08 novembro, 2014

Desemprego como empreendedorismo

“Caos” Weselsky, o maquinista que paralisou a Alemanha de Merkel
Frederico Füllgraf
 sex, 07/11/2014 - 22:21
Atualizado em 08/11/2014 - 04:01

Frederico Füllgraf

Exclusivo para Jornal GGN



A Saxônia alemã foi berço de muitos luminares.

Lá nasceram e presentearam o mundo com suas obras sublimes, artistas como Clara e Robert Schumann, o mitológico Richard Wagner, mas também seu “melhor inimigo”, o ensaísta e filósofo Friedrich Nietzsche.

Povo altivo e não menos brioso, alguns saxões entraram para a História como a turma do barulho. Se Nietzsche foi considerado um arrogante iconoclasta pela pompa prussiana do séc. XIX terminal, seu conterrâneo e também celebridade internacional, Georg Baselitz, chocou os salões de belas artes nos idos de 1960, desvelando uma tela de dois metros por um e meio, na qual um garoto com pênis enorme se masturbava – espanto e ohs! entre os bem pensantes e bem vestidos. Sentindo-se insultados, o quadro “A grande noite vai pro brejo” foi rapidamente banido das galerias e Baselitz autuado por “incitação à pornografia”.

Mas enquanto Nietzsche e Baselitz sentiam apenas prazer em irritrar a burguesia, Karl Liebknecht – um saxão dissidente do partido socialdemocrático e co-fundador com Rosa Luxemburgo do partido comunista alemão, KPD – estava mesmo decidido a derrubá-la do poder. Não teve sorte: em janeiro de 1919, foi assassinado com Rosa pelos paramilitares de Gustav Noske, o chefão da polícia do SPD.

Foi nesse Zeitgeist do opróbio, quando a serpente nazista punha seus ovos, que cresceu Walter Ulbricht – este, sim, um saxão maldito! Não porque era comuna e primeiro-ministro da RDA, mas porque em 1963 mandou construir aquele Muro, nefando e feio, que ruiu em 9 de novembro de 1989, depois de dividir Berlim ao meio.

Weselksy, o bad boy

Naqueles dias, um jovem maquinista manobrava locomotivas na estação ferroviária de Kreischa, Saxônia profunda. Não-filiado ao estalinista SED no poder, prejudicara sua carreira e sonhava apenas aquele sonho circular dos perdedores, no qual não cabia qualquer utopia. Por exemplo, que em surdina, Mikhail Gorbatchev conspirava contra o fim daquele socialismo aborrecível, cujos súditos só assistiam e se reconheciam na TV do Ocidente capitalista, ou que, um belo dia, ele – o apagado maquinista – não paralisasse apenas um trem, mas a Alemanha toda, unificada.

A idiossincrasia de um país também se descreve com adágios, e da Alemanha se diz que lá os trens nunca atrasam. Não atrasavam, até entrar em cena Claus Weselsky, o ex-manobrista Ossie, apodo pejorativo dado aos orientais. Sua ironia foi desafiar seu empregador, a estatal Deutsche Bundesbahn (DB), e peitar a poderosa Angela Merkel, sua conterrânea na antiga RDA.

No comando do GDL – Sindicato dos Maquinistas Alemães, um dos mais antigos sindicatos do pais, fundado em 1919, e em greve pela segunda vez em 2014, Weselsky parou a Alemanha, fazendo jus ao trocadilho com seu nome, Claus, reverberado pelo país afora como sinônimo de caos.

Desafiando a República Neoliberal Merkeliana

Os 19.000 maquinistas comandados por Weselsky ganham em média 2.700 Euros (aprox. 8.100 Reais), e cobram 5% de aumento mais uma redução da jornada de 39 horas semanais; sobretudo em virtude do estresse adicional ocasionado pela parafernália de operações digitais que lhes são cobradas com a modernização das ferrovias e a operação do trem bala ICE, que mais voa do que desliza sobre os trilhos, com seus 350 km horários.

Além do aumento e da redução de jornada – que a mídia alardeia como inaceitável composição de 15% - Weselsky luta pela incorporação ao GDL dos 17.000 manobristas de estação e comissários de bordo dos trens de passageiros, representados pelo rival EVG – Sindicato de Transportes e de Ferrovias. Denunciando o EVG como “sindicato pelego”, o Ossie entrou em rota de colisão não apenas com as ferrovias federais, mas com a central sindical DGB, desde sempre comandada pelos socialdemocratas que dividem o governo com a democracia-cristã de Angela Merkel.

A briga é de cachorro grande e ataca o cerne da lógica neoliberal: durante a modernização e automação da malha ferroviária, iniciada pelos próprios socialdemocratas, a estatal DB - cuja missão estatutária é prestar serviços à cidadania e não privilegiar o lucro – incorporou o agressivo modelo de administração privada, desfez-se de diversos ramais “não lucrativos” e os entregou às empresas particulares Abellio, Arriva, Benex, Hessische Landesbahn, Keolis e Veolia. Espertas, aos seus 6.000 maquinistas estas pagam salários 30% inferiores ao piso da estatal, por isso também punidas com seus trens paralisados nas estações. Contudo, a dialética perversa que se expressa no conflito é que o arrocho praticado pelas ferrovias privadas encoraja a estatal ao jogo duro.

Estimando o estrago em 100 milhões de Euros/dia, a DB concordou com os 5% de aumento, mas escalonados ao longo de 30 meses, oferecendo ainda um vergonhoso cala-boca de 325 Euros na mão. Não houve acordo: nesta sexta-feira o conflito foi parar na Justiça.

Luta de classes: da rua para a mídia

Num país onde a distância máxima a percorrer – por exemplo, os 850 km de Munique a Hamburgo – desestimula a utilização do avião e faz milhões de profissionais optar pelo trem, confortável e seguro, a greve dos ferroviários foi enfrentada com hostilidade. No Twitter, o líder sindical foi provocado com a pergunta ameaçadora, se “por acaso tem um guarda-costas confiável”, e o tablóide sensacionalista “Bild” (tiragem: 2,43 milhões de exemplares diários vendidos) o apelidou de “megalotrem-maníaco”.

“Quando executivos perpetram seus ´ajustes na folha de pagamento´, nós damos de ombros”, escreve Jacob Augstein - maior acionista do semanário “Der Spiegel” e, curiosamente, a única pena que escreve à esquerda. E fulmina: “Já quando os menos favorecidos lutam por seus interesses, todo mundo se indigna. A greve dos ferroviários não é nenhum escândalo, mas um verdadeiro presente. Ela nos faz recordar o poder dos trabalhadores”.

Gloriosos os tempos em que a federação dos metalúrgicos IG-Metall paralisava os altos fornos e a indústria aumobilítistica nos idos de 1970. Ou quando os trabalhadores gráficos e jornalistas, agrupados na federação IG-Druck, paravam as redações de jornais e as rotativas!

O “efeito Merkel” da desindexação da Economia e “flexibilização” do mercado de trabalho, onde o homem voltou a ser o lobo do homem, contaminou a memória e intoxicou o velho instinto da solidariedade.

“Isso nós esquecemos”, prossegue Augstein: “O vendaval da opinião pública sopra de modo tão cortante na cara de Weselsky, porque com o andar da carruagem não poucas pessoas recomendam que os trabalhadores tratem de aceitar o que o chefe lhes paga, ou que calem o bico”.

Byung-Chul Han, filósofo alemão de origem coreana, escreveu:”O neoliberalismo faz do trabalhador oprimido um livre empreendedor, um empresário de si mesmo. Hoje em dia, todo mundo é um trabalhador auto-explorado por sua própria ´empresa´. Todo mundo é senhor e servo na mesma pessoa. Também a luta de classes transmuta-se em luta do homem consigo mesmo. Hoje em dia, quem fracassa, auto-acusa-se e sente vergonha. As pessoas questionam a si mesmas, ao invés da sociedade”.

A citação é credito de Augstein, que alerta: “A luta de classes não ocorre mais nas ruas e, sim, no foro íntimo. Margaret Thatcher teve que combater os sindicatos com violência policial – linchamento hoje plenamente assumido pela mídia”.

A segunda ironia: Weselsky é filiado ao partido democrata-cristão de Angela Merkel.http://jornalggn.com.br/blog/frederico-fuellgraf/“kaos”-weselsky-o-maquinista-que-paralisou-a-alemanha-de-merkel#.VF1iEIMSKzI.twitter