25 novembro, 2012

Memórias da Separação da Palestina

A Ilusão fatal de uma mentalidade de gueto.


Artista plástico que chegou à Palestina em 1935 diz que é preciso acabar 'com essa história de Israel grande' e derrubar 'o muro

da vergonha'
25 de novembro de 2012 | 2h 14
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PAULA SACCHETTA - O Estado de S.Paulo

Toco a campainha da casa em Santana algumas vezes, mas com a música clássica em alto e bom som, que dá pra escutar do lado de

fora, ele certamente não deve ouvir meu chamado. É o ateliê de Gershon Knispel, artista plástico, de 80 anos. Telefono e ele vem

abrir a porta. Vai logo baixando o som, "desse jeito não dá nem pra conversar, mas a música é minha inspiração, sem ela não

consigo trabalhar". Ele mora em um apartamento em Higienópolis com a namorada, mas passa o dia no ateliê.

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Gerson Knispel. Artista plástico, radicado em SP desde 1995


De origem judaica, Gershon nasceu em Köln, na Alemanha, em 1932 e, aos 3 anos, mudou-se para a Palestina. Muitos acreditaram que

Hitler não duraria tanto, mas seu pai sabia que aquele que havia chegado ao poder pelo Partido Nacional-Socialista em 1933 seria

uma ameaça à família. E assim, na Palestina, entre árabes e judeus, começa a vida e a formação do simpático velhinho que hoje

afirma ser "um pintor de protesto". Tudo que viveu permeia nossa conversa e nos rodeia em pinturas e gravuras espalhadas pelo

sobrado de tijolo iluminado por luz natural. Entre quadros e aquários, ele me recebe com uma camiseta preta na qual dá para

enxergar a etiqueta para fora com letras em hebraico. No momento está organizando sua obra para um livro que deve sair em abril,

mas diz que odeia tudo que o faz parar de pintar. Humanista e humanitário, afirma que sua rotina é reagir. Um dos pioneiros na

chegada dos judeus à "terra prometida", explica como testemunha da história a origem dos conflitos de hoje, nos quais judeus e

árabes continuam se matando entre mísseis, homens-bomba e assassinatos seletivos.

A hostilidade de um gueto
"O grande erro naquela terra foi que os primeiros judeus que chegaram, russos e poloneses principalmente, vieram com uma cultura

de gueto. Chegaram sentindo-se ameaçados e assim se isolaram. Cercaram suas casas com muros de madeira, pedras, sacos de areia.

Compravam terras dos fazendeiros árabes endinheirados, os efêndis, que não avisavam os camponeses que nelas trabalhavam e iam

embora para a Europa. Nelas, os judeus faziam os kibutzim (kibutz no plural), com muros, todos cercados. E foram, aos poucos,

criando uma atmosfera hostil. Construíam torres, diziam que era para a caixa d'água, mas eram torres de vigilância. Tiravam as

pedras e as usavam para cercar e delimitar o território de cada um. Expulsavam camponeses que trabalhavam nas terras e as

cercavam. Esses pioneiros chegaram sem disposição para criar qualquer vínculo com aqueles que já moravam ali. Os alemães, que

chegaram pouco depois, eram mais abertos, mas aí já era tarde.

Um outro povo na terra
"A partir desse choque e desse antagonismo foi surgindo um nacionalismo árabe. Os judeus recém-chegados tinham sindicatos e

organizações, e os árabes, que começaram a se sentir mais fracos, queriam organizar-se também - e o fizeram. Além disso, a língua

falada nas ruas passou a ser o hebraico e até o iídiche foi liquidado, pois era preciso fortalecer uma espécie de orgulho

nacional. Toda uma cultura forte que existia na região foi ignorada e praticamente desapareceu. Quando cheguei à Palestina não

conseguia falar hebraico direito. Falava alemão na rua e era chamado de nazista pelas outras crianças judias. Já com os vizinhos

árabes a coisa era diferente: as casas deles estavam sempre com as portas e janelas abertas, não tinham muitos móveis, mas eram

cheias de tapetes e almofadas onde podíamos nos encostar e deitar. As casas tinham mosaicos de azulejos coloridos e fontes no

quintal. Era diferente da minha própria casa, onde a gente entrava com os pés sujos de lama e tomava bronca da mãe. Eles recebiam

bem quem chegasse. Eu me comunicava com eles em árabe, o pouco que aprendi na rua com as outras crianças. Para mim já era claro:

não haveria futuro se nos fechássemos. E eu queria me adaptar. Minha família se estabeleceu em Haifa, uma cidade portuária, de

pequenas praias, e como meus pais não tinham muito dinheiro, ficamos na parte mais pobre da cidade. Todos os meus vizinhos eram

árabes. Quando chegamos já havia outro povo na terra, não era um deserto. Tinha um povo que era nosso irmão e precisávamos

respeitá-lo. E também eram donos daquela terra.

Dividir para reinar
"Nos anos 1930, judeus intelectuais da Palestina fundaram uma organização política, a Brit Shalom, que pregava a coexistência

pacífica entre judeus e árabes. Era a primeira tentativa de negociação de paz na região. Pregavam que o maior inimigo era o

mandato britânico e que os palestinos, árabes e judeus, precisavam se juntar pela paz permanente e tirar os ingleses da terra.

Lutavam pelo estabelecimento de um Estado binacional onde árabes e judeus tivessem direitos iguais. Abdicavam do sonho sionista da

criação de um Estado puramente judeu. Mas não conseguiram, pois já estava enraizada toda uma infraestrutura para tornar Israel um

Estado judeu. O Grande Levante Árabe de 1936, que chega até nós, hoje, como um levante contra o povo judeu, era contra a

Inglaterra e seu mandato na Palestina, contra o domínio colonial. Para piorar a situação, David Ben Gurion, que viria a ser o

primeiro primeiro-ministro de Israel, inventou o conceito de 'trabalho judaico'. Os camponeses expulsos de suas terras e sem

trabalho nas cidades, já que judeus só empregariam judeus, começaram a sentir mais raiva ainda. Os conflitos começaram a se

aprofundar e a Inglaterra, obviamente, usava isso a seu favor. Dividindo os povos, poderia dominar mais facilmente. Em vez de nos

juntarmos, nos separamos. Ben Gurion chegou à Palestina em 1908, e os judeus alemães, mais 'abertos' à convivência com os

palestinos, só nos anos 1920 e 30.

O primeiro choque
"Sou da chamada 'geração de 1948'. Participei de cinco guerras como oficial do Exército, mas foi em 1953 que tive meu maior

choque, que foi a morte de todo aquele idealismo pra mim. Aos 12 fui morar em um kibutz socialista ao norte de Israel. Meus pais

ficaram em Haifa e fui recebido por Shlomo e Tzilla Rozen. Eu era do Mapam, o partido socialista sionista em 1953, quando um amigo

me levou para visitar Nazaré. Passamos por um hotel para peregrinos que se chamava Casa Nova. Fiquei horrorizado. O hotel era

sujo, tinha um cheiro horrível de urina e muita gente e colchões amontoados nos quartos. Comecei a andar pelos corredores e vi que

conhecia a gente que estava ali. Eles eram de Maalul, um dos centenas de vilarejos tirados do mapa e apagados por Israel depois de

1948. Eles confirmaram que eram de lá, também me conheciam e estavam esperando, me disseram. Estavam naquela situação havia mais

de cinco anos. Esperando o quê? Nas guerras contra o mandato britânico seus vizinhos do kibutz, o mesmo onde eu morava, os tiraram

da aldeia para protegê-los, disseram. Eles ficariam longe de casa durante a guerra, mas voltariam depois, sãos e salvos. Cinco

anos haviam se passado e eles continuavam esperando. Fiquei com raiva. Voltei ao kibutz e perguntei a Shlomo o que significava

aquilo. Contei tudo que havia visto em Nazaré. Ele ficou branco e me respondeu: 'Você conhece Ben Gurion? Ele é impossível. Não

deixa que devolvamos as aldeias aos árabes'. Mas essas aldeias ainda existem?, perguntei. E ele: 'Não vamos entrar em detalhes'.

Mas por que então ele fazia parte do governo de Ben Gurion (Shlomo era ministro da Imigração)? 'É melhor assim porque sem ele

ficaremos pior', respondeu. Rasguei a carteira do partido na cara dele e saí sem me despedir. Entrei no Partido Comunista logo

depois.

Brasil, um painel e um passaporte
"Em 1958, Nina, que tinha sido minha namorada em Israel e veio para o Brasil com a família, me avisou de um concurso promovido

pela TV Tupi para a execução de um mural no prédio deles. Eu já era artista plástico. Me inscrevi, mandei os croquis e venci. O

painel ainda está lá: são índios de 7,5 metros de altura, no lugar mais alto de São Paulo, no Sumaré, onde hoje funciona a MTV.

Uma vez no Brasil, me juntei ao pessoal do CPC, Centro Popular de Cultura, o Guarnieri, o Juca de Oliveira, o Augusto Boal e,

entusiasmado com eles, fui ficando. Fiz uma gráfica para imprimir gravuras. O Brasil se tornou minha pátria também. Me juntei ao

Partido Comunista com Mário Schenberg, Villanova Artigas e Oscar Niemeyer, que se tornou um amigo próximo. O prédio da MTV foi

tombado recentemente, recebi a notícia com muita alegria. É uma garantia de que aquilo será preservado. Em 1964, no dia seguinte

ao golpe militar, já comecei a ser procurado. Estava envolvido demais com o Partido Comunista e o CPC, era perigoso para eles.

Peguei um cachimbo, tabaco, um passaporte e um talão de cheques e fui atrás de gente do Mapam, aquele mesmo partido do qual eu

havia rasgado a carteirinha, em São Paulo. Tínhamos divergências, mas numa hora dessas eles precisavam me ajudar. Me transferiram

para o Rio, onde ficava a Embaixada de Israel. Fiquei lá alguns dias e arranjaram um voo para Israel. De 1964 a 1986 morei em

Haifa e trabalhei como conselheiro de arte da prefeitura. Em 1986, virei presidente do conselho dos artistas plásticos de Israel.

Em 1987, 20 anos depois da Guerra dos Seis Dias, fizemos uma exposição com 67 artistas, metade árabes e metade judeus, contra a

ocupação israelense de terras palestinas. Voltei ao Brasil em 1995 e fiquei.

Reféns de um Estado distante
"O problema é que a política do Estado de Israel, desde sempre, foi de derrubar tentativas de negociação de paz, pois eles não

queriam um Estado palestino ou um Estado binacional. Nós, da geração de 1948, chegamos à conclusão de que a grande euforia por um

Estado não levou em conta que iríamos nos tornar um país ocupante e, com o tempo, um país baseado nos princípios fascistas mais

radicais. Temos agora uma bomba atômica e um muro de 650 quilômetros de extensão e 8 metros de altura. Nos jornais dos últimos

dias, senti uma tristeza enorme ao ver fotos de israelenses procurando abrigo nas ruas das cidades bombardeadas. Afinal, os

mísseis e foguetes que saíram de Gaza não passaram por cima do muro? Então para que ele serve? Serve para separar famílias, tornar

o caminho dos palestinos mais difícil, e eles já estão fartos disso. Um pacifista israelense, Gershon Baskin, disse que o

assassinato de Ahmed Jabari, líder militar do Hamas, foi um 'erro estratégico'. Não foi um erro estratégico, é a estratégia de

sempre. A estratégia é não querer a paz. Yitzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel em 1974-1977 e 1992-1995) e Yasser Arafat

(líder da Autoridade Palestina) representavam os maiores perigos para Israel, pois eram capazes de estabelecer uma paz de fato na

região. Rabin foi morto por um judeu ortodoxo de extrema direita e Arafat terá seu corpo exumado ainda este mês porque suspeita-se

que ele tenha sido morto por exposição a substâncias radioativas pelo serviço secreto israelense. Quando começaram esses últimos

ataques jovens saíram às ruas aqui em São Paulo, na Av. Paulista, para protestar contra o Hamas. Eu me pergunto, o que eles estão

fazendo? Aqui, por serem judeus, ficam reféns de um Estado que pratica essas atrocidades. Não têm o direito de votar lá, mas

assumem, aqui, os crimes deles.

A ilusão final
"Manter Israel como é mantido hoje, como uma coisa única e completa, é suicídio. Hannah Arendt, em seu relato sobre o julgamento

de Adolf Eichmann, nazista executado nos anos 1960, criticou a tendência dos israelenses de fazerem uma expansão desenfreada,

criando uma situação em que todos os esforços se concentram em armas, transformando a cultura e o Estado 'modelo' que eles queriam

em uma ilusão fatal. Quanto tempo, perguntou ela, vai durar um Estado que só sobrevive à base da força? Precisamos acabar com essa

história de Israel grande, precisamos devolver os territórios ocupados e derrubar o muro da vergonha. Nossa geração, que achava

que estava libertando o Oriente Médio do colonialismo, percebeu que aquilo era uma ilusão. Em 1956, na Guerra do Suez, eu era

paraquedista e fui enganado. Derrubamos o projeto do Nasser para nacionalizar o Canal de Suez, que era legítimo. Achei que estava

ajudando, mas foi uma aventura colonialista ao lado da Inglaterra e da França. Hoje somos usados de novo: Israel é o maior

parceiro das aventuras imperialistas norte-americanas no Oriente Médio. E eu não paro de falar, escrever e pintar. Não paro porque

é um bom jeito de ficar vivo."http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,memorias-de-uma-ilusao-fatal,964901,0.htm

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