. "Eu quero..., eu quis... eu decidi..., etc." O otimismo de Hollande será partilhado?

No mesmo jornal Le Monde (consagrado à Europa), o ministro brasileiro da Fazenda, Guido Mantega, foi mais prudente. "Não vimos uma compra de  dívida pelo Banco Central Europeu (BCE). O Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (Feef) não funciona, embora essa medida tenha sido anunciada há um ano. Os problemas persistem de maneira muito grave na Grécia e na Espanha.

"As soluções propostas dizem respeito apenas aos problemas visíveis, em outras palavras, à possibilidade de crash dos bancos e ao refinanciamento  da dívida soberana. As medidas anunciadas podem pôr fim ao estresse desses dois mercados, mas não resolverão a questão central da retomada."

"... Trata-se de saber se essa iniciativa, que consiste em dizer às populações que os salários continuarão a baixar e o trabalho continuará a  faltar durante dois ou três anos, ainda é politicamente viável. É uma estratégia temerária." O ministro brasileiro falou depois de Hollande que também desejou colocar a ênfase no retorno do crescimento.

"Sim", disse Mantega, "mas mesmo concordando com Hollande, não vejo essas questões na ordem do dia. A proposta consiste em fazer uma economia de  30 bilhões aumentando impostos e reduzindo despesas.

Mas onde está o programa de investimentos? O banco europeu para o desenvolvimento já existe, mas não funciona. É preciso pensar com urgência em uma estratégica que abrevie a crise. O tempo passa..." E Mantega terminou com a bela frase "Como disse John Maynard Keynes, no longo prazo, estaremos todos mortos". / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-saida-para-a-crise-,947228,0.htm

09 outubro, 2012

Neutralidade e Status Quo

Menalton Braff
Ex-professor, é contista, romancista (com 18 obras publicadas) e cronista.
tamanho da fonte


Tenho de começar declarando que isto aqui é uma crônica, não um ensaio. Não estou, portanto, obrigado a citar minhas fontes ou fornecer uma bibliografia como certos textos de que, por sua natureza, exigem-se.

E, como cronista, afirmo que toda neutralidade é uma ingenuidade. Se alguém assiste a um marmanjão massacrando uma criancinha e se diz neutro, é  difícil entender que ele está beneficiando o marmanjão? Usando a terminologia hegeliana, se não interfiro em um processo qualquer e me mantenho neutro (posição admitida como hipótese), estou reforçando a tese em luta contra a antítese. E não existe movimento que não seja em luta.  


De umas leituras antigas me lembro de uma afirmação que me norteou a vida toda. A falácia da neutralidade esconde, sempre, um apoio implícito ao statu quo, isto é, a concordância, ou pelo menos a aceitação, da situação vigente.

Ora, seres humanos, que somos, estamos condenados à liberdade (Sartre), que, por sua vez, implica responsabilidade. Sujeitos de nossa própria

história, abdicar de uma tomada de posição não é só covardia, muito mais que isso, é declarar-se satisfeito com o existente. Ou, em outras  palavras ducor non duco.

Este assunto me ocorre porque neste fim de semana fui acusado de, em meu último romance, O casarão da rua do Rosário, ter assumido uma posição  política de um grupo de personagens em detrimento de outro. O autor da acusação me queria neutro. Ah, meu caro, nem o Roland Barthes acreditava mais no “grau zero da escrita”. A pretensa neutralidade da arte é pura escamoteação. Não existe, a não ser no pensamento ingênuo de algumas pessoas.

Mas preciso dizer mais. Não sou a favor da arte como panfleto, não sou a favor da arte utilizada pelo poder seja ele qual for. Mas não existe  arte que não seja a cosmovisão do artista. Caravaggio foi barroco porque não viu o mundo como este era visto por Leonardo da Vinci. Ele pintou como entendeu o mundo. Castro Alves não vituperou a escravidão apenas como desfastio. Mas que digo eu, isso já é radicalizar o argumento. A poesia de Lord Byron, por acaso, não é a expressão de sua visão do mundo? Alguém já fez arte contra seus princípios (morais, políticos, religiosos)? A leitura profunda de qualquer objeto artístico vai sempre encontrar uma maneira especial de encarar o mundo.

Então, para finalizar, o que não pode, meu caro leitor, isto sim, é que a moral, a política ou a religião estejam como objetivo primeiro do  objeto de arte. Se o plano da expressão perde espaço para o plano do conteúdo, aí sim, aí nós temos uma arte falhada em seu princípio. Acho que fui acusado de um pecado por erro de leitura do acusador, só isso.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/cultura/da-neutralidade/?autor=958

23 março, 2012

Ditadores do Oriente e o Terrorismo

A herança do radicalismo
23 de março de 2012 | 3h 02
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GILLES LAPOUGE - O Estado de S.Paulo

Ele está morto. Na véspera, disse que não queria morrer e "adorava matar", mas não ser morto. Preferia viver. Depois

corrigiu. Afirmou: "Se eu morrer, será sorrindo". Mais tarde, disse: "Morrerei de arma na mão".


Os policiais e políticos fizeram de tudo para evitar sua morte. Queriam ouvi-lo. Esperavam que a fadiga e a angústia

conseguissem dobrá-lo, mas, depois de 32 horas de reclusão em seu apartamento em Toulouse, ele ainda resistia.

Então os homens da tropa de elite francesa entraram. Cinco minutos de inferno. Tiros. O homem que quis "colocar a

França de joelhos" caiu por terra, sem vida.

É o que sabemos. O resto é mistério. As raras pessoas que o encontraram se contradizem. Alguns se recordam do seu

"olhar frio". Bastava olhar para ele para sentir medo. Mas Christian Etelin, que o conheceu melhor, pois foi seu

advogado nas várias altercações que Merah teve com a Justiça desde a adolescência, fala de "uma beleza fascinante",

uma "voz doce", "um rosto de anjo".

Agora, muitas questões serão levantadas. Uma delas é técnica. Como o serviço secreto francês, que tinha a ficha de

Merah em seus arquivos e o conhecia bem, jamais agiu para neutralizá-lo? Enquanto ele não passasse à ação, isso é

normal. Não se prende qualquer um só porque viajou ao Afeganistão. Mas deveria ter sido vigiado. Além disso,

decorreu mais de uma semana entre o assassinato do primeiro soldado e a morte das crianças judias. Não seria

prudente levantar sua ficha, procurá-lo?

Um outro aspecto, mais importante: na França todos achavam que o perigo do terrorismo extremo tinha

desaparecido. Não é verdade. Uma disputa já se desenha no horizonte. A extrema direita de Marine Le Pen critica

Nicolas Sarkozy pela sua excessiva tolerância em relação à imigração. Os amigos de Sarkozy, por seu lado, acusam

os socialistas e a esquerda de gritar de indignação e citar sempre os direitos humanos cada vez que o governo quer

reforçar os controles, expulsar os imigrantes clandestinos, expurgar as "áreas difíceis" (subúrbios de imigrantes).

Sarkozy já anunciou novas medidas drásticas para derrotar o terrorismo. Ninguém duvida que, na sua campanha

eleitoral, ele vai "radicalizar seu discurso, mais à direita", para esvaziar o reservatório de votos de Marine Le Pen e

cercar o socialista Hollande, retratando-o como um frouxo, um fraco.

Radicalismo. A mórbida aventura de Merah e o despertar do terrorismo levanta um outro ponto, que raramente é

discutido há mais de um ano do início das revoluções da Primavera Árabe. Três países se livraram dos seus tiranos:

a Líbia, a Tunísia e o Egito. Esses ditadores eram inimigos do terrorismo islâmico.

Os três países atravessam hoje um período de transição, tentando desenvolver uma democracia. Não é fácil. A

desordem e o quase caos reinam na Líbia, no Egito, na Tunísia. Os islâmicos retornaram. Estão prestes a dividir a

Líbia em duas. Na Tunísia, os salafistas tornam a vida dura, muito dura, para as autoridades. No Egito, a

Irmandade Muçulmana ressurge com toda força. Seus membros sustentam que se tornaram democráticos, mas

ninguém duvida que sonhos obscuros povoem suas noites e a sharia faça parte do seu pequeno teatro mental.

Claro que o personagem estirado no chão na manhã de ontem, o imbecil, o cretino que espalhou a morte em

Toulouse não tem nenhuma relação com esses três países. Mas é evidente que o discurso, a pregação, o sermão, o

messianismo islâmico encontraram nesses países mergulhados na desordem e no sofrimento novas reservas de

mortífera eloquência. E essas vozes serão ouvidas, durante meses, talvez anos, pelos espíritos fracos e abandonados

que atormentam as cidades da Europa. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA

MARTINOhttp://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-heranca-do-radicalismo-,852126,0.htm